quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

No banheiro


Intervalo entre apresentações, a música estava alta e chata quando pisei numa poça de vômito ou coisa parecida e senti vontade de mijar. Entrei no banheiro; estava silencioso, mas haviam pelo menos três cabines ocupadas. Fui pra pia, abri a torneira e bochechei água e cuspi. Tinha pedaço de carne ainda no dente – era do café da manhã. Putz, que porco; escovei os dentes mal e porcamente porque ainda eram onze da matina e os babacas chegaram pra me buscar. Olhando no espelho, reparei no estrago que era meu rosto. Não sou um cara feio, costumo atrair olhares, a própria Zeca disse que me pegava, mas essa coisa de trabalhar dois turnos seguidos por dia não tá caindo bem. Tem um buraco roxo enorme debaixo de cada olho que me dá a indesejável aparência de estar bêbado vinte quatro horas por dia, claro que se soma aí minha lerdeza natural. Mas cara, chega um momento em que não dá mais! Como quer arrumar alguém estando o trapo que está? Vinte e oito anos e nenhuma namorada, nada firme, só casinhos. Vejo a pequena do Luís e me dá maior inveja... Desde moleque quis ser pai. Mas essa vida corre que nem dá chance da gente saber onde está pisando ou mesmo lembrar onde já pisou. Olhando assim pra esse bundão na minha frente, com essas olheiras fundas e esse cabelo bagunçado, me pergunto: será a vida uma caloteira de merda que não paga a conta de luz? – eu realmente devo estar bêbado.

Entrou um casal no banheiro. Riam alto e o cara já estava com a mão na calça do outro. Quando me viram se assustaram e disfarçaram, indo pros mictórios. Como não queria atrapalhar e nem ser testemunha de profanidades, entrei numa cabine vazia e logo dei descarga porque a privada estava cheia de bosta. Abaixei a tampa e já sentado tirei o cigarro do bolso, acendendo um. Que banheiro fedido, meu deus! Com certeza tinha alguém cagando numa das cabines na maior boa vontade. Essa é uma coisa que nunca entendi: que prazer é esse de fazer suas coisas particulares em locais públicos? Os caras deviam estar se chupando lá fora, algum mané deu pra cagar despreocupadamente, e com certeza deve ter um outro filho da puta se drogando ou pior: fumando. Bando de cuzão! Eu ri um pouco alto sem querer e curti outro cigarro. Deram descarga. Mamãe apareceu do nada na minha cabeça e me mandou destrancar a porta do banheiro. Ela esmurrava a porta e eu aumentava a música no diskman. Subitamente parou e tirei os fones a tempo de ouvi-la descer as escadas pisando forte. A seguir reclamações gritadas que não pude distinguir. Recoloquei os fones quando vi que subia novamente. “Abre essa porta, seu depravado!”, socos e depois chutes que até me assustariam se tudo não fosse tão engraçado. “Ah moleque!” – qual não foi minha surpresa e iminente ataque do coração quando vi a porta cair bem na minha frente. Deixei a revista no chão e puxei a cueca pra cima com tanta ferocidade que ela acabou rasgando. Tudo que lembro depois disso era estar correndo pelado com um pano de prato, no meio do quintal, o cachorro do vizinho latindo sem parar e minha mãe com uma colher de pau me perseguindo pra me bater. Naquele dia ela soube que papai ia parar de pagar a pensão e achei que por isso queria descontar em mim. Mas o merdinha só tinha morrido. E eu que nem sabia o que era amor, senti na pele em colheradas consecutivas. Vai saber por que as pessoas não conseguem lidar com os ressentimentos e manter a sanidade ao mesmo tempo. De repente já estava no terceiro cigarro e a gritaria anunciava a entrada de outro DJ no palco lá fora. Apaguei o cigarro no chão, mas me faltou força pra abrir a porta. Fiquei ali parado, olhando, no que pareceram horas. Até que três batidinhas me acordaram e uma brecha se abriu.

