sexta-feira, 24 de junho de 2011

Confissão


Odeio escrever! Palavras me cansam e são estupidamente chatas! Tudo que queria era poder enfiar uma droga de uma câmera dentro da minha cabeça e filmar a vida por lá. Porque é tudo muito cansativo. Só queria assistir. E entender. Mas daí vem a única opção disponível: pegar um monte de letras, juntar, batizar um significado e colar numa folha com alguma certeza de ao menos coerência gramatical. Se a mente ainda fosse feita de palavras... Queria abrir o coco e instalar uma câmera de segurança, evitando a loucura, filmando tudo o que pudesse, o que deixasse. Peraí, será que teria que fazer resenhas? É verdade que estou infinitamente preso às palavras? O que há de novo dentro do repetido não pode ser só o o. Preciso de mais! Aí vem deus e faz de quatro letras um espera infinita! "Sois deuses!", alguém disse, e só o que fez foi acrescentar duas novidades repetidas. Fiquei com o velho du de dúvida, mas duvido que tudo isso pudesse ser escrito, ou filmado... ferrado!

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Litros de imprudência na irrealidade de uma amizade sem reverência


Eu sou o batman e você o superman. Somos que nem aquela peça escangalhada, de quem nossos filhos riem sem dó da risada. Sua mãe, não a minha! Porque minha avó nem cabelo mais pinta, e também, o que você queria daquela péssima tinta? Nossos meninos não sabem fazer direito, e quando voam derrubam tudo. Sem nem fazer meio lisonjeio, apertam com os dentes o braço carnudo. Nossos filhos não riem mais, não se sujam, não se cruzam, não se usam! Mas nossos filhos ainda não brigam!

Somos que nem aqueles vizinhos que se mudaram. Sempre carregando as roupas pro lugar certo. Sempre vivendo de adiar o ferro. Mas aqui nunca chegam móveis novos. Nunca esquecem de cobrar da cara os olhos, nunca relaxam a cintura pra braguilha não abrir. Por isso te peço, meu amigo: me leva daqui!

Deixa que os meninos se virem, eles agora são velhos! Demais somos você e eu, juntos crianças perdidas. Deixe que essas agendas, mesmo antigas, não escondam o calendário. Deixe que o café eu mesmo passo. Deixa, que quando a gente passar por ali, eu os prendo no armário. Não se confunda: eles sempre souberam o que era pilotar, nós é que nunca saímos pra voar. Mas você sabe como faz. Você sabe do que o céu é capaz. E lá nos móveis nunca novos encapada está, por cima da calça num só mafuá. Não se preocupe com esses assuntos! Tá tudo certo que eles ainda ceiam juntos.

Agora me beija a face e levanta! E sai pela porta e me deixa em paz! E some no ar dos homens normais, e finge fugir com meu tosco abençoar, e diz que amigo não é fácil de achar, e luta comigo que é pra gente se amar. Mas, pelo amor do Deus que há, não esqueça da tua fraqueza, e não faz dela toda uma certeza, no que eu te engano, no que eu escureço, no que eu finjo que esqueço: o que sou eu.

Céu de morcego é que nem pescador de papel, que não zarpa bem com o barco por ser leve demais, que não descansa do sonho de um lugar ou cais, que ventasse onde ventasse, nunca viu peixe que flutuasse. Jamais! Tenho andado muito distraído, às vezes esquecendo de me esconder, e em outras, me perdoe dizer, eu me disfarço de você. Só que ninguém a não ser os meninos, e olha que eles estão bem desprotegidos, confunde a com b. E logo agora num c, não tô mais encontrando os perigos, fico achando esses vazios e me deparo com você, que lá de Krypton me vê. E aceno que venha cá, pra num abraço me ensinar, o que batman quer realmente dizer.

Espero, quando te ter assim bem próximo, você lembrando aquele negócio e começando a me chamar de irmão, já poder por fim fazer, o que é de mim melhor em você, soletrando o ditoso de super, que na raiz da palavra revela, e desespera, o que de herói significa solidão.

domingo, 19 de junho de 2011

Um velho esquecimento


Hoje, lembrei o que nunca me disseram. O que deixaram escapar num porém de silêncios. O que quiseram fingir que nem cabra velha era. Nesse mesmo hoje, eu esqueci o que lembrei, e acho ser assim porque fugi da resposta. Agora percebo que o que lembrei era pergunta sem entonação de pergunta. E era questionável. Quanto tempo até que os silêncios voltem, preu saber e escrever o que sei? Ah, mas teria que saber a resposta antes. Por quanto tempo posso aguentar esses esquecimentos?

