Chove muito, não quero levantar.
Minha filha pra lá e pra cá pela casa. Bate uma porta, acende o fogão, mexe em
panelas... Passos pesados pra lá e pra cá. Mas ontem mesmo reclamava de mim:
que falava alto, que a música estava alta – era pura dor de cabeça. Cheiro de
camomila com chuva. Ô paraíso: essa cama macia e todo o resto lá fora. Mais uma
batida. Minha filha vai pra rua. Volto a dormir.
Acordo no susto, mas não lembro
do sonho que sei que tive. “Pai, pai...” minha filha me sacode com as mãos
geladas. Vejo seu rosto pálido e noto a água escorrendo dos cabelos – está encharcada.
Começa a me contar que não pregou os olhos a noite toda, que estava angustiada.
“Liguei pra todo mundo... pra mamãe, pra vovó, pro titio, pros primos... Até pra
você, mas ninguém atendeu e você não acordou. Liguei pra todas minhas amigas e
pra alguns conhecidos distantes. Falei com uma pessoa chamada Flávia por
engano.” A água escorre e pinga no lençol. Ela me mantém preso à cama,
acorrentado a sua narrativa. “Flávia é veterinária, olha só? Passou a noite
toda cuidando de um cãozinho agonizante. Na verdade, só vigiando sua morte
lenta. Pai, ela me contou isso com tanta emoção que senti doer. Acho que chorou
um pouco do outro lado da linha. Chorou pra mim, uma estranha!” Nesse momento,
ela começa a chorar, mas não como quem soluça e muda a voz; são apenas lágrimas
escorrendo em silêncio, fazendo companhia a água da chuva. “Pai, aí que está.
Não éramos mais estranhas... Eu senti como se ela fosse tudo na minha vida.
Eram seis da manhã e falávamos de como as coisas são bonitas, mesmo os últimos
suspiros. O cachorro era novo, filhote ainda, coitado. Morreu de frio, algo
assim; a mudança de clima. Não conseguiu se adaptar. Ela mal o conhecia e notou
com uma doçura estranha, diga-se de passagem, aquele fim. Ela falou assim ó: ’é
estranho porque quando morreu parecia que estava só dormindo e pronto, mas
quando minha bisavó dorme – e ela tem 98 anos – é como se estivesse morta’ e é
verdade, pai. Gente velha parece nem mexer mais o peito quando dorme. Parecem impregnados
de morte já. Agora pouco, você sonhava e seu peito mexia rápido. Olha, até
agora seu coração bate acelerado!” Ela faz cara de espanto com a mão no meu
peito. Sorri em seguida. “Teve uma hora que Flávia dormiu no telefone. Era
minha vez de falar e, do nada, comecei a contar do dia em que chovia como hoje,
quando eu tinha nove anos e eu e você estávamos no centro da cidade. Naquela
época você me levava pro trabalho com você porque mamãe tinha voltado pra
Recife, lembra? Eu adorava aquilo. Entrava no elevador, sentia aquele cheiro de
elevador e você me deixava apertar os botões. Todo mundo sorria pra mim, como
se eu fosse aguardada há muito tempo. E lá de cima dava pra ver tudo! Aquele monte
de gente pra lá e pra cá, correndo da chuva; as nuvens num tom de ferrugem e de
repente o estrondo. Não era trovão, mas ninguém me disse o que era. Todos
ficaram apavorados, lembro de ouvir um grito. Você me pegou pelo braço e me
tirou da janela. Fiquei sentada enquanto todo mundo falava e olhava pra baixo. Passou
por mim uma senhorinha banhada em lágrimas; nunca vou me esquecer. Eu ri pra
ela – ela era importante pra mim como você e mamãe; não sei porquê. A gente foi
embora mais cedo naquele dia. Você apertava minha mão com força e andava
rápido. A chuva era tão fina que nem abrimos o chapéu. Lembro disso porque só
assim pude ver aquele objeto mágico sobre a cabeça de um homem de olhos puxados.
Isso é importante, pai, presta atenção!” Acompanho de perto suas recordações. Lembro
daquele dia como se fosse hoje. “Eu ficava olhando os guarda-chuvas, me
perguntando porquê as pessoas precisavam deles se a chuva estava tão fraquinha.
De repente apareceu um monstro verde, com dentões e garras. Ele olhou pra mim e
disse ‘menina bonita, você sabe onde fica a rua Júpiter?’ Soltei da sua mão,
sorri e apontei pro céu. Ele sorriu de volta e disse alguma coisa que não ouvi,
porque você me puxou violentamente para dentro daquele mar de gente parada
ouvindo as sirenes de ambulância.”
Ela se levanta subitamente e
corre pro banheiro. Deixa a porta entreaberta e posso ouvir a urina batendo na água.
A chuva volta forte. Aperta a descarga e abre a porta com o pé só pra não me
perder de vista. Me olha, gira a torneira e deixa a água cair sobre as mãos. “Minha
filha, foi naquele dia que o Seu Henrique, zelador do prédio, recém viúvo, pai
de duas meninas, cometeu suicídio. Você se lembra?” Apaga a luz e vem se deitar
do meu lado. “Ele estava conversando com você, fazendo aquela brincadeira que
você adorava de adivinhar o que tinha na mão. Era só uma moedinha. Você pegou e
ficou olhando pela janela. Então, ele abriu a janela ao lado, subiu na cadeira –
era um sujeito de menos de um metro e meio, tinha uma cara muito engraçada,
deixava aquele bigodinho sujo, lembra?” Ela acomoda o rosto preguiçosamente no
meu travesseiro. “Aí, ele mergulhou no ar, né? E paft.” Sobe em mim uma emoção em
forma de arrepio. “Essas coisas são muito tristes, minha filha. Não vale a pena
ficar relembrando...” Ela levanta o rosto amassado do travesseiro e me olha com
ternura: “Tá pai, mas você não se lembra do crocodilo de plástico?”