“Tem gente!”, falei. Mas a pessoa do outro lado permaneceu parada. Ouvi a respiração ofegante e me assustei. Abri a porta com excesso de força e a porcaria da quina bateu na testa do homem. “Ah caramba, me desculpa!” Ajoelhei do lado do cara. Devia ter uns trinta e poucos anos. Ficou um pouco assustado de inicio, mas depois puxou uma risada eterna que me encheu o saco. Coloquei-o de pé e empurrei até a cabine onde estava antes, ele pisou no resto de cigarro e reparei que estava descalço. Como não respondia minhas perguntas e só sabia rir na minha cara, dei as costas e me dirigi à saída. “Ei!”, ele me chamou de repente. Voltei. “Abre o meu bolso e pega um saquinho que tá aqui fazendo um favor!”, primeiro pensei que não devia, mas o cara já estava tão fodido que pior não dava pra ficar. Entreguei o pó na mão dele, mas não fui embora; minha consciência pediu que o vigiasse por um tempo (como se a vigia fosse evitar alguma coisa). Ele se agachou de frente pra privada, despejou um pouco de pó e com um papel alinhou numa carreira. Enrolou o mesmo papel e sugou pelo nariz. Não dava pra ficar ali vendo um infeliz se matar. Virei de costas mais uma vez e... “Ei!”, olhei e vi seu braço estendido com o rolinho de papel: “Um presentinho.” Mais um pirado na minha vida. De onde é que saem tantos miseráveis pra me azucrinar? “Não, obrigado”, forcei um riso e acenei com a cabeça. “Tu é menor de idade?”, foi a minha vez de rir, me escapou num cuspe; gargalhei com gosto. “Tem cara de ter uns dezesseis anos... Vaza daqui moleque!” De repente o cara se zangou. Continuei achando tudo muito estúpido, mas bateu vontade de provar aquele pó. Sabe que eu nunca me droguei na vida! Quer dizer, já dei uns tecos num cigarro de maconha, mas nada além disso. De longe o espelho continuava a me mostrar um sujeito desengonçado de um metro e meio e cara amassada; solitário, com a mão estendida implorando por uma nova oferta. “Tenho vinte oito.” O cara me olhava estranho, desconfiado, com os olhos quase pulando pra fora. “Você tem cara de uns dezessete, dá pra perceber! Foi mal aí garoto, mas não rola!” Dessa vez eu realmente fiquei incomodado. “Que dezessete o que, porra!? Tenho vinte e oito!” Ele levantou, ficou mais alto como todo mundo fica quando me encara e quis me intimidar. “Deixa eu ver sua identidade então?” Por dentro, eu me consumia em risadas e por fora só ouvia o eco sério. Eram risadas fantasmas, estavam causando uma espécie de indigestão ou coisa do tipo. Via o espelho mais perto, e parecia que tudo estava paralisando. Meu reflexo implorava com o braço estendido e eu o olhava de esguelha; aquele sujeito baixinho... Não me espantava que confundissem sua idade. Por que se escondia num lugar sujo daquele? Fumando que nem um cão desde os quinze, não aguentava nem subir os dois lances de escada do prédio sem se amparar na parede, ofegante. Um merda que nem procura a mãe e que ainda por cima desligou o telefone na cara dela quando ela ligou no domingo toda cheia de saudades. Depois, fingiu que não se emocionou quando a ouviu chorar do outro lado da linha. “Aqui está: vinte e seis de fevereiro de mil novecentos e oitenta e três.” Entreguei a identidade e fiquei vigiando aquele reflexo que só fazia chegar mais perto. Puta que pariu, eu devia estar muito doido. E ainda vem a Telma com aquele papinho no carro: “ai, gente, tô indo pra Paris estudar! Te contei? Alô? Ih... Tem jeito que dormiu mal essa noite [...] Nossa, que bafo hein! Não tô aqui pra ouvir grosseria não hein! [...] Vê se se manca, cara! Ninguém aqui precisa chorar suas dores não! Essa é a graça da coisa toda! [...] Hoje eu quero comemorar! Co-me-mo-ra-ar! [...] Cara, a gente nasce sozinho e fica com essa mania de tomar o mundo pra si [...] Ninguém morre querendo levar meia dúzia de dinheiro ou diamante ou o diabo a quatro, a gente morre querendo levar o espaço que ocupa quando nasce [risadas] É! O útero da mãe, seu merda! [mais risadas] Você soube que o Tom Cruise comeu a placenta da filha [...] Sei lá de quem é. Foda-se! Cara piradaço, meu!” Será que eu tenho dezoito?