"Por tantos dizeres de imperceptíveis vozes."

Mas cá estou eu, num livreiro enorme de gordo. Sim, cá estou a sufocar um pobre homem que só queria vender “A insustentável leveza do ser”. Nem sei por que me perdi em sentimentos de raiva e ódio. E nem sei por que ainda não joguei esses sentimentos fora. Esqueci o que queria dizer e como costumava andar por ali sozinho. Esqueci como andava. Certa vez um amigo me disse que quando via uma mulher saída de seus desejos, esquecia como é que gente anda. Ninguém esquece como se anda, é como andar de bicicleta, ô meu velho amigo! Ele esquecia mesmo. E eu tinha ataques de raiva e esquecia porque os tinha. E só queria me esconder dos que me chamavam de caduco.

Aí vi que o livreiro não era pessoa, era de madeira. E pra descer depois? Ele ainda era grande e gordo, só que não gritava mais. Esqueci o que significava livreiro. Da próxima vez que quiser construir alguma ideia talvez deva parar pra ouvir o silêncio antes, senão esqueço os pontos e cometo atrozes erros de ortografia. Mas da próxima vez devo cair pra não ter que subir de novo, que quando se está no chão fica tudo bem; posso me abrir todo, esticar bem os braços... seguro e dono dessa segurança. "How deep is your love?"

Mas você vem até mim numa noite de verão e a lua tá tão bonita que eu resolvo te reconhecer. Ah, minha bela! Você é tão minha salvadora quando, não sei por que, enlouqueço. Você me dá a mão e me leva até o longe a passos corridos. E aí, quando deitamos no chão, minha doideira encontra paz na sua. Ninguém me incomoda com perguntas que não lembro. Você, meu docinho de caju, parece tão apimentada às vezes, que choro. E quando choro, seus dedinhos me enxugam todo. Mas o que é que eu queria dizer mesmo? É que agora sei quem é você quando, antes de chegar, vejo pela porta um nada de intuição, e no silêncio, consigo ouvir seus assobios. Agora, acuado, só sei dizer: “Ei, ei, ei, o que está acontecendo?”

E não tenho resposta alguma, só um “ei, ei, ei” de volta que começa a querer cantar.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Duas histórias que se cruzam num sonho.


De manhã, levantei zonzo, passei pela sala e notei as três sombras dos meus pais e irmão tomando café e suas vozes fantasmagóricas me arrepiaram. Entrei no banheiro com o sonho ainda latejando na cabeça. Escovando os dentes recebia mensagens ocultas da assassina assustadora, e o som dos gritos ainda me assustava por mais que o sol bonito das onze horas me esquentasse dizendo “está seguro aqui comigo!”. Sentei na mesa e peguei minha caneca, enchendo até a borda só de café - mentira, uma pequena força de expressão pra dizer o quanto o café era imprescindível pra todo o processo de afastamento do mundo dos sonhos. “mãe, sonhei com você essa noite...”, disse, mas depois me perdi porque meu pai não trouxe o pão que queria – o suíço – e aí, era dia dos namorados, e minha mãe tava reclamando do quanto tava velha e meu irmão tava calado às vezes, e outras dizia rindo qualquer coisa como cópia do que eu falava; ironizávamos nossa mãe juntos.

