quarta-feira, 10 de junho de 2015

Mãe e filhos


Rádio: Então, meus amigos, nós não devemos temer a morte pois todos vamos deixar essa existência um dia para acordarmos na vida real. Os medos que criamos aqui são desnecessários. Porém, como não sabemos quanto tempo temos, devemos nos preparar e cuidar dessa existência encarnada como quem cuida de um jardim. Sejamos jardineiros tranquilos e afetuosos. Valorizemos essa oportunidade maravilhosa que é estarmos vivos! Temos nossos momentos de tristeza, dúvida, raiva. Sim, temos. Meus amigos, nesses momentos, devemos ler um parágrafo, dois parágrafos do Evangelho. Ou mesmo uma página se o tempo permitir...

- Se o tempo permitir?
Se tivermos tempo sobrando.
- Tempo sobrando?
Tantos afazeres nessa vida corrida.

O que há de errado comigo? Por que tenho tanto tempo de sobra? Por que ouço o mundo todo reclamar de falta de tempo e mesmo assim acordo meio-dia e como um pedaço de bolo com cobertura de chocolate e passo as próximas horas vendo pornografia ou facebookeando - não necessariamente nessa ordem? Por que a diferença? Não quero ser diferente.

Mensagem no whatsapp: Oi meu filho, seu pai te ligou? Se for possível, transfira 160 reais para minha conta no Bradesco. Estou com o dinheiro aqui, mas não tenho tempo de sair e preciso depositar antes das 16h.

- Oi?
- Transferir.
- Pede pro meu irmão. Ele já está na rua. Acabei de acordar.

* * *

- Eu não tenho mais tempo pra isso. Tenho 25 anos! Não dá pra continuar assim.
- Tira a camisa pra eu ver!
- Eu não posso continuar nessa vida. Pra mim já deu. Que merda é essa? Que merda sou eu?
- Anda logo, tira a camisa! 
- Ok.
- Puta merda, você tá muito magro mesmo. Tá tomando a parada certinho?
- Sabe como é, uma vez que você se acostuma, já era.
- Para de falar merda! Isso é coisa de viadinho adolescente. Você não quer mudar de vida? Não tava agora mesmo aí choramingando que tem 25 anos e não tem porra nenhuma? Abre a boca! Deixa eu ver como tá a situação aí.
- Hum... Ok.
- Puta que pariu! Você tá todo fodido! 
- Muito trabalho, né. 
- Tu voltou a chupar pau?
- Não, não. Só continuo o vício, sabe? Não tenho fome e quando tenho, como demais.
- Para com essa porra! Já te falei que é coisa de viado.
- Ok.
- Se tu precisar falar e tal... Se tiver se sentindo mal, me liga! De verdade aê. Só ligar!
- Ok.
- Sou teu amigo antes de tudo.
- Ok.
- Cê acha que vai dar pra quebrar essa?
- Dívida é dívida, né?
- Ô, sou teu amigo porra! Tô aqui como um amigo pedindo prum amigo quebrar um galho. Tem essa de dívida não.
- Ok. Acho que dá sim.
- Bota essa língua pra fora! 
- São quantas cápsulas?
- 20.
- Caralho! 
- É.
- Caralho! Que merda.
- Ah, não não! Não! Nada de chorar na minha frente! Sabe que sou coração mole. Se tu não puder eu vou entender.
- Não é nada disso não. Eu só tenho pensado muito na vida. No que eu fiz até aqui. Porra, eu não tenho nada, ninguém. Sou nada. Eu me olho no espelho e me vejo sumindo. 
- Vai ser difícil te deixar de boa com os caras lá. Eles queriam você embarcando amanhã. Eu posso até tentar. Mas vai ser difícil. Sabe como a parada com eles é só números, lucros e tal. 
- Acho até enraçado isso que me aconteceu. Foi até tarde. Ou cedo. Sei lá. Se por um lado eu tenho 25 anos, por outro, eu já vivi coisas tão surreais. Meio que à mercê do acaso. Fiz muita merda! Não tem como não achar graça. Mas não tô feliz. 
- Você deixou um rombo muito grande. É difícil passar por cima de uma coisa dessas. Você é realmente maluco.
- Caralho, eu tô rindo, mas não tô feliz! Você tem noção do que é isso?
- Para de falar coisa sem sentido! Tô virado, com uma puta dor de cabeça e não tô nem um pouco no clima pra suas babaquices. 
- Eu vou fazer! Que horas amanhã? Eu vou fazer!
- Aí ó, são os filhas da puta me ligando!
- Pode falar para eles que eu vou fazer. Enfio pelo cu, é mais tranquilo.
- Esse é meu garoto! Seu putinho sacana!

