terça-feira, 23 de agosto de 2011

Havia desaparecido o que deixei no bolso


Ele não sabia o que escrever. Estava tudo muito muito dentro da cabeça. As palavras não queriam obedecer quem não tinha forças pra ordenar. Ele entrou às pressas no banheiro para tomar banho e chorar. Nesses dias tudo estava ficando cada vez mais difícil na intensa despedida da última melancolia. Entrava de surpresa no quarto e via o pai esconder algo, via a mãe mais confusa, com os olhos perdidos ao falar sobre qualquer assunto. Ele tinha dó deles, mas não era pra ter. Era frágil demais e sua mente ainda queria abrigar uma criança recolhida da memória. Os pais não estavam mais ali e não havia ninguém pra ampara-lo sem sexo. Constantemente via algo que tinha que fazer e não queria se ver fazendo. Já que não havia saída, tirou do bolso um pedaço da vida em que podia apostar. Lembrou desse dia em que desejou do fundo da alma ir andando até o fim. E daquele outro em que encontrou aquela figura estranha pela última vez. Sobre esse dia ele chora um pouco mais no banho. Uma pena tê-lo perdido.

Estava sentado no ponto de ônibus quando o cara fedido pediu algo pra dentro do copo. Ele balançou a cabeça antes mesmo de ouvi-lo. O sujeito balançou mais forte o copo e o líquido caiu em cima do outro. R deu um grito abrupto que virou xingamento e se levantou pra bater no mendigo. Quando o olhou, viu que era alguém da sua própria idade e fisionomia perdida; paralisou. O sujeito ficou pedindo desculpas e começou a limpar a bebida de cheiro forte. Enquanto esfregava a perna do outro, as pessoas olhavam e tinham nojo. R estava preso na semelhança. R quis reconhece-lo. Quando acordou o sujeito atravessava a rua e corria pra longe. R o seguiu caminhando firme, com pensamentos fixos numa única nesga de esperança. Luís, o suposto mendigo, entrou num galpão que chamava de casa. R hesitou e ficou disfarçando do lado de fora. Lá dentro, Luís, ajeitava as ferramentas, preparando o espetáculo. R falava sozinho num ritmo acelerado e seu nervosismo apavorava sua alma. Luís começou a uivar. R entrou. As luzes ainda estavam apagadas; seus passos foram cautelosos demais pra alguém que nem estava ali. R se sentiu feliz do nada. Parecia finalmente ter encontrado seu enredo, a história perfeita que ia se encaixar e completar a vida. Ansiava por um final dramático. Luís acendeu as luzes, uma a uma, e o galpão foi se revelando. As paredes estavam pichadas, tinham figuras de seres agonizantes que voavam pra além dos xingamentos e siglas de rap. Eram muitos e queimavam os ouvidos. Luís, o louco, começou a gritar e gritar, chamando pra dentro os monstros de fora. Na verdade, o que fazia era chamar R, que desmaiava. Além das paredes tudo ia voltando devagar para a narrativa: latas de tintas no chão, muito jornal amarelo, ferro retorcido, vassouras, cabos de borracha, placas de madeira e Luís, nu. R acordou aos berros e se livrou das mãos do outro. Correndo pra saída, encontrou nenhuma. As palavras iam começando a fazer sentido: “Você trouxe o que pedi?” R não sabia o que Luís tinha pedido, só sabia que se conheciam de antes e que tinham a mesma idade. “Você estava com ela! Eu vi! Estava sentado bem em cima pra ninguém ver. No ponto de ônibus... Lembra?” R só sabia que seu pênis estava ficando ereto, e imaginava o nervosismo que tudo estava causando. Suor e tremedeira. Sua mente trazia vários fatos: faca na nuca que ia e voltava, Luana nua, chupando seu pau, indo e voltando com a cabeça, sua mãe chorando e seu pai se masturbando, uma menininha chupando sorvete de casquinha, o sorvete no chão, sua mãe chorando, Luís nu, Luís chupando seu pau... “NÃO!” R continuava a gritar, se negava a ouvir, não entendia o que gritava. Luís se aproximava. R não queria aquilo, tinha medo, queria correr, mas não queria correr. “Cara, tá tudo bem! Eu tô aqui!” Luís tentava acalmá-lo, esfregando seu braço. R ficava mais e mais excitado. Os olhos de R assustavam Luís, mas ele só pensava em pegar o pacote e expulsar o outro dali. Sabia das crises do colega. Não ia adiantar abusar da sua boa vontade, era preciso entrar na sintonia do surtado: “Lembra do filme da égua de quadris largos que tinha uma xota bem molhada onde o negão cuspia e depois enfiava o pau? O do xvideos! A gente via antes de perder horas naquele brinquedo