“Já foram três casos de dizerem que eu tô velha”, ela recomeçava, “primeiro, a professora de biologia lá da escola, que já tem mais de cinquenta anos, disse que eu parecia uma senhora...” – “Nada a ver, isso é porque você tava com a roupa toda fechada e certinha e o cabelo armado...”, dizia entre seu discurso, sem ser ouvido. Meu pai balançava a cabeça, e ela continuava: “...depois, Alan disse naquele dia que eu tô igual mamãe...” ela se esqueceu da terceira vez e partimos pra uma conversa estranha, sobre o filme de ontem e sobre a possibilidade de mudar de casa. Aproveitei pra reforçar: “Mãe, sonhei com você essa noite...” – “Como foi?” – “Sabe como nos sonhos os espaços são familiares e até lembram lugares daqui da Terra, mas são completamente diferentes e, às vezes, assustadoramente vazios... (não foi bem assim que disse, mas era isso que queria dizer) Eu sempre sonho com os mesmos cenários, só que eles vão se ampliando e nos mostrando novos caminhos... Enfim, ontem sonhei que a gente tava na casa da minha avó e que você era uma assassina, e tava todo mundo com medo de você, inclusive eu. Você tinha uma faca, ficava lá nos fundos e torturava umas mulheres, depois de ter discutido violentamente com elas; elas urravam de dor e você aparecia com o vestido cheio de sangue (é incrível como também nos sonhos eu nunca vejo os olhos das pessoas, mas sei quem são). Aí, eu, minha avó e o pessoal começamos a rezar lá do portão e os gritos pararam. Minha avó disse pra gente ir lá perto, mas Thiago, e os outros ficaram com medo e fui só eu e minha avó. Você tava com uma menininha no colo e a tinha esfaqueado no ombro; não lembro da expressão da menina. Eu e minha avó, de mãos dadas, começamos a rezar; tava morto de medo. De repente, Margarete apareceu do nada, bem na sua frente, e colocou a mão na sua cabeça e tal qual feiticeira, gritou umas coisas e depois eu me perdi... ela sumiu, não sei se foi esfaqueada ou se o sonho foi editado. Só sei que daí, eu peguei a faca da sua mão. Você tava estranha, parecia de volta a si, com os olhos em branco, tremendo... A menina também tinha sumido, e aí o sonho cortou pra outro dentro de um navio, onde acontecia um show.”

Olhei pra ela, minha mãe. Apesar de tudo, continuávamos a tomar nosso café como se nada tivesse acontecido. E nada de fato aconteceu. Mesmo tendo sido intenso, estava na minha cabeça, só afetava a mim. “E aí?”, perguntei. “E aí que você leu minha mente. Ontem, quando vocês tinham saído, eu fiquei aqui na sala, e me veio o pensamento se eu já tinha matado alguém em outra vida. Você tava lá fora, deve ter pescado meu pensamento e sonhado com a resposta.” Eu fiquei estranho, me arrepiei de novo, e engoli café pra ficar okay. “Mas só quem tava lá era eu, minha avó, Fátima, Thiago e Margarete.”, ela comia e falava normalmente, mas era torturantemente má no meu sonho. “Então, só vocês estavam comigo lá!” – isso eu não sei se ela falou mesmo ou eu pensei. Terminado o café e o assunto, minha mãe lembrou do terceiro caso onde foi reconhecida como velha: “Ah, lembrei: a garota da farmácia perguntou se eu queria desconto de aposentado...hahaha! Eu tô muito acabada, acho que vou precisar fazer alguma coisa no rosto... Vocês não vão me julgar se eu fizer não, né?” Meu irmão ironizou um pouco, rimos e fomos ler o jornal, lavar a louça, recolher a mesa, ligar o computador, meio que por aí, sem ordem ou distribuição justa. Fiquei procurando casas nos classificados e me perdi do sonho: esqueci legal mesmo. Minha mãe ficou na cozinha ouvindo Legião, e eu volta e meia ia lá só andar. Vi o lembrete do projeto social de música na geladeira, tentei gravar pra pesquisar mais tarde, mas esqueci de qualquer maneira. Meu pai resolveu colocar um dvd de pagode, e meu irmão o incentivou só pra me provocar e, em meio a suas risadas, eu esbravejei, xinguei e me enfiei no quarto com o resto do jornal.

