quinta-feira, 31 de março de 2011

Boiando


Eu tô boiando e nem sei porquê. De alguma forma, esse é o único jeito de se boiar: quando você não sabe nada, não quer saber, ignora, passa o tempo, corresponde ao ócio natural das coisas e desvaloriza todos os possíveis movimentos a seguir. Se algo acontecer, é certo que virá de fora. Para piorar minha situação, eu tô boiando de bariga pra cima - tudo do fundo eu só sinto de leve sob minha pele, nas costas largas do corpo tolo. Ouço também, lá de longe, o que chega perto do ouvido, e o que chega perto nem sempre é real, já que, acima de mim, tem todo um caos gritando, moldando as reações da superfície das águas. E eu vou conforme esse ritmo. Sinto ser um mero escravo do acaso. Vai ver que acaso só existe mesmo quando deixamos. Deixamos acontecer ("a vida me levar"), deixo minha opinião abaixo da dos meus amigos, deixo meus sentimentos esquecidos, louco por gritar, deixo só um sussurro escapar, deixo-me levar ("vida leva eu"), vagando, sem dor, sem nada numa calma disfarçada de tudo. Não nado, jamais mergulho! Mas deixo guardada a confiança no mundo de fora, pois ele me conduz, ele me faz. Quem sou eu? Que me importa, se me dizem que sou, eu boio. Acredito, não nego, sou! É, eu tô boiando de verdade.


Mas se parar pra pensar, não tô todo resumido nessa ação (ou inação). Não sou tão simples assim. "Vazio?" Não, não sou vazio. Muito menos cheio. A vida é muito curta pra se achar a raiz de qualquer coisa, seja de mim ou da onda que bate. Se você sente os sintomas de si, é preferível tratá-los de uma vez, por mais que retornem o tempo todo. Não há tempo pra dúvidas! Nos céus (ou mares), os tempos são outros. Tenho certeza que no meio do caminho, a cada retorno do sintoma de si, você descobre um novo milímetro da raiz (mesmo sem saber que é algo essencial). Aí eu me ferro, porque é tanto tempo que não tenho tempo de perceber que descobri, e aí parece que tudo está infinitamente coberto. E está! E eu, boiando em cima de tudo, deslizando no véu d'água. Deixo assim, deixo que as circunstâncias banais da ocupação humana forjem importância. Esse tempo de trabalho até que existe mesmo, embora nem se possa sonhar saber sua profundidade (vai ver essa não é a medida certa...). E me enganam esse dias cansativos, dão uma sensação de completude (ou finitude), me fazendo desmaiar na cama e desperdiçar um bom sonho à toa. O cansaço nem sempre faz jus ao tempo, talvez ele apenas simbolize a falta de manejo com nossos reais potenciais, quem sabe? Eu sei lá!


E, ainda aqui, pra lá e pra cá sob as ondas, eu escuto o que o mar quer me dizer. Ele não é muito inteligente e não aprendeu a coerência humana. Mas ele me deixa entender, como se eu traduzisse suas palavras através de uma nova habilidade subitamente descoberta, que começa bem no centro de mim, aqui no peito; ah, lembrei: eu sinto o que ele diz com a alma. De vez em quando ela aparece... Boiando, ainda estou à mercê dele, mas o tempo mais uma vez me toma de cabeça pra baixo e trapaceia, me forçando a pensar no que estou sentindo. Apesar de todo o mundo de fora, o silêncio me afunda no falatório de dentro, e o que escutava como o mar, não era o mar. Eu só tô na superfície, e com os toques esporádicos que vêm do fundo e as vozes confusas na cabeça, me sinto em pleno acordo com o tempo e deixo de boiar. Ao invés decido alguma coisa. Acho melhor mergulhar até o fundo, mas o instante de sabedoria me diz que não tenho fôlego para tanto. Resolvo então boiar de barriga pra baixo e vislumbrar o que há por lá, mas aí a vista embaça e só vejo vultos. "Suas decisões querem ser grandes demais", o mar me diz. E então penso pequeno, de modo a me encaixar no espaço deixado para existir naquele instante, e resolvo caminhar pela água... "Calma, daqui pra Jesus são bilhões de aulas de mergulho a fazer". Caminhar na água foi a maneira mais sincera, apesar de não muito clara, de me expressar. Ando sem entender muito o mundo, mas como que entendendo pela primeira vez (são tantas as primeiras vezes que parecem repetidas de vez em quando), sinto tudo de uma vez: a água descendo pelo corpo a cada passada, a areia modificando sua textura, as vozes de fulano, fulaninho, fulanão, todas deiferentes entre si, são pessoas diferentes! Que incrível isso!, o Sol, como brilha e desbrilha, como compreende o mar e é delicado com minha pele. A água some, fico confuso e esbarro em alguém com força, na verdade força dele que corria, mas que droga, por que corria? Acordei. Opa, é meu pai. "Pai, por que estava correndo?", o senhor olha pra mim como quem não quer nada a não ser reconhecer alguém do outro lado dos olhos e diz: "Sabe que eu nem sei." Ele ri, eu não. "Mas foi bom, porque mais um pouco a gente ia embora sem te achar!"


Finalmente ali para ir embora, pensar que iam embora sem mim não me deixava tão mal quanto antes. Tenho certeza que saberia pegar o ônibus certo se pedisse uma informação. Seria satisfatoriamente esclarecido por uma senhorinha que ia me achar uma fofura e apertar minha bochecha com entusiasmo. E iria pro ponto e ninguém ia ligar por estar molhado. Esticaria bem o dedo, o motorista ia parar e me estranhar sozinho, se preocuparia e assumiria um compromisso com minha viagem até a casa, modificando sua rotina (o itinerário). E nem ficaria bravo com meus pais pra não me deixar nervoso e sorriria quando me visse abrindo o portão com a chave que guardei dentro dos shorts. Entraria em silêncio, na ponta dos pés, sem acender as luzes, com o mar ainda nos ouvidos. No quarto dos meus pais, os veria dormindo profundamente, e desejaria entrar, mas desistiria da ideia. Ao invés disso, iria pro meu quarto, encostaria a porta, e já seco, não faria outra coisa senão deitar na cama, olhar pro teto e sonhar. Não estaria cansado e, sabendo disso, o tempo fresco entraria pelo meu nariz com o cheiro salgado do fundo.