quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Sombra


Assombrada, minha sombra fugiu.
Carregou consigo aquele sombreiro
sobrecarregado de temor,
sombreando esse amor,
de amores.

Em direção ao teu sobrado
num brado só hesitou,
e cocorou sem abrir.
Jamais retornou.

Ira!

Sombra sobre sombra.
Cadê a minha?
O coração clareou.

domingo, 12 de setembro de 2010

Conversas


"Por que sentimos um monte de coisas ao mesmo tempo e, mesmo assim, não conseguimos dizer com sentido? Consentindo e sentindo?" - ele pensou.

Aí esse cara pergunta pro outro:

- Diz aí, Felicidade!

E o outro responde, perguntando:

- A minha ou a sua?

- A sua, sempre!

- O que é isso companheiro? Você vem sempre em primeiro lugar.

- Só se for depois de você, porque pra dizer a verdade eu nem tanto assim...

- E assim, assim... Eu nunca te vi, nem me vi.

- Opa!

- Opa!?

Os dois se olham e sorriem um sorriso cheio de lábios e poucos dentes que some quando saem de olhos baixos. Naquela mesma energia o sujeito chega em casa e a esposa pergunta:

- Que houve, meu amor?

E ele faz questão de responder:

- Não enche!

"Ah, é porque tem horas que enche o saco ficar transbordando de felicidade. Deixe seu saco vazio, meu amor, e venha ser completamente feliz comigo porque eu também te amo!" - ela pensou.

Que coisa!?


Quando o peixe molha um olho, o rabo é de sereia.
Faceta encacetada em brumas desbolhadas. 
Corre choro venenoso de potências imperiosas:
Morte diminuta.
O paz encaixotado e o morrer.
Flui o que transfere história.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Um casal


Fernanda e Gustavo - parecem nomes de personagens de novela que, apesar de casados, estão sempre envolvidos em traições para no fim ficarem juntos renovando seu amor diante do casamento de outrem, sem se esquecer de deixar, mantendo o núcleo cômico da narrativa, uma brecha para mais traições. Contudo, dessa vez os nomes te enganam, Mari. Se você for do jeito que a vejo, creio que sorrirá com minhas sentenças afirmativas sobre sua identidade. E será um sorriso tão belo, que lembrará Fernanda assim meio de lado, tirando os fios castanhos do rosto para em seguida baixar a cabeça com vergonha do tanto charme. Sabia que os olhos dela também eram estreitos como os seus? Isso tem certa beleza, já que não carateriza uma origem oriental, tampouco ocidental; passariam com altíssimos méritos nos testes de beleza de ambas culturas. Deve estar pensando agora que tenho a mente tão resolvida em soluções simples apenas pelo fato de ter resumido padrões de beleza aos dois grandes eixos culturais do planeta na sua figura e de Fernanda; mas não, Mari, não sou assim. Na verdade, prevejo seus pensamentos como constantes curvas dispostas a me enrolar, guiando ao precipício. Espero que ria dessas minhas colocações loucas, pois também riu Fernanda, ainda mais porque era dela o serviço de leitora dos meus escritos.

Gustavo quase nunca largava aquela sua câmera. Se der uma revirada em alguma gaveta do armário da sua mãe, vai achar a bela Nikon F. Não a tome por qualquer bugiganga, Gustavo foi um dos primeiros a trazer a máquina para o Brasil. De primeiro, costumava sair por aí com ela pendurada no pescoço só para alimentar o orgulho, depois passou a ter um pescoço pendurado numa câmera quando os olhos se tornaram famintos. Era um homem muito engraçado. Por volta dos trinta e tantos anos resolveu ir estudar inglês em Londres -  ninguém fazia isso naquela época - mas quando Fernanda decidiu que queria investir num novo guarda-roupas, ele fortaleceu os motivos. Voltaram de lá brigados, como duas crianças brigam hoje num shopping por quantidade de brinquedos. Gustavo tinha uma Nikon F e Fernanda, uma coleção inteira Mary Quant. Fernanda me confidenciava sua vida íntima enquanto escrevia minhas poesias. Quase toda semana, pelo menos por três dias, ela vinha a minha casa passar a tarde. Tomávamos o chá (num costume forçosamente inglês por mim adotado após a viagem) e ficava uma hora até a sua partida. Nos dias em que o tormento conjugal se agravava, ela passava quase toda semana em minha companhia. Como me faziam rir suas histórias atrevidas sobre nossas conhecidas em comum! Promovíamos desfiles de minissaia ao anoitecer na companhia de minhas filhas e comentávamos o corte, redesenhávamos os modelos, e minhas filhas só tinham o trabalho de permaneceram estáticas, de pé – a viuvez, nessas ocasiões, me auxiliava imensamente.

O desentendimento tolo não os impediu, todavia, de cumprir a tradição das festas em promoção à seleção brasileira da copa de 1966. O dia fatídico que trouxe a derrota do Brasil de três a um para a seleção portuguesa, trouxe também a reconciliação do casal. Três meses depois, Fernanda me confidenciou a gravidez do primeiro filho. Uma emoção tamanha que não caberia nessas palavras. Fernanda e Gustavo haviam tentado durante anos e anos trazer ao mundo uma criança para carregar seu sobrenome, mas todos os tempos se foram sem que o desejo fosse concretizado. Pensaram até em um tratamento fora do país, muito comentado na época, mas desistiram assumindo ser a vontade de Deus o impedimento da chegada do herdeiro. Então, no dia em que o Brasil afundava na fossa da derrota para Portugal uma mágica das mais felizes ocorreu no quarto do casal; não preciso entrar aqui em detalhes porque você já deve conhecer o famoso poder da reconciliação. Fernanda estava já na casa dos quarenta, e sua gravidez foi considerada de tamanho risco que sua médica até lhe aconselhou o aborto. Ora, veja só, você que daí me lê. Que diria você, Mari? Outros tempos, não? Fernanda, evidentemente desconsiderou o conselho da médica e consagrou, felizmente, os meses seguintes como os melhores de sua vida de casada.

Nunca a vira tão feliz, e Gustavo então... Lágrimas me chegam aos olhos só de lembrar nossos passeios constantes pela cidade, uma outra cidade, uma outra vida... Tão bela fora essa vida. Gustavo percebera finalmente que mostrar sua máquina fotográfica a todos os amigos em suas festas no casarão (o de Laranjeiras) não surtia efeito algum em sua consciência. Comportava-se tão inquieto pelo salão, de lá para cá, olhando de sobrolho para a esposa; tanto amor contido naqueles tempos de briga. Quando se libertou, descobriu o verdadeiro significado da máquina e começamos a ir sempre ao centro para fazer longos passeios pelas praças. Ele fotografava cada movimento de Fernanda. Ela lhe sorria como Audrey, só que não sorria para câmera, bem sabia, mas para o que havia detrás dela. Era privilegiada por presenciar tanta felicidade. Cada vez que o telefone tocava em minha casa, meu coração palpitava de alegria. Fora um momento de grande inspiração e isso se refletiu profundamente em minha escrita. Publiquei meu primeiro folheto de poesias. A barriga crescia a cada encontro. Sorriam como se tudo fizesse rir: o sorvete que a criança chorava para mãe depois de ver Fernanda se lambuzando, e eram tantos, dia de pistache, dia de amora, desejos, desejos... Haviam os artistas de rua que pareciam mais espectadores do casal; os estudantes que corriam de lá pra cá com bandeiras políticas; os guardas que nada guardavam mas mantinham bela imagem da cidade estampada no uniforme – suspiros acerca de tudo e o charme em direção à câmera.

