terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O que os dedos têm a ver com as manchas?


Aconteceu. Mas não era pra ter acontecido. Aconteceu? Nesses tempos tenho estado confusa achando que confusão faz parte da minha personalidade; mas não é bem assim. Ela tocava sanfona numa banda de forró. Ela vinha do Piauí e tinha as laterais da cabeça raspadas. Ela não tinha sotaque, era universal. E não tinha franja. Não cantava, só assobiava. Desde cedo, quando descia do metrô, já assobiava e sorria. E dançava, dançou uma vez pra mim, já bêbada e molhada de chuva numa garagem abandonada. Ela era minha melhor amiga e confessou que me amava enquanto tomávamos um sorvete. Lambeu o beiço e com os olhos brilhando, sorriu e disse: “te amo!”. Mas ela era minha amiga e eu tinha namorado.

“Não posso te amar, sou hétero...” enquanto falava, minha voz foi voltando antes de ir. Tinha medo por ali. Alguém me amava. Eu já amei? Essa é uma coisa que só eu sei mesmo não sabendo. Entendia amor pelo que sentia por minha mãe ou meu pai ou minha avó. Mas não estava certo, só me deixava segura, só me deixava estável, inteira. Nunca liguei pra minha saúde, pra minha integridade ou reputação. Quando falei em sexualidade desentendi tudo. O que tinha a ver? Ela não me oferecia sexo, me oferecia amor. Fiquei confusa a partir daquele momento. E ela pegou na minha mão. Seus dedos, só nas pontinhas, estavam grudentos. E ela os alisou na minha palma sem dizer nada, sem olhar. Seu sorriso cantava uma canção. Nunca tinha reparado na sua delicadeza, coisa que até os cabelos me diziam, presos num rabo de cavalo, presilhas douradas, envelhecidas, em forma de flores, minúsculas, lindas. Seu silêncio, seu espaço deixou que caminhasse por seu rosto: pele morena de sol, bochechas cheias, covinhas alargando sorriso vez ou outra, uma pinta bem debaixo do olho esquerdo. “já terminou?” e soltou minha mão. Meus olhos encheram. No susto uma lágrima caiu. “Vamos ué!”

Tudo normal. Ela descia do metrô e eu esperava ansiosa. E sorria mais alegre que nunca. E beijava a bochecha devagarinho e com o dedão limpava o batom e nossos olhos se encontravam. Pensando nisso, já tinha sonhado que nos beijávamos e que ela tocava minha pele completamente nua, sua mão deslizava na minha barriga como se estivesse falando, eu com um nó por dentro. Olhava intrigada e apreensiva e ela sugava meus lábios mais uma vez. Achava normal esse tipo de coisa. Todo mundo sonha. Tem gente que sonha coisas eróticas com irmãos ou mesmo pais. São nossas pequenas insanidades mágicas. Mas isso foi aumentando em frequência desde que ela me disse “te amo!”. Odiava meu namorado, sempre odiei e dizia isso pra ela antes de tudo. Mas isso é normal também. Ele era chato, só pensava em transar, vivia falando da porcaria da tese em psicologia das massas e a análise do Eu, resumia o mundo em neuróticos desconhecidos e queria ficar me apertando inteira. Me sentia sufocada e ele dizia “te amo” assim solto, sem significado. Dizia “te amo” entre beijos ou quando ejaculava. Dizia “te amo” e chorava. Me apertava, me esmagava por cima e me beijava a testa e perguntava um milhão de coisas: “o que você vai fazer mesmo? Quem vai? Ele vai? Ela vai? Mas você acha que vale à pena? Te amo!” e isso também parecia uma pergunta (“te amo?”). Depois de querer se infiltrar na minha vida sem ser convidado, dava opiniões: “Acho que devia se colocar mais. Lembro, claro, você é ótima nisso, só devia praticar mais. Mesmo que você não queira, às vezes é preciso, eu também preciso. Poxa, meu amor. Você é tão linda!” Ela nunca me disse que era linda, mas quando nos olhávamos, sabia o que pensava e suas ideias de cristal eram também assobios e diziam tão mais que qualquer palavra e tocavam tão fundo e não me chateavam nem um tiquinho.

Ele veio me buscar. Estávamos no “bico de papagaio” tomando umas geladas e discutindo sobre um projeto da faculdade, nem era um projeto nosso, era do Carlos do curso de pedagogia, amigo dela. Eles se tratavam com tanto carinho, como irmãos de mãos dadas. “Oi, meu amor!” e me beijou na frente dela. De olhos abertos, a vi disfarçar coçando o nariz. Bebericou a cerveja, enxugou os lábios e me olhando pediu pro meu namorado se sentar, indo pegar uma cerveja e um copo no balcão. Meus nós me disseram pra segui-la e resolvi ir ao banheiro. Passei bem próximo e notei que não nos falávamos mais, nossos diálogos sumiram, não existia o ímpeto de informa-la sobre onde ia. “vou ao banheiro” sumira pra sempre. Ela me viu passando e sorriu. Vivíamos disso agora. Entrei na cabine e sentei no vaso de tampa fechada. Tinha cheiro de cloro e meus olhos logo se irritaram. Estava sufocada e mais uma vez sem saber se era o cloro ou minha personalidade. “te amo!” E me arrepiava. Mas que droga de confusão! Fechei os olhos porque coçavam desesperadamente. “Ju, você tá aí?”, me assustei, sua voz era de cantora, como não cantava? Como não? “Tô, entra.” Abri a cabine. “Tá louca? Aí não cabe nós duas!” e riu. Saí; ficamos frente a frente. “Nossa, seus olhos estão muito vermelhos!” ela me puxou pelo pulso até a pia e abriu a torneira. Me olhou fundo e molhou meus olhos. Depois enxugou com os dedos, os dedões apertavam meus olhos e no escuro senti queimar dos pés à cabeça. Abri os olhos como quem respira numa piscina. Fiz uma aula de natação uma vez na escola e quase morri, não tinha o que chamava de “cadência respiratória”. E mais uma vez: o cloro me queima ou são seus dedos. Abri os olhos e a olhei com raiva. “Melhorou?” Fui até a porta e fechei o pino.