* * *

Reprise no rádio: Meus amigos, nesses momentos, devemos ler um parágrafo, dois parágrafos do Evangelho. Ou mesmo uma página se o tempo permitir. Fazer o culto do Evangelho no lar é de extrema importância para manter um ambiente harmonioso. Lembremos que nossas casas devem ser local  de cultivo e exercício da paz e do amor. Todos os dias, meus amigos, é preciso olhar nosso familiar e amá-lo e perdoá-lo. Não é fácil a convivência em família, mas é preciso tentar, já que as famílias são o gérmen da sociedade. Se não cuidarmos de quem nos é mais próximo, não daremos conta de fazer da Terra um lugar melhor no futuro.

Ué, os meninos deixaram o rádio ligado? E alto ainda por cima! Eles não tem noção da hora. Olha aí, ninguém colocou o lixo também! Mais um dia acumulado. Já tá cheirando até. Se eu não lembro, eles simplesmente não fazem. Impressionante! Hum, não tem nada de bom nessa casa! Tenho que fazer mercado esse final de semana. Não posso esquecer, tenho que anotar. Vou tentar arrastar o Dani comigo. É mais que obrigação dele levar a mãe no mercado, não é? Não gosto de ser esse tipo de mãe que depende dos filhos, mas não é nada demais. Ele faz parte da família. Come e bebe aqui. E esse carro não é só dele. É da família! Sem contar que não faz nada o dia todo. Aliás, tô preocupada com esses dois. Um só vai a faculdade quando quer, outro, nem sei. Ah meu Deus, eu já falei com o Lipe para ele procurar outro trabalho. Essa coisa de motoboy não é segura. Tanta notícia que a gente vê por aí. E ele tem estudo, poxa. Acho que o Lipe tem um sério problema de autoestima. Isso me deixa tão triste. E acho que ele tá entrando em depressão de novo. Mas ele não admite, nunca vai admitir. E nem posso me atrever a abrir a boca. Parece até que minha presença faz mal. Isso me deixa tão triste... Ah meu Deus, por que comigo? Eu tento fazer tudo que posso por esses meninos. O Senhor sabe como foi esse menino na adolescência. Só o Senhor sabe como sofri. Aliás, não posso pensar desse jeito: todo mundo sofreu. Nem gosto de lembrar! Ah... Que fome! 

Rádio: Meus queridos companheiros, obrigado por acompanharem o programa e pelas mensagens tão lindas que nos enviam diariamente! Fiquem com a paz de Deus e se lembrem sempre que esse tempo que nos foi concedido é para ser celebrado e vivido de acordo com as Leis de Deus. Não sejamos pegos de surpresa pelo fim. Preparemo-nos! Amemos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos! Amor e paz, meus queridos! Até a próxima!

Ah... Eu só quero que eles sejam felizes. Meus meninos...

* * *

Lipe, com licença! Já tá dormindo? Ah, deve ter trabalhado muito hoje. Tadinho. Tão bonito, meu filho! Hum, tá um pouco quente. Será que tá com febre? Ai, está tão magrinho. Esse menino não tá comendo direito, só pode.  Essa correria do dia-a-dia. Fica aí por essas ruas, se arriscando. Pra quê, meu filho? Eu sei que você não gosta quando eu falo, mas... Eu me preocupo, ué? Fazer o quê. Olha Lipe, eu vou te contar um segredo. Quando você nasceu, eu não tinha ideia do que fazer. Você, prematuro, um trocinho magrelo toda vida. Não estranhe, eu te achava mais coisa que gente. É engraçado, né? Uma mãe não deve dizer uma coisa dessas, mas meu Deus, você era muito frágil! Vivia com febre. E ainda por cima eu tinha um pavor terrível de te derrubar no chão e você bater a cabeça. Ficava te vigiando sem parar. Você só dormia. Aquilo me deixava pê da vida, porque enquanto você só dormia, eu não conseguia pregar os olhos. E seu pai roncando do meu lado. Ai ai... Eu ficava te vendo respirar, igual agora. Com aquele medo gigante. Achava que você ia parar de repente. Era tão fraquinho, o peito mal mexia. Me perdia ali, te olhando dormir. Era hipnótico. De repente passava o cansaço, o medo. O tempo parava e eu ficava cheia de uma felicidade e uma vontade! Vontade de dar certo, de te dar todo amor que pudesse! Ah... Como era bom! Tô sentindo isso agora, meu filho. Obrigada! Te amo! Deixa eu ir lá falar com o seu irmão. Ele também te ama, viu?