O filho veio para os braços da mãe em uma tarde de outono. Mas, antes disso, esqueci de dizer que as minhas noites de sábado haviam sido raptadas pela Fernanda da época de glória. Foi a fase dos sucos também, bebia sucos variados por causa da gravidez. E chás também. Ah, como fui feliz dentro de minha casa, no meu círculo de amizade! Dançávamos juntas até o alto da noite. Raras as vezes em que ela não me fazia sentar ao piano para acompanhá-la numa cantaria descontrolada, acalmada apenas por sua sereníssima voz de anjo. Eu queria lhe dizer, ainda ali, no mesmo quadro, que a amava muito e que queria dançar abraçada a ela pela eternidade. Dançaríamos paradas, deixando o entorno correr sozinho. Ficaríamos presas à noite dentro de uma taça de vidro, intocada, esquecida sobre o piano. Porém perdi a oportunidade de me expor, fiquei presa aos meus versos. E a filha (era uma menina, você já sabe) nasceu. Linda como o outono, com os olhos já presos como se a unha delicada de Deus, ao desenhá-los, tivesse feito dois riscos e deixado que a força do tempo os abrisse. Mas o tempo sempre fora paciente com as duas, Fernanda e a filha, e até esse agora não abriu de todo seus estreitos olhos. Ficamos longe desde então. Acompanhei o crescimento de Aline pelos jornais, como qualquer outra desconhecida. Gustavo me ligava de vez em quando, convidando-me para comemorações de aniversário, mas era a falta de Fernanda em sua voz que me preocupava. Decidi que era vida que começava a passar de novo e fiquei agradecida pelos lindos meses de sublime abstração.

Voltei, escrevi, continuei nos poemas, arriscando progressivamente linhas de prosa. Gostava de alguns personagens que me surgiam na mente. Percebi que derramava cada vez mais de mim pelas folhas espalhadas sobre a escrivaninha. Um dia, veio a notícia de que Aline completaria cinco anos. Não houve um toque sequer do telefone; entristeci-me. Estavam tão longe agora... em outros papéis, só em papéis borrados. Acho que foi nesse momento que pisei fundo nos contos. Escrevia um por dia, sobre a vida que eu via correr pelos jornais e pelos dizeres trazidos à voz por Ana, minha ajudante do lar. Os contos cresciam com personagens que mudavam tanto de ideais como minhas filhas. Dei-me às crônicas também. E a transição exata e completa do meu estilo de poetiza para cronista se deu quando recebi em minha casa, pela primeira vez em seis anos, o casal Fernanda e Gustavo. Gustavo soube de meus problemas financeiros (minhas poesias estavam perdidas no esquecimento público) e me propôs um emprego no Jornal do Brasil. Tinha conhecidos por lá que, segundo me assegurou, estariam interessados na minha escrita. Aceitei a proposta em vista da fragilidade em que me encontrava após do impacto das fortes reminiscências trazidas pela visita. Os dois estavam bem na minha frente, alheios ao passado de alegrias que compartilhamos. E eu, confusa e amável, temendo o fim da visita. Fernanda permaneceu calada durante toda a tarde e quando pensei que ia perdê-los uma vez mais, e dessa vez para sempre, ela abriu a boca: “Você não acreditará, mas outro dia estávamos eu e Gustavo olhando Aline brincar. - os mesmos olhos cerrados, flutuando no passado – Sabe como é estranho vê-la assim tão crescida! Acho que nós mães nunca vamos nos acostumar com essas pessoas grandes que chamamos de filhos. - sorriu, tirou o cabelo do rosto e notei que devia ter uns quarenta e cinco anos – Então lembramos da minha gravidez, de nossas adoráveis tardes passeando pela cidade. Nós quatro nunca fomos tão próximos como naquela época. - apertou forte a mão do marido e ele a olhou tirando da imagem da esposa uma foto perfeita. - E agora, veja só, percebemos que Aline nem a conhece de vista... - retruquei afirmando que a visitara nos primeiros dias. - Mas aí não vale! Ela mal tinha os olhos abertos.”

Gustavo falou, completando o pensamento da esposa: “Venha nos visitar de vez em quando, sim?”

