segunda-feira, 24 de março de 2014

O crocodilo de plástico

Chove muito, não quero levantar. Minha filha pra lá e pra cá pela casa. Bate uma porta, acende o fogão, mexe em panelas... Passos pesados pra lá e pra cá. Mas ontem mesmo reclamava de mim: que falava alto, que a música estava alta – era pura dor de cabeça. Cheiro de camomila com chuva. Ô paraíso: essa cama macia e todo o resto lá fora. Mais uma batida. Minha filha vai pra rua. Volto a dormir.

Acordo no susto, mas não lembro do sonho que sei que tive. “Pai, pai...” minha filha me sacode com as mãos geladas. Vejo seu rosto pálido e noto a água escorrendo dos cabelos – está encharcada. Começa a me contar que não pregou os olhos a noite toda, que estava angustiada. “Liguei pra todo mundo... pra mamãe, pra vovó, pro titio, pros primos... Até pra você, mas ninguém atendeu e você não acordou. Liguei pra todas minhas amigas e pra alguns conhecidos distantes. Falei com uma pessoa chamada Flávia por engano.” A água escorre e pinga no lençol. Ela me mantém preso à cama, acorrentado a sua narrativa. “Flávia é veterinária, olha só? Passou a noite toda cuidando de um cãozinho agonizante. Na verdade, só vigiando sua morte lenta. Pai, ela me contou isso com tanta emoção que senti doer. Acho que chorou um pouco do outro lado da linha. Chorou pra mim, uma estranha!” Nesse momento, ela começa a chorar, mas não como quem soluça e muda a voz; são apenas lágrimas escorrendo em silêncio, fazendo companhia a água da chuva. “Pai, aí que está. Não éramos mais estranhas... Eu senti como se ela fosse tudo na minha vida. Eram seis da manhã e falávamos de como as coisas são bonitas, mesmo os últimos suspiros. O cachorro era novo, filhote ainda, coitado. Morreu de frio, algo assim; a mudança de clima. Não conseguiu se adaptar. Ela mal o conhecia e notou com uma doçura estranha, diga-se de passagem, aquele fim. Ela falou assim ó: ’é estranho porque quando morreu parecia que estava só dormindo e pronto, mas quando minha bisavó dorme – e ela tem 98 anos – é como se estivesse morta’ e é verdade, pai. Gente velha parece nem mexer mais o peito quando dorme. Parecem impregnados de morte já. Agora pouco, você sonhava e seu peito mexia rápido. Olha, até agora seu coração bate acelerado!” Ela faz cara de espanto com a mão no meu peito. Sorri em seguida. “Teve uma hora que Flávia dormiu no telefone. Era minha vez de falar e, do nada, comecei a contar do dia em que chovia como hoje, quando eu tinha nove anos e eu e você estávamos no centro da cidade. Naquela época você me levava pro trabalho com você porque mamãe tinha voltado pra Recife, lembra? Eu adorava aquilo. Entrava no elevador, sentia aquele cheiro de elevador e você me deixava apertar os botões. Todo mundo sorria pra mim, como se eu fosse aguardada há muito tempo. E lá de cima dava pra ver tudo! Aquele monte de gente pra lá e pra cá, correndo da chuva; as nuvens num tom de ferrugem e de repente o estrondo. Não era trovão, mas ninguém me disse o que era. Todos ficaram apavorados, lembro de ouvir um grito. Você me pegou pelo braço e me tirou da janela. Fiquei sentada enquanto todo mundo falava e olhava pra baixo. Passou por mim uma senhorinha banhada em lágrimas; nunca vou me esquecer. Eu ri pra ela – ela era importante pra mim como você e mamãe; não sei porquê. A gente foi embora mais cedo naquele dia. Você apertava minha mão com força e andava rápido. A chuva era tão fina que nem abrimos o chapéu. Lembro disso porque só assim pude ver aquele objeto mágico sobre a cabeça de um homem de olhos puxados. Isso é importante, pai, presta atenção!” Acompanho de perto suas recordações. Lembro daquele dia como se fosse hoje. “Eu ficava olhando os guarda-chuvas, me perguntando porquê as pessoas precisavam deles se a chuva estava tão fraquinha. De repente apareceu um monstro verde, com dentões e garras. Ele olhou pra mim e disse ‘menina bonita, você sabe onde fica a rua Júpiter?’ Soltei da sua mão, sorri e apontei pro céu. Ele sorriu de volta e disse alguma coisa que não ouvi, porque você me puxou violentamente para dentro daquele mar de gente parada ouvindo as sirenes de ambulância.”


Ela se levanta subitamente e corre pro banheiro. Deixa a porta entreaberta e posso ouvir a urina batendo na água. A chuva volta forte. Aperta a descarga e abre a porta com o pé só pra não me perder de vista. Me olha, gira a torneira e deixa a água cair sobre as mãos. “Minha filha, foi naquele dia que o Seu Henrique, zelador do prédio, recém viúvo, pai de duas meninas, cometeu suicídio. Você se lembra?” Apaga a luz e vem se deitar do meu lado. “Ele estava conversando com você, fazendo aquela brincadeira que você adorava de adivinhar o que tinha na mão. Era só uma moedinha. Você pegou e ficou olhando pela janela. Então, ele abriu a janela ao lado, subiu na cadeira – era um sujeito de menos de um metro e meio, tinha uma cara muito engraçada, deixava aquele bigodinho sujo, lembra?” Ela acomoda o rosto preguiçosamente no meu travesseiro. “Aí, ele mergulhou no ar, né? E paft.” Sobe em mim uma emoção em forma de arrepio. “Essas coisas são muito tristes, minha filha. Não vale a pena ficar relembrando...” Ela levanta o rosto amassado do travesseiro e me olha com ternura: “Tá pai, mas você não se lembra do crocodilo de plástico?”