* * *

- Dani, posso entrar? Dani?
- Oi mãe, que é?
- Abre aqui, quero te dar boa noite.
- Tá tá, só um instantinho.
- Aleluia! Que você tá fazendo aqui que precisa trancar a porta? Não precisa disso, meu filho!
- Ok. Que foi mãe?
- Que você tá vendo aí?
- Para mãe! Me deixa! Eu hein. Cadê a privacidade?
- Sem exagero, Dani. Você foi a faculdade hoje?
- Não.
- Ué, não teve aula?
- Não.
- De novo?
- Uhum.
- Está acontecendo alguma coisa lá? Não tô entendendo.
- Não sei.
- Como assim não sabe, meu filho? Você precisa saber! É o seu futuro que tá em jogo. Eu não tô... Eu e seu pai não estamos pagando a mensalidade à toa. Amanhã mesmo eu vou...
- Mãe, mãe, parou! Para de drama! Esse semestre eu só tenho duas disciplinas.
- Já tá acabando, né?
- Uhum.
- Ah, eu vou ficar tão boba na sua formatura. Não vejo a hora! Meu menino virando homem. Daqui a pouco tá advogando num escritório famoso, sei lá. É isso que você quer, certo? Eu nem sei mais. A gente quase não conversa.
- É quase isso, mãe. Eu acho. Não sei. 
- Como assim, meu filho? Você não sabe de nada. Quais são seus planos pra depois que se formar? Não pensou nisso ainda? Não tá acabando?
- Ai mãe, que saco! Não posso nem relaxar à noite?! Que merda!
- Não precisa xingar, Dani!
- Quando acabar eu vou saber o que fazer.
- Mas não tá acabando?
- Tá tá.
- Hum... Depois a gente conversa então. Você deve estar cansado.
- Uhum.
- Vê se acorda cedo amanhã, ok?
- Ok.
- Ah, tô querendo ir no mercado no sábado. Você pode ir comigo?
- Ih, não vai dar não.
- Poxa Dani. E no domingo?
- Se eu acordar cedo... Vou ver.
- Ok.
- Preciso terminar um negócio aqui, mãe.
- Tá. Boa noite, meu filho.
- Boa noite!
- Não ouvi!
- Boa noite, mãe!
- Ah, agora sim. Boa noite, meu filho! Dorme bem!
- Valeu.
- Dani!
- Oi?
- Te amo!
- Hum, ok.

* * *

Obrigada, Deus, por minha família! Que a sua luz esteja conosco, nessa casa, em nossos corações, nos mantendo protegidos e fortes! Que os espíritos de luz, nossos espíritos guardiões, possam orientar nossos caminhos para que possamos  fazer sempre as melhores escolhas. Abençoe o Felipe, Senhor! Que ele consiga arranjar um tempo para comer. Peço humildemente que, se for o caso, que ele encontre um lugar melhor para trabalhar. Mas, por enquanto, proteja suas corridas, por favor! Ah, se ele puder encontrar uma pessoa legal, seria tão tão bom, meu Deus! Sinto que ele precisa de alguém para amar e ser amado. Abençoe também mais novo, o Daniel! Faça com ele se interesse mais pelos estudos, Senhor! Já chegou tão longe, tem tanto potencial, mas parece não perceber. Que ele se forme e seja um excelente advogado. E ajude a sociedade a ser mais justa. Que ele seja um instrumento seu e um cidadão de bem! Obrigada por estar viva, por essa oportunidade maravilhosa que é esta vida! Que essa noite seja uma noite agradável, tenhamos bons sonhos e que amanhã seja um bom dia de sol! Que assim seja! Amém.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Rio