Fernanda abriu a bolsa e tirou uma pilha de fotos, passando às minhas mãos.

“Queremos que fique com essas” - folheei. Eram as fotos daquele tempo. - “Temos cópias.”

Pronto. Agora eles podiam se despedir para sempre de mim. Não tomei tal ato por mal, sabia que era o jeito das coisas se reacomodarem de vez. O tempo, às vezes, simplesmente passa, e certas graças são perdidas pelo caminho. Mas logo logo outras são encontradas, te asseguro, Mari! Tome sua mãe por exemplo: a porta que se fechou naquele dia trouxe consigo a abertura de minha sensibilidade para outro caminho. As fotos inspiraram minhas primeiras e mais belas crônicas dominicais. Sei que não nos conhecemos pessoalmente e informo que nunca conheci sua mãe também
, mesmo depois daquele dia. Soube que são estimadas ainda pela alta sociedade carioca. Não sei exatamente o que isso representa em importância, mas sei que esse é o único meio que me sobra para conhecê-las: as pequenas informações que coleto pelos jornais, pelas vozes da rua. Formo uma imagem e a fotografo em uma crônica. Acho que é por isso que te escrevo agora. Escrevo a você, cujas feições carregam tanta história, palavras que remetam ao reconhecimento em mim de uma figura amiga para todo o sempre. Peço que permita a continuidade de suas histórias imaginadas estampadas domingo após domingo nas folhas do jornal. Eu que a vejo apenas em fotos, espero, sinceramente, que possa ver nos meus textos seu espírito desenhado em ação eterna. Você é Fernanda e Gustavo. Beijos de sua amiga desconhecida. Eles ficaram após o fim, mas na mesma linha, para que não nos separem nunca, as palavras.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Olhos pequeninos


Quando era pequeno tinha olhos pequenos. Mas ao contrário do que pensavam meus mentores, meus olhos viam apenas as coisas grandes demais. Pouco antes do incêndio, conheci o circo do gigante e vi toda aquela altura sem nem inclinar a cabeça, alinhando todos os detalhes à candidez de meus olhos miúdos. O fogo o levou numa labareda só e conto como foi:

Da janela do meu quarto, ouvi os primeiros gritos e fui acalmado por uma imagem de imponente beleza: o gigante correndo em silêncio. Levava o circo em chamas nas costas - o circo inteiro com todas as pessoas menores dentro! Levava-o tal qual se leva um cão doente ao veterinário. Só com os olhos que tinha pude ver o rosto do homem coberto de lágrimas infinitas. Ainda na mesma janela, acompanhei seus passos pesados, que seriam curtos para os que são pequenos e vagarosos, para aqueles que tem suas pernas separadas da urgência. Ele mergulhou o circo de uma só vez no lago da cidade vizinha. Seria um herói se a água não fosse pouca para o fogo muito. A imagem do gigante inconsolável: lágrimas longas como cascatas de água salgada. Os gritos de dentro da lona eram abafados pela proximidade da morte enquanto ligeiras formas de vidinha saiam nadando pelos buracos, explodindo em fogo a seguir, num estalo inaudível. Dentro do gigante constantes sopros de esperança eram abafados por cada nova morte - via isso pelas brechas que a imensa alma desesperada permitia mostrar aos outros. O ser enfim resolveu abraçar seu lado monstruoso e pude sentir seu urro atordoarem minha respiração calma. Ele se levantou e todas suas ações foram verdadeiramente grandes. A imensidão de sua fé parou as demais formas de desesperança e, mesmo sabendo da sua giganteza toda, não conteve seus gestos. Foi aí que ele virou deus e se jogou em cima do fogo, contendo-o com o próprio corpo. Meu pulmãozinho pareceu de um momento para o outro o de um gigante para poder acomodar todo ar de surpresa que engoli de repente. Seu grito fora tão persistente, tão longe... Ele se levantou - eu vi - e o circo estava apagado e toda a água se foi do lago. As pessoas foram então saindo aos poucos, assustadas, mas vivas. Ninguém que via o fogo flutuar no ar pôde imaginar que era o gigante: grande balão de fogo pairando! Apenas eu podia acolher toda sua dimensão. Pelo pouco tempo da infância.