No quarto comecei minha adorável rotina de domingo: não fazer nada e deixar que o sentimento de culpa cresça exponencialmente até que me possua por completo e me assole numa terrível depressão de segunda. Lá deitado, com o notebook quente na barriga, procurando casas e mais casas, pensando em possibilidades e planejando o resto do dia, me veio a vontade de habitar aquele mundo de casas reconhecíveis apesar de nunca vistas e ruas que só se ampliavam, em um caminhar que só fazia crescer um mundo, como se finalmente pudesse degustar cada centímetro do novo. Tudo ao redor pode ser surpreendente, há sempre uma nova perspectiva, mas quase nada tem sabor de novo, quase nada inspira curiosidade. Isso não acontece no mundo de quando a gente dorme. Os sentimentos são reais e são as fichas sempre apostadas, a intuição comanda e é livre. Queria estar lá sempre. Pensando nas horas que vinham, decidi assistir finalmente “A bela Junie”, que já está no meu pc há séculos. Só que quando decidi, meu pai foi comprar o almoço e eu escolhi assistir depois do almoço então. Mais uma volta minúscula e vazia de novo pela casa: geladeira, copo d’água, memorizando o aviso, olhando minha mãe, ouvindo minha mãe, estranhando. Que estranha estreia de dia. Almoçamos, saí do almoço como um foguete, engolindo a comida, reclamei das toneladas de açúcar no suco e cuspi na pia sob os olhos de ninguém, eu acho (agora que escrevo, percebo que talvez ela estivesse me observando já) . Assisti o filme, ainda na cama. Gostei do filme, tive aquela sensação de habitar o lugar com a alma, de sentir o frio das imagens, de ser o clima que é avisado pela meteorologia. Eu finalmente ia fazer o que sempre desejo fazer nesses dias, arrumar uma hora pra escapar da armadilha virtual e dormir, afogando minhas mágoas por não viver de verdade. O mundo dos sonhos é infinitamente mais maravilhoso que o da internet. Eu ia conseguir, mas minha mãe entrou no quarto quando ainda estava com o pc ligado, quebrando a possibilidade de passar a imagem de alguém que não desperdiça o tempo, mas que está cansado demais pra ele. Fiquei com raiva, e quando ela me pediu pra digitar as provas dela, eu fiquei de cara feia no escuro e disse: “Eu ia dormir agora, só depois [...] Tá, mas eu só faço quando quero! Gosto de fazer assim![...] Que saco! Já disse! [...] Eu faço quando acordar! [...] Se acordar! [...] A gente nunca sabe se vai acordar de novo!”. Ela ficou chateada, porque mãe sempre fica chateada quando filho brinca que vai morrer ou não acordar nunca mais. Disse que ia na casa da minha avó porque minha priminha tava lá, e eu pedi que mandasse um beijo pra ela, mas ela gritou que não ia mandar droga alguma; do lado de fora do quarto ela ainda gritava com meu pai sobre o que eu tinha falado. Só então percebi que já estava entrando... Estava sendo absorvido lentamente. Ia dormir, com frio, com minhas cobertas aconchegantes. Ia dormir no meio da tarde, às 17h36. O travesseiro macio, o celular gelado na mão, o óculos caindo. Fui dormir. Dormi.

O sonho.