No Largo da Carioca, em 1965, havia um cachorro vira-lata chamado Rio. Alguns enfatizavam o "o" em seu nome, tornando-o quase um "um". "Rium!", chamavam-no. Achavam que tinha origem oriental, por isso imaginavam a grafia de seu nome algo como rihum. Era um cão magricela, todo preto, olhos brilhantes cor de carvão e rabo partido. Dentes branquinhos não se sabe como. "É porque chupa muito osso", uns justificavam. Mas afora mastigar ossinhos por horas a fio, Rio não comia muito. E olha que quase todos os passantes tinham alguma coisa para oferecer, fosse um pedaço de pão ou uma bala. Apenas uma vez animou-se com comida, dando piruetas atrás do rabo quase inexistente. Um grupo de rapazes chupava picolé numa tarde ensolarada de Janeiro na sombra de um prédio. Rio fazia sua costumeira apresentação para o público em sesta, mostrando toda sua destreza atrás de pombos. Era um animal que gostava de agradar. Os rapazes riam, Rio os olhava e quase ria de volta, a língua pendurada para fora da boca. O mais novo dos rapazes assobiou chamando Rio para perto, e ele foi num tempo só, cão carente que era. O rapaz se ajoelhou e acariciou sua cabeça. "Bonzinho, bonzinho".  Os demais o alertaram sobre carrapatos. Mas o cachorro não fedia e só costumava ter carrapatos no verão. Nesse, em especial, não pegou. O rapaz lhe ofereceu o picolé e Rio pôs-se a lamber afobadamente. Deteve-se na atividade por um bom tempo; o cotoco de rabo a balançar freneticamente. Os demais rapazes já conversavam sobre algo outro, o mais novo, todavia, viu  naquele focinho melado e satisfeito do cão magricela tal beleza que ficou alegre pelo resto do dia. Hoje, esse moço tem setenta e um anos, continua morando na Tijuca próximo à Saens Peña, raramente se lembra de Rio e nunca mais ofereceu picolés a cães de rua. 

Voltando à história de Rio, preciso dizer que tenho só dois tempos para contar: o do início e o do fim, com pequenos gracejos, dos que o cão aprontava, pontuados no meio. O antes e depois disso, não sei. Bem, o que ele mais gostava de fazer era correr atrás dos transeuntes. Pessoas riam quando corriam, pombos não. Os desavisados do Largo, se assustavam e saíam correndo, fazendo o cão correr ainda mais animado, saltitante, sorridente. Havia algo hipnotizante em seu galopar desengonçado. Ele se tornou, naquele ano, uma espécie de totem. Foi o auge de sua provável breve vida. Rio passou a representar para alguns o espírito carioca, do Largo da Carioca, da cidade. Um carioca legítimo. Ele passou a ser assunto de descontraídas conversas. Certo dia, um o chamou de Rio e o nome pegou, até virar rihum e perder um pouco o sentido. Sua história, antes ou depois, como já disse, não sei. Sei apenas daquele tempo na Carioca. Apareceu numa manhã de chuva, aconchegando-se debaixo de uma marquise, onde um senhor fumava e tomava café. O homem o olhou e espirrou. Era alérgico a cachorro e o enxotou. Rio foi pra chuva e correu. Correu atrás de coisa alguma - era uma de suas apresentações. De um lado para o outro, sem motivo. O senhor, acreditando se tratar de um cão louco, chamou-o de volta. Apesar de louco, não espumava - "é um bom sinal", pensou o homem, condoído. Então Rio fez casa por ali. Sentia-se seguro, acolhido, chupava ossos, corria atrás de pombo e de gente. Era um animal besta. As crianças o adoravam, queriam rolar no chão junto dele. "Esse chão é sujo!", "Esse cão é de rua, tem doença!", "Não toca nele!", "Não meu filho, ele pode morder!" A maioria das crianças porém insistia, sabendo intuitivamente que podiam confiar em Rio. "Ele sorri, mamãe!", disse uma pequena que se desvincilhou da mão da mãe e correu para abraçar o cachorro. Ele lambeu seu rosto e a empurrou no chão. A menina riu, Rio também. E lambeu a face, saltitando e voltando. A mãe gritou. Por fim chutou o cão e puxou a filha, dando-lhe um tapa em seguida. "Não se pode confiar em alguém só porque ri", falou. A pequena abriu a boca a chorar. Por acaso o senhor do primeiro dia estava lá, no mesmo bar, assistindo à cena. Ele riu também e chamou Rio, que chegou mancando e se aconchegou perto de seus pés.