De lá pra cá, venho crescendo e o som do grito do gigante, que ainda ressoa no fundo do meu peito, vai sumindo a cada novo inspirar. Quando espirro, costumo imaginar que me saem dois ao invés do costumeiro um pedaço espectral do gigante; e nem o “saúde” que é dito por alguém me ajuda a recuperá-lo. Mas hoje já raciocino com minha reduzida visão de olhos grandes que o gigante provavelmente via tudo pequeno demais e não teria me visto como espectador do seu show magnífico. Se creio que sim - que me viu - deixo de pensar nas angústias da vida. O gigante, sua paz e todos seus gestos afobados, que não o impediram o queimar, mas que o levaram a uma espécie de ascendência, tem sua foto imaterial marcada numa cena que até hoje é comentada pelas ruas do meu inconsciente. Fora visto numa noite de pessoas acordadas, um fogo que, ao contrário de se consumir, era de constante combustão e recombustão, voando por um céu de uma só escuridão. No dia imediato ao evento, meus mentores me contaram, num momento de esplêndida revelação, que a imagem era um sinal de que o fim dos tempos reservava um novo começo: “um novo sol caminha em nossa direção”, eles disseram. E eu ali, sentado a mesa com meus olhos ainda pequenos, pude ver suas palavras e seus pensamentos por inteiro. Agora já não tenho muito o que ver com meus olhos grandes, mas trago sempre à tona essas belas imagens quando fico cego pro mundo. Toda manhã, penso que o sol um dia acaba e volta. Escarro menos as velhas lembranças, 
expecto mais as novas ressignificações.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Reticências


Amor de verdade... Começar alguma coisa por esse conceito é meio um risco de se nascer pela morte ou pelos pés. Ela acha que é melhor pensar em pernas porque puxar pernas frágeis como as do amor deveria ser algo cruel o suficiente, podendo assim se encaixá-lo nas suas experiências ruins. Mas amor de mentira nem é parte do conjunto de verdades que Sara guarda, ela só quer que alguém a ame, já que amor deve, por si só, ser uma verdade. Acredita que não é o amor que possuí uma característica, mas a relação. Tudo que gira em torno de relação parece se movimentar rápido demais para uma menina que sente a vida ir embora a cada passo dado pela varanda de casa. Essa Sara tem uns vinte e seis anos agora e nem pode mais ser chamada de menina, mas usa vestidos até o joelho e chinelos sem ocasião. Gosta também de pedalar, e quase sempre caminha pela varanda, de onde pode ver os caminhos que percorre diariamente e me incluir, sem se dar conta, aos seus questionamentos de vida. O meu amor é de mentira porque não tem relação com ninguém. Apenas eu faço ideia do que ela quer, mas nem quero que ela saiba que estou aqui,  olhando. A história é dela.

Sara teve um namorado que ia todas às sextas na sua casa porque achava que sexta tinha uma significação estranha de fim de tudo e última oportunidade de início. Os dois se deitavam na varanda e olhavam o céu tocando discretamente seus respectivos corpos através de palavras sussurradas. Eu podia perceber isso porque ouvia bem tudo que pertencia à esfera das palavras através dos gestos. Achavam arriscado fazer o que faziam em público, mas não tinham ideia do quanto realmente eram patéticos só por acreditarem na metáfora das sextas eternas vividas intensamente. Não sabiam o que esperar desse eterno, já que desconheciam o tempo do amor por estarem dessintonizados. Um dia, num último suspiro, ele disse que a amava e ela se sentiu viva como nunca; até chegou a pensar que alguém mais sabia seus pensamentos (mais uma vez, eu) e concordou em fazer parte de um todo, exprimindo liberdade flutuante. Naquele dia, ele a puxou pela mão para dentro do quarto e tirou das palavras o que havia de sexo. Ela foi feliz e ele não sabia que isso simbolizava um retorno à crença no amor. Na outra sexta...