Estava num trem, o trem de sempre, mas era Paris, mas era o de sempre mesmo. Tudo com o gosto excitante do novo. Era o mesmo horário da vida real, fim de tarde, nublado, meio cinza esverdeado, meio noite. Estava sendo perseguido e estava junto de duas amigas da faculdade, e ainda estava na faculdade, com livros e bibliotecas que só cresciam e cresciam. Seus longos corredores de luzes apagadas tinham aquela sensação familiar de constante surpresa. Ela estava marcando meus passos. No trem, articulava um plano pra não morrer, enquanto ouvia minhas amigas conversarem sobre coisas banais e rirem. As risadas soavam longe, como se estivéssemos em lugares diferentes; teorizo que estávamos, suas imagens nem estavam lá, não estariam dormindo também – Vanessa tinha que estar estudando no fim de semana. Não estariam dormindo, não estariam lá, mas partes secretas de seus cérebros participavam comigo desse esquema sonhado. Não me auxiliavam, serviam só de suporte imagético para aumentar minha confiança na salvação ou na realidade do sonho. Enquanto tagarelavam, e as outras pessoas do trem inexistiam apesar de estarem lá, eu senti a sua aproximação mortal. De vez em quando tinha lapsos de suas feições demoníacas, com rajadas de risos tenebrosos e raios literalmente saindo dos olhos; não era tão ridículo quanto aparece escrito. Eu fui preso quando cheguei no sonho, mas vivia me esquecendo disso desde o seu início. Fui preso quando cheguei na minha estação, mas na verdade ainda não estava lá, só sabia o que ia acontecer e que sairia correndo pela rua que levava à minha casa, e estaria sozinho, como sempre. Então, eu tive uma brilhante ideia para despistá-la: chamei um assassino rival, e ele estava no trem, ao lado do maquinista. Ela percebeu e, diabólica, voou sobre o trem demonstrando força e chamando o outro pra briga. O assassino rival caminhava de vagão em vagão, queria matar alguém também. Trazia um facão e queria enfiá-lo no meu peito, e ia doer pra caramba. Que burrice a minha! Que droga de plano. Nos sonhos sempre estamos sozinhos, e aquelas imagens de amigas já não me transmitiam esperança alguma. Elas eram nada, não me compreendiam, não podiam me ajudar. É estranho como o estar sozinho junto dos que se ama pode soar tão mágico e assustador ao mesmo tempo. Acho que é assim que os sonhos são pra mim: mágicos e assustadores. Mas os vilões são bem reais! Claro que isso é porque sempre dou mais atenção ao que está errado e crio vida nisso. Ele vinha, ela sumiu no ar e o trem parou na minha estação. Sabia que os guardas vinham me prender e que lutaria muito para me soltar. Eles não vieram. Já tinham vindo uma vez e o sonho não queria se repetir. Cortou para minha corrida - de repente, estava correndo - por essa rua escura aqui atrás da minha casa. Minha respiração dava sinais de ir ficando mais última progressivamente. Cheguei em casa e nunca me senti tão amedrontado. Lá, tudo que conhecia parecia tocado de fim. Cada coisa não me dava segurança, sumia em importância. Me vi dentro de um armário (que nem existe de verdade) dentro do quarto em que dormia na realidade. Sentia que estava ali junto de mim mesmo. Um dormia sem respiração, e o outro dentro de um armário que nunca vi, perto da janela. Ela apareceu! Voava, e arrancou as cortinas  com tempestade de raios e trovões que provocava com a mente. Não era mais minha mãe, mas sempre seria. Eu não gritei porque já ouvia com os ouvidos reais e eles não ouviam nada que vinha da parte secreta do cérebro. Ela pegou meu pescoço com as unhas. Não senti nada, porque meu corpo já recobrava a consciência dos 82 quilos em extremidades bem acomodadas. Ela não tinha mais poder de morte porque estava bem na minha frente, abaixada na penumbra, olhando dentro do meu sonho, me censurando, rindo sussurrado pra não me acordar. Ela fazia Shhhhhhhhhhhhhhhhh! com o dedo sujo sobre os lábios. Seus cabelos estavam despenteados, duros pro alto, sujos. Tudo estava sujo, mas eu não sentia o cheiro porque não era real. Quando abri os olhos dei de cara com ela, que riu com dentes estragados e me matou com seus olhos arregalados.

19h48. Só ouvi meu irmão rir na sala – tinha voltado – minha mãe tava na cozinha e eles se falavam de cômodos distantes, alto demais, e estavam felizes. Meu pai devia estar dormindo (eu não sei), não tínhamos habitado o mesmo mundo de qualquer maneira. Podia estar no computador também. Mas estávamos todos dentro de casa e, quando abri os olhos, apesar do escuro, consegui ver tudo que conhecia e isso me fez calmo: senti confiança na realidade. Toda vez que a gente acorda precisa confiar no que existe, não é? E eles estavam andando no cenário. Abri a porta do quarto: luzes acesas, estavam andando nessa maravilha de palco familiar. Olhei pra trás. Sabia que lá na cama, sobre meu travesseiro, restava a poeira da fuga, disposta a me ajudar no retorno. Minha mãe tava no quarto com meu pai, sentada na cama, procurando algum papel, organizando provas e ele no computador. Olhei meu irmão na sala, jogando video game. “Sabia que não era você?”, eu disse, me sentando ao lado da minha mãe, “Era tudo eu! Queria que houvessem outros, mas era tudo eu. Sempre foi.” Ela não entendeu, e continuou fazendo o que estava fazendo. “Não vai dizer nada?” Parou e me olhou: “O que você quer que eu diga?” Ainda estava zonzo da morte.