O sumiço de Rio foi sentido pela primeira vez em uma tarde confusa e cheia de gente. Passaram dois estudantes com um cacho de bananas nas mãos. Procuraram o cachorro em seus lugares de descanso habituais até chegarem ao bar de seu Tadeu. O dono do bar disse não ter visto o cão há dias. Ele não sentiu sua ausência porque, no fim das contas, a presença de Rio o incomodava. Desde que Rio havia escolhido seu bar para repousar, pessoas despejavam resto de comida, frutas e ossos no chão próximo. Ele discutia irritado no início, depois cansou e passou a varrer em silêncio, com a raiva contida para não assustar os possíveis clientes. Algumas daquelas pessoas até pediam um suco de vez em quando, ou uma empada. Naquele dia lhe fizeram a mesma pergunta centenas de vezes: "Seu Tadeu, o senhor viu o rihum? O senhor viu o Rio?" E ele respondeu que até outro dia o cão estava lá, correndo feito louco. Não sabia de nada. As pessoas foram todas embora desapontadas. É preciso esclarecer que Tadeu na verdade gostava de animais, mais especificamente pássaros. Ele era viúvo há catorze anos na época e desde muito pequeno havia acompanhado o pai nos cuidados aos periquitos, canários, curiós e companhia. Levou o hábito para sua vida de casado e de viuvez. Mantinha gaiolas por toda sua pequena casa nos fundos do bar. Era sabido que o homem havia dado cabo de todos os gatos da vizinhança. Ele amava profundamente todas suas aves. Cortava jilós, escolhia sementes, punha gaiola para fora, depois para dentro, dia após dia, cada uma delas. Limpava-as toda noite, assobiando para os pequenos pássaros. Sabia assobiar todos os diferentes cantos e sentia imensa satisfação quando respondiam seu assobio. Uma semana antes do sumiço de Rio, o homem ouviu um estrondo vindo de sua casa. As pessoas do bar se assustaram. Ele correu para dentro. Voltou um longo tempo depois, os olhos vermelhos de raiva, a mão segurando na pele atrás do pescoço do cão. Jogou-o para fora do bar, xingando. "Que houve?", perguntaram. "Essa peste invadiu minha casa e derrubou duas gaiolas". Riram. "Mas é só um cachorro bobão", "Te garanto que não teve a intenção". O homem, ainda mais furioso, respondeu: "Ele podia ter esmagado meu curió galador se não tivesse chegado à tempo". "Ah, é só uma cachorro! Não fez por mal", "Estava brincando". Os risos foram mais contidos. Tadeu pediu licença asperamente e foi terminar a leitura do jornal. Por esse motivo, algumas pessoas tiveram certeza absoluta de que o dono do bar havia encomendado a morte de Rio. Outros, mais esperançosos, acreditaram que ele havia chamado a carrocinha para levar o cachorro ou mesmo que Rio fora adotado. O fato é que, nas semanas seguintes desde o sumiço, o bar passou a ter menos frequentadores. Chateado, o homem começou a se descuidar no atendimento, tornando-se cada vez mais grosseiro. E depois, o dinheiro curto o obrigou a comprar produtos de menor qualidade. As pessoas que eventualmente retornaram e as que de nada sabiam não voltaram depois por conta sabor amargo do café. Tadeu demitiu suas ajudantes Ana e Clara, passou a comprar saldados gordurosos com outra pessoa e não vendeu mais as famosas empadinhas de frango. Seu público foi minguando e migrando para outros bares. A cidade cresceu, mudou. Hoje, Tadeu é morto. Rio também, provavelmente. Obviamente. Deve ter vivido pouco. Disso não sei - imagino. Todo cão de rua tem vida breve, não?