Ela me olhou sem nada entender e me deixou mais nervosa. Como me engana, por que finge? “O que você quer de mim?” ela balançou a cabeça negativamente e a interrompi: “por que está fazendo isso comigo?” ela se apressou na minha direção quando comecei a chorar e me abraçou. “Essa droga de cloro!”, ri sem querer e não sabia se continuava chorando. “Por que você tá chorando, Ju?”

“Não sei. Eu não sei de mais nada.”

“Por que diz isso?”, ela foi se afastando.

“Por sua causa! É tudo culpa sua! Que droga é essa que você tá fazendo comigo?! O jeito que me olha, como me toca e... Ai meu deus, o que eu tô dizendo... Que droga é essa que você tá fazendo comigo?”

“Eu não tô fazendo nada com você...”

“Tá!” gritei, ela se encolheu. “Você tá! Não percebe? Olha como me arrepio! Eu não sei por que, mas me pego pensando em você e sonhando com você e às vezes nem é você, é um barulho na rua, um bebê no elevador, o vento que seja... Outro dia tava acendendo o fogão e a boca fez um clarão, acho que explodiu um pouquinho.”, ela riu. “Tudo é você! É sufocante, não sei mais o que pensar.”

“Você tá equivocada. Não sou eu, não fiz nada...”

“Então por que toda vez que fico alegre, penso em você e toda vez que choro, penso em você, e quando dói, você está lá e quando acordo, sua presença pesa dentro de mim? Por que você vive me roubando de mim, me desintegrando, me confundindo?”

“Eu?”

“Sim, você! Porque você diz mais que o mundo pra mim agora. Porque tô louca e você tá causando essa loucura, mas ainda assim te olhar é o único sopro de sanidade dentro da minha cabeça há dias.”

“Mas eu...”

Interrompi com palavras repetidas, mas as recolhi assim que ela ergueu a mão de súbito.

“Não me interrompe mais, sim? Deixa eu dizer o que preciso dizer!”, ela foi firme “Ju, eu não estou em lugar nenhum a não ser aqui, agora, em mim mesma. Eu não provoco nenhuma reação e não movimento seus dias. Não calo seu choro ou provoco seu sono. E não te deixo mais feliz porque estou ou não presente. É tudo você! Você não é capaz de... Não é capaz de confessar? Não posso dizer ou fazer mais nada. Não consegue se entender? Ouve só! Escolheu só me ouvir, mas quem tá gritando pra dizer alguma coisa é você.” Parou e me invadiu. “E garota, eu te amo toda vez que saio do metrô e você tá me esperando sentada do lado do ventilador, segurando o cabelo no rosto, com o livro no colo e as páginas virando apressadas demais, desobedientes.”

Ela não me olhou, desviou os olhos envergonhados.

Ela não se movimentou, coçou o nariz, disfarçando o silêncio.

E ela não disse mais nada, chorou pro lado, prendendo nos punhos uma raiva contida.

“O que você quer de mim, Ju?”, continuou sem me olhar.

Na minha cabeça: te amo, te adoro, te quero, nua, delicada, molhada, lambuzada, sorvete de casquinha, línguas, chute na bola, futebol, juiz, apito, cavalete, tinta doce, colar, nudez, seus dedos, as pontinhas no bico no meu peito, limpando o batom, assobios, pardal, miolo de pão, ainda não almocei, o que dizer?, te amo, o que dizer?, vai embora daqui, vou sumir, vou largar a faculdade, camisa de botão listrada, mancha de mostarda, beijo estalado na bochecha, sirene de ambulância lá fora, ela estática, volta a me olhar!, volta a me olhar!, ela me odeia, eu a odeio, me ama!, me ama!, me ama!, minha mãe volta na quinta, ele deve estar preocupado, meus olhos estão coçando de novo, me tira daqui!, tô sufocando, dor de cabeça, tenho dois comprimidos de dipirona no bolso.

Peguei os comprimidos do bolso, coloquei na boca e bebi a água direto da torneira. Ela tinha sumido de repente. A porta ainda estava fechada, e tinha uma pessoa parada, que agora me olhava. Ela veio na minha direção e me deu um soco na barriga. Cuspi as dipironas. Ela sussurrou no meu ouvido: “você é uma covarde!” e me deixou sozinha no banheiro com uma claridade que me assombrou profundamente. O barulho da porta rangendo me acordou. “Quero você sua boba.” Falei baixinho. Ela estava bem longe agora, no fundo da cabeça, revirada no estômago. A dor passou.

“Vamos?” falei com ele com a mão no seu ombro. E sorri retocando um quase sorriso.