Na outra sexta, tudo dependia da quinta, da quarta, da terça, e Sara de repente se viu presa aos dias como se não representassem nada além do mesmo. Os dias não se contavam até a sexta, eram sós e participavam de Sara em aflição, como milhos de pipoca presos numa panela que aquece cada vez mais. A menina era um evento de contornos frágeis: estava arrasada pela chuva que tempesteou a sexta, alagando a varanda. Daí, foi uma sucessão de imprevistos que distanciou gradualmente o casal de escola. Ela prosseguiu entre livros e semanas sem sextas. Quanto a mim, nesse passar dos anos, nem sabia se estava matriculada em alguma universidade ou se ainda ia à escola, porque sempre que precisava, olhava para varanda e a encontrava como alegoria constante. Palavras deixaram de ser trocadas naquele espaço da casa, agora eram recebidas ordens daqueles livros. Sara desconhecia seu poder de fazê-las desabrochar em carinhos. Então sumiu. Fiquei sozinho olhando meu vazio sobre a varanda. A chuva passava por ela sem deixar água acumulada para ser escorrida pelo rodo e eu, em momentos de angústia extrema, morria de medo que um dia ela voltasse e soubesse de minhas aventuras por varandas imaginárias e outras Saras. Minha mãe sabia do meu afeto e, pelo acaso de morarmos juntos e almoçarmos na mesma mesa, me trouxe a informação de que Sara morrera. Minha mãe era louca.

Sara não tinha morrido, havia apenas mudado sua maneira de existir.

Seu sentido agora era falta. Uma falta tão grande que vivia despedaçando meu peito cada vez que chorava minha saudade. A menina cujos passos cresceram no meu olhar simplesmente quis ser alguém além das minhas verdades. Percebi que toda sua leitura que lhe dava ordens fora desconstruída nesse tempo de  sumiço. Quando Sara olhou, encontrou no fundo de si verdades múltiplas e, calma, não pediu mais nada: seus processos de amor se tornaram despretensiosos e éticos. Sara me deu adeus e me deixou a varanda como herança. Todas as sextas tiro folga - são meus instantes oportunos. A cada nova sexta envelheço uns cento e vinte anos só de olhar. Me engolem esses dias!

Mas depois ela voltou. E trazia amor de verdade. Não hesitava mais em marcar as reticências após “verdade”, pois sabia que elas ficariam ali passando o tempo e, ao lado dessa noção de muito tempo, restaria algo essencial e íntimo, que era ela mesma. Amor de verdade... São dois tons do mesmo sentimento. Ela aparecia e eu me emocionava. Não era sexta, mas eu vivia crescendo num mesmo instante de infinita sabedoria derivado de uma pausa que a menina provocava dentro dos meus olhos, e isso alterava muito minha idade. Parei de passar num tom só. Dupliquei desdobrado nu sobre meu próprio voyuerismo
. Ela voltara com os mesmos livros, com o mesmo vestido voando pelo joelho. E ainda chegava em casa pedalando e assobiando. Tirava os pés do pedal para empurrar a bicicleta no curto caminhar até o portão. O ferro arrastava ao abrir. Girava a chave e entrava.  E tudo escurecia - na cabeça acendia uma luz e a via pisar num templo imaculado. Era uma bela dança: minha menina na minha varanda. Esqueceu de morrer, de apagar aquela que foi, antes de resolver renascer em carne e osso dia após dia. Não dava mais importância para os dias especiais, para os amores velados no risco, para as palavras de ordem e muito menos para os olhos perseguidores. Minha ânsia por viver em sua pele como suor nunca seria saciada porque ela nunca pararia de suar e suava despojando-se de todas suas amarras. Ficava me perguntando porque Sara fazia tudo parecer tão fácil.

