sábado, 3 de abril de 2010

O que devemos fazer com o ódio?


Hoje descobri que odeio também. E com a mesma intensidade com que posso amar. O que mais me assusta nisso é a capacidade de borrar minhas palavras quando elas viram corvos de tiro à distância. Queria poder identificar minha astúcia em evitar, mas o que foge das mãos cata ruídos de um passado infeliz; e as questões da dor atordoam toda e qualquer vivência humana. Nossa dor é firme, e ela vem como um sopro a cada ventania que expõe a ferida. Aí eu odeio. E a força desse ódio me incluí no time dos desavisados.

Sei que amo.

Sempre que me sobra tempo para me ver de fora, me percebo olhando para alguém com um carinho especial. O amor é a coisa mais fácil, mais simples. Eu quero dizer que amo. Dizer o amor é a coisa mais difícil, mais complexa e as palavras não são coisas, embora todas as palavras sejam simples. Meus sentimentos de veia boa se revelam naqueles instantes em que percebo alguém além de mim, e numa primeira etapa isso já me é de imensa magnitude, não porque sou tão egoísta a ponto de ignorar meus semelhantes, mas porque alguém além de mim me permite encontrar minha face carimbada mais a frente. Quando a pessoa se aproxima e diz que existe, insisto em dizer que também há de existir em mim o amor. Aquele velho homem que carrega nas costas o peso do saber trabalha numa biblioteca e isso não necessariamente impõe que ele me deve ser simpático. Mas esse mesmo trabalhador é um mundo inteiro fechado em si, e mesmo não concordando no fechamento de um planeta inteiro num ser apenas, o que ele traz no peito é brilhante demais para ganhar minha indiferença. Ele, logo de cara, percebe minhas circunstâncias - sabe que entro na biblioteca com minha amiga, que busca um livro, e que planejo esperá-la do lado de fora - não existe nele a necessidade de inquirir além, ele me entende nas minhas motivações. Logo outro alguém me pergunta sobre o que faço ali, e depois mais outro, e enfim o primeiro torna a questionar, e todos voltam a conversar e me esquecer, já sabendo da minha posição segura em suas mentes. Não aquele senhor. Minha amiga demora a encontrar seu livro, ela vai e volta, digita o nome do procurado, anota as referências, olha as prateleiras de cima abaixo e recomeça tudo outra vez. Nem percebi o que o senhor fazia que não olhar continuamente para o jornal a sua frente, e subitamente ele me pesca com uma pergunta: "que livro sua amiga tá procurando?" - ele me via ali o tempo todo, via minha amiga, via nossa amizade e via minha preocupação. Também me ocorreu que ele notasse seus amigos em suas conversas e as notícias que permeavam o Rio de Janeiro.

Eu lhe disse o nome do livro e ele me respondeu com atenção sobre os problemas da biblioteca. Digitou o nome, anotou umas coisas com a caneta e partiu pra busca que era sua. Somente nesse momento da pergunta-isca eu parei de fato para notá-lo e o que me veio foi uma enxurrada de fotos de um mesmo homem, com suas ideias, suas palavras serenas e firmes, seus olhos por baixo dos óculos que olhavam pensando futuramente, e todos seus objetos materiais e imateriais os quais ele tocava, aproximava da alma e recolocava no lugar. Descobria pouco a pouco o princípio de uma paixão; estava embasbacado. Fiquei grudado nos seus passos: ele foi até o corredor onde estava minha amiga e ao invés de dirigir-lhe a palavra avisando que procurava o mesmo que ela, ele permaneceu em silêncio. Isso me surpreendeu mais que tudo. Quais eram suas razões? Será que queria surpreendê-la com o livro num momento irradiante? Ou podia mesmo estar lá em meu nome e não em nome da minha amiga... Podia sim fazer aquilo por mim; muita vaidade de minha parte, admito. Mas, por que procurá-lo pra mim que nem o queria?

Minha amiga desistira; ele não. Ela voltou com um sorriso amarelo, de mãos vazias, e sem sequer ter notado que o senhor estivera ao seu lado com o mesmo objetivo. De repente me surgiu que talvez o que ele buscava podia ser exatamente pra mim como pensara. Talvez quisesse me trazer a solidariedade que tanto procuro ao meu redor, a educação que meus olhos sugam pelos rostos que me passam diariamente, o carinho puramente natural, que em sua definição primeira me permite visualizar por todo o sempre a vida nas folhas das árvores, nos latidos da minha labradora, nos braços dos meus pais, e enfim, em todas as memórias que um dia foram e são boas mas que trazem consigo a certeza da eventual desaparição. O senhor achou o livro, sorriu com vitória. Ele achou e entregou com prazer, eu aceitei e o amei; amarei para sempre.

Mas hoje não é sobre amor. Sei que quando fugi agora pouco pelas lembranças dos meus amores me senti renovado e mais disposto a enganar meus ódios, porém quero gritá-los. Preciso cometer esse delito porque, por mais criminoso que seja, sua força de ferir será sempre infinitamente menor - agirá como fator de exorcismo. Vi "The Laramie Project", um filme que fala do ódio como fomentador do assassinato e me senti parte da briga. Questionei meus dogmas escondidos e sua força sobre meu julgamento dos outros. Sou alguém que odeia tanto quanto é possível odiar. Odeio como uma criança tola sempre que o orgulho é atingido. Somos todos crianças tolas, atinei, essa é sempre a raiz de todo ódio: o orgulho ferido. Dois garotos mataram porque existia um garoto gay que feriu seu orgulho em ser hétero. Um pai, por mais que clame pela proteção de um filho, é capaz de odiar sempre mais quando seu orgulho enquanto homem provedor de amor incondicional é deturpado. Tudo que nos aparentemente ataca com agressividade, desnuda nossas fraquezas, nos remete às nossas dores passadas, trazendo à tona tudo aquilo que ficou mal resolvido, que é evitado e não discutido. Primeiro passo meu: Dizer que odeio!

Segundo passo: entender porque odeio. Discutir, cair em lágrimas, tocar nas paredes sujas de sangue, orar pela fé necessária, clamar por compreensão e dormir. Acalmar tudo para que o fôlego retomado traga a clareza. Respirar fundo. Rir. Lembrar de todo o amor que me rodeia e me sentir novamente protegido, mas não enganado.

Terceiro passo nosso: ater-nos a toda riqueza de amor que somos capazes de cultivar.

No dia em que descobri o ódio dentro de mim no centro de um ônibus lotado, o vento revo
lvia meus pensamentos quentes. Ele os levava de lá pra cá na manutenção da serenidade. Desci do ônibus e meu pai me esperava. Num sopro final, o ódio foi dissipado. Durou menos que uma hora.

O ódio é a coisa mais fácil, mais simples... e esquecê-lo também é.
Só não se pode esquecer porque se odeia, já que se o fizer nunca irá lembrar de deixá-lo ir.

Cabe aqui, no fim de toda essa divagação, ressaltar que todas essas palavras são ideias cruas de um garoto de 19 anos. Palavras nem tão serenas e firmes como as de um velho bibliotecário, mas que tentam reavivar toda a integridade de um ser humano que faz questão do bem maior inerente a todos nós: o de querer e poder (espero sempre) exercer todas as formas do meu pensamento. E, se me permitirem dizer às suas mentes: devemos todos fazer questão disso!