de empilhar dois andares. De bloquinhos de madeira... A Luana te ama do avesso e do quadrado e quer te comer ainda hoje. Com certeza quer te comer. Aposto que esse seu sex machine tá cheio de porra acumulada. Seu garanhão! Dá pra ver, seu pervertido! Vem cá, cara! É só me abraçar que tudo vai ficar bem. Mas me dá a encomenda primeiro, sim?” Luís achava um tom de brincadeira em todas as loucuras que falava. Pensava em dizer coisas em inglês e achava inspirador utilizar um maluco como mula. Mas ele amava aquele maluco desde a infância. Luís nunca ia se lembrar e muito menos se culpar do dia em que seu amigo surtou pela primeira vez. R só fez o que o amigo pediu, e ele pedia constantemente (puteiro, rave, circo). Só que R não precisava de muito pra escapar da realidade e mesmo assim, Luís insistia. A única anestesia forte o suficiente era o cheiro de uma vagina, a primeira vagina. R fez besteira e surtou demais. A vida normal que levava com Luana subitamente ficou na fronteira com uma odiosa fantasia. Luís nunca soube o que isso significava e continuava insistindo na provocação barata. “Anda! Dá três voltas e meia pra cá que eu te faço endurecer esse pau e esquecer esse amor vagabundo!” Luís já estava masturbando o amigo para acalmá-lo. Luís odiava ter que fazer aquilo.  Não por consideração, mas por nojo mesmo. R tinha medo e alucinava beijos molhados de sangue por toda a parede. Via Luís trepando com sua mãe e queria mata-lo e matava. Na tevê, as notícias de assalto e investigação da corporação por assassinato. Ouvia o vizinho chegar em casa, tomar um banho quente, esquentar a comida no micro-ondas. Escutava o que a tevê dizia, mas não dizia. O vizinho não tinha tevê. R gozou sem perceber e voltou à realidade. Luís se agachou, limpando a mão com um jornal. R: “Puta que pariu, não acredito que você fez isso de novo?” R partiu pra cima de Luís, chutando sua cara. Luís não desmaiava fácil, mas ficou zonzo. Ele puxou R pela perna e se colocou em cima dele, segurando suas pernas com seu peso. “Seu merdinha! Pensa que eu não sei que você gosta! Aposto que é tudo invenção...” E socou a cara de R. R perdeu um dente porque foi um baita soco. Mas sua raiva fez surgirem forças novas. Luís se assustou com o sangue e libertou o amigo. “Me desculpa, cara! Eu sei que é invenção da sua cabeça e que nem por isso é menos doloroso. Me desculpa!” Ele tentou abraçar o amigo, mas R socou seu estomago uma, duas, três vezes, e riu alto. O outro achou que o amigo já estava surtando de novo, mas R se virou e jogou o pó no chão: “Essa é a sua parte! E se comer minha garota de novo, eu te mato de verdade!” Luís experimentou o pó nos dentes, e tomado por uma euforia, disse: “Ah, vem cá, seu coisa ruim!”, indo abraçar o amigo. Eles se abraçaram e R percebeu que seu pênis ainda estava pra fora. Levou a mão até a cueca e notou a ereção do amigo. R empurrou Luís e xingou. “Seu desgraçado!” Naquele dia foi embora atormentado por sua própria imagem beijando Luís na boca, com língua e amor. Ficou piscando muito até chegar no ponto. Tinha seis chamadas perdidas da mãe. Pensou em ir até a faculdade abraçar Luana e chorar no seu colo, mas temeu seus amigos. R chegou em casa, dizendo que estivera estudando e se trancou no quarto pra ouvir Bette Davis dizer: “I'd luv to kiss ya, but I just washed my hair.” Depois se masturbou vendo o resto de A Malvada e dormiu.

Depois de chorar a lembrança por dias a depressão começou. R ia feliz pra faculdade porque sabia que não ia surtar. Tudo ia bem. Luana dizer que o amava não provocava esquivas ou coceiras. Ele andava normalmente, evitando somente pisar nas linhas muito visíveis no chão. E as aulas tinham textos que não se importavam de serem lidos ou não. De Luís só soube que mendigava sexo na Av. Nossa Senhora de Copacabana. Tudo ia bem obrigado até que o final do período chegou trazendo uma ode à ansiedade, deixando o inferno tomar conta sem queimar. R tentou assistir Um amor pra recordar com Luana, mas não passou da metade sem fazer comentários agressivos. Os dias nublados já não tinham tanto impacto e frescor. Os pais continuavam apáticos e não se divorciavam mais. Uma professora pediu uma dissertação sobre a reforma psiquiátrica e ele não sabia o que escrever. Nem hoje, nem amanhã porque amanhã é dia. Uma lembrança a menos.