O último dia: sem superstições era uma sexta. Não sei porque motivo, eu estava fora de casa; fazia algo para alguém, para minha mãe e talvez para suas loucuras. Andava apressado com a atenção fixa nos meus passos cotidianos quando percebi o assobio perto. Sara pedalava graciosamente ao meu lado. Levantei a vista e vi que nossas casas ficavam uma de frente pra outra, quase se misturando. Parei a pressa e a acompanhei como se fizesse parte de seu caminho. Ela parou em frente à sua casa e eu, em frente à minha. Entramos. Ambos subimos nossas escadas e cumprimentamos nossas respectivas mães. Ela foi para o seu banheiro lavar as mãos e eu esperei que acabasse dentro do meu. Saímos juntos com as toalhas nas mãos. Ela olhou pela janela e, pela primeira vez, viu minha casa. Tudo que fiz foi tentar me encaixar no seu olhar. Ela me tinha perto de si, como um amor de verdade, reticente. E me viu por inteiro, como eu sempre quis, até não me ver mais, nunca mais. Fiquei horas ali sentado, olhando para o outro lado. Minha mãe, louca de pedra, me chamava. Os minutos foram me cercando enquanto minha mãe subia as escadas até aparecer naquela varanda que me encarava. Gritou mais alto. Esfreguei bem os olhos e enxerguei com os olhos de Sara. E me mirei, sendo Sara. Me vi flutuando de cabeça pra baixo no meio do nada até uma mão enorme surgir e me puxar pelas pernas. Sumi no ar. Ela me olhou de uma varanda vazia e alagada, porque o ralo estava entupido e os olhos choraram demais. Minha mãe berrou outra vez. Abri os olhos e fui atender seu chamado. Não era nada demais: a vizinha tinha morrido.

Números


Um, dois dos quatro amores
resvala no pressuposto do grão,
sublima a água fundada no oco
e repassa ao infinito o que venta.

Um, dois daqueles instantes amarelados
revelam a magna ânsia por sonhar
a certeza do que há por trás,
por dentro,
no armário ruidoso das emoções.

Escolhendo sem querer um dos dois
descobri o terceiro amor,
que nem se escondia do riso,
delegando ao inverso sua exatidão:
o amor na imensidão da risada!

Esse amor é palhaçada!

E é tal que nos salva.
Salvadora, heroína...
Um amor da droga de fazer,
traficado pelos palhaços do alvorecer.
Um amor assim que urge umas palmas
e se rodeia do eterno.

O que se foi de um,
dois dos que ficaram, se chocaram.
E, por mais incrível que possa parecer,
o cho(foi tão aberto)que
no abeto do coração latente ele explodiu.
Respingou certezas muito próximas,
replicando sabores muito familiares.

Ele, nessa árvore, queria família.
E Julgava conhecer a chamada vida
fingindo sociedade na alegria.
Por que no fundo? Pertencia ao escondido da falta,
embora o plano enganoso tivesse alicerces bem sonhados.
Ele era uma pena...

Foge! - disse o passado.
Descobriu-se desespero sem falseamento.

Agora, já não se escapa mais do que se é dançando no escuro,
nem da voz que berra por amanhecer.
Tem-se pra quem correr, ao menos
ele voz disse.
Um, dois dos que se foram, ficaram.
Está nele de volta a volta!
Tem-se pra quem correr!

Dos que ficaram pra trás na discórdia do riso dramático,
um está de volta
e é seu parceiro.

Tem pra correr quem se tem.

Cessa então expressão triste mascarada de sonho:
o dito que foi sobre quem era enfim é.
E dá pra ouvir apenas o clamor sereno da estrela
a chamar duas das uma, em horas.
A esperar um ou dois dos quatro amores passados.
O amor agora é o choro que ri
da palhaçada que guia cambaleante,
e o infinito recomeço se abraça
naquele um que já foi dois.