“Isso aqui é noventa e três, você não me engana não!” Ele me devolveu a carteira, que caiu da minha mão. Fiquei parado me olhando. Me perdi. Parecia que tudo girava enquanto permanecia sozinho, no meu canto, no meu buraco. Não era indigestão. Eu tinha pisado numa poça de vômito, meu vômito. E estava descalço, os pés pelados, um com uma pequena queimadura que ardia no vômito frio. Os sentidos me enganavam, queriam me prender, queriam que definhasse preso num mesmo mundo pra sempre, fumando um cigarro atrás do outro com medo de magoar minha mãe ou ouvir que meu pai tinha morrido. Com medo de transar sem camisinha e engravidar alguma desconhecida. Um temor enorme que causava arrepio da espinha até os pés pensar em vê-la perdida nos braços de outro, nunca encontrando o caminho de volta junto dos demais espermatozoides. E tudo girava. E meus pés perdiam o equilíbrio do chão, confiando no equilíbrio dos céus. “Com dezoito já respondo por meus atos!” Agachei e suguei. Passaram milênios numa ereção tântrica que só fazia deixar o pau mais mole. O sujeito na cabine alisava meu pau por cima da calça. Na minha cabeça, estava seguro, assistindo tudo numa espécie de coma. Alguém abriu a porta e um som infernal invadiu quebrando o escuro. Quebrando algo mais. “Garoto, você tá muito doido!” Ouvi de longe, bem longe, quase que no Parc de la Pépinière. Minha vista embaçada via o sangue pingar no chão. Fazia um barulhinho chato. Pingava outra coisa ali em cima dos cacos. A visão turva caiu, recobrei a sanidade. Nos pedaços que sobraram na minha frente, me vi velho de novo, com as mesmas olheiras, mas todo vermelho e uma mancha evidente na testa; a cabeça ainda doía da batida na quina. Suava que nem um condenado. Era uma boa história pra contar pra alguém. Não sabia dizer como quebrei o espelho só com um soco, mas me pareceu engraçado olhando assim de longe. Sabia que não devia ter abusado no álcool. E ainda misturei com coca que é ruim que nem diabo pra quem tem diabetes. E ainda estava trabalhando dois turnos por dia. Que merda, amanhã tenho que acordar cedo! Cadê meu celular? Ah, bosta! Abri a torneira, lavei a mão. Apenas algumas feridinhas sem graça. Empurrei os cacos com o pé pra debaixo da pia, fechei a torneira. Olhei ao redor: banheiro silencioso, ninguém nas cabines. Abri a torneira de novo, lavei o rosto, bochechei um pouco de água e esperei que a porta se abrisse. Parecia que ia abrir a qualquer momento. Meu coração batia rápido e alto: o único som do ambiente. Fechei a torneira, andei bastante receoso até a porta e parei. Doía esperar. Um... Contei. Dois... Três... Olhava a porta sem piscar, respirando ofegante do lado de dentro. Quatro... Cinco... Seis... Nada. Silêncio. Sete... Fui respirando mais devagar. Oito... A música lá fora já era mais alta que minhas batidas. Nove... Levei a mão à maçaneta e girei. Dez.