quarta-feira, 27 de maio de 2015

Rio



No Largo da Carioca, em 1965, havia um cachorro vira-lata chamado Rio. Alguns enfatizavam o "o" em seu nome, tornando-o quase um "um". "Rium!", chamavam-no. Achavam que tinha origem oriental, por isso imaginavam a grafia de seu nome algo como rihum. Era um cão magricela, todo preto, olhos brilhantes cor de carvão e rabo partido. Dentes branquinhos não se sabe como. "É porque chupa muito osso", uns justificavam. Mas afora mastigar ossinhos por horas a fio, Rio não comia muito. E olha que quase todos os passantes tinham alguma coisa para oferecer, fosse um pedaço de pão ou uma bala. Apenas uma vez animou-se com comida, dando piruetas atrás do rabo quase inexistente. Um grupo de rapazes chupava picolé numa tarde ensolarada de Janeiro na sombra de um prédio. Rio fazia sua costumeira apresentação para o público em sesta, mostrando toda sua destreza atrás de pombos. Era um animal que gostava de agradar. Os rapazes riam, Rio os olhava e quase ria de volta, a língua pendurada para fora da boca. O mais novo dos rapazes assobiou chamando Rio para perto, e ele foi num tempo só, cão carente que era. O rapaz se ajoelhou e acariciou sua cabeça. "Bonzinho, bonzinho".  Os demais o alertaram sobre carrapatos. Mas o cachorro não fedia e só costumava ter carrapatos no verão. Nesse, em especial, não pegou. O rapaz lhe ofereceu o picolé e Rio pôs-se a lamber afobadamente. Deteve-se na atividade por um bom tempo; o cotoco de rabo a balançar freneticamente. Os demais rapazes já conversavam sobre algo outro, o mais novo, todavia, viu  naquele focinho melado e satisfeito do cão magricela tal beleza que ficou alegre pelo resto do dia. Hoje, esse moço tem setenta e um anos, continua morando na Tijuca próximo à Saens Peña, raramente se lembra de Rio e nunca mais ofereceu picolés a cães de rua. 

Voltando à história de Rio, preciso dizer que tenho só dois tempos para contar: o do início e o do fim, com pequenos gracejos, dos que o cão aprontava, pontuados no meio. O antes e depois disso, não sei. Bem, o que ele mais gostava de fazer era correr atrás dos transeuntes. Pessoas riam quando corriam, pombos não. Os desavisados do Largo, se assustavam e saíam correndo, fazendo o cão correr ainda mais animado, saltitante, sorridente. Havia algo hipnotizante em seu galopar desengonçado. Ele se tornou, naquele ano, uma espécie de totem. Foi o auge de sua provável breve vida. Rio passou a representar para alguns o espírito carioca, do Largo da Carioca, da cidade. Um carioca legítimo. Ele passou a ser assunto de descontraídas conversas. Certo dia, um o chamou de Rio e o nome pegou, até virar rihum e perder um pouco o sentido. Sua história, antes ou depois, como já disse, não sei. Sei apenas daquele tempo na Carioca. Apareceu numa manhã de chuva, aconchegando-se debaixo de uma marquise, onde um senhor fumava e tomava café. O homem o olhou e espirrou. Era alérgico a cachorro e o enxotou. Rio foi pra chuva e correu. Correu atrás de coisa alguma - era uma de suas apresentações. De um lado para o outro, sem motivo. O senhor, acreditando se tratar de um cão louco, chamou-o de volta. Apesar de louco, não espumava - "é um bom sinal", pensou o homem, condoído. Então Rio fez casa por ali. Sentia-se seguro, acolhido, chupava ossos, corria atrás de pombo e de gente. Era um animal besta. As crianças o adoravam, queriam rolar no chão junto dele. "Esse chão é sujo!", "Esse cão é de rua, tem doença!", "Não toca nele!", "Não meu filho, ele pode morder!" A maioria das crianças porém insistia, sabendo intuitivamente que podiam confiar em Rio. "Ele sorri, mamãe!", disse uma pequena que se desvincilhou da mão da mãe e correu para abraçar o cachorro. Ele lambeu seu rosto e a empurrou no chão. A menina riu, Rio também. E lambeu a face, saltitando e voltando. A mãe gritou. Por fim chutou o cão e puxou a filha, dando-lhe um tapa em seguida. "Não se pode confiar em alguém só porque ri", falou. A pequena abriu a boca a chorar. Por acaso o senhor do primeiro dia estava lá, no mesmo bar, assistindo à cena. Ele riu também e chamou Rio, que chegou mancando e se aconchegou perto de seus pés.

O sumiço de Rio foi sentido pela primeira vez em uma tarde confusa e cheia de gente. Passaram dois estudantes com um cacho de bananas nas mãos. Procuraram o cachorro em seus lugares de descanso habituais até chegarem ao bar de seu Tadeu. O dono do bar disse não ter visto o cão há dias. Ele não sentiu sua ausência porque, no fim das contas, a presença de Rio o incomodava. Desde que Rio havia escolhido seu bar para repousar, pessoas despejavam resto de comida, frutas e ossos no chão próximo. Ele discutia irritado no início, depois cansou e passou a varrer em silêncio, com a raiva contida para não assustar os possíveis clientes. Algumas daquelas pessoas até pediam um suco de vez em quando, ou uma empada. Naquele dia lhe fizeram a mesma pergunta centenas de vezes: "Seu Tadeu, o senhor viu o rihum? O senhor viu o Rio?" E ele respondeu que até outro dia o cão estava lá, correndo feito louco. Não sabia de nada. As pessoas foram todas embora desapontadas. É preciso esclarecer que Tadeu na verdade gostava de animais, mais especificamente pássaros. Ele era viúvo há catorze anos na época e desde muito pequeno havia acompanhado o pai nos cuidados aos periquitos, canários, curiós e companhia. Levou o hábito para sua vida de casado e de viuvez. Mantinha gaiolas por toda sua pequena casa nos fundos do bar. Era sabido que o homem havia dado cabo de todos os gatos da vizinhança. Ele amava profundamente todas suas aves. Cortava jilós, escolhia sementes, punha gaiola para fora, depois para dentro, dia após dia, cada uma delas. Limpava-as toda noite, assobiando para os pequenos pássaros. Sabia assobiar todos os diferentes cantos e sentia imensa satisfação quando respondiam seu assobio. Uma semana antes do sumiço de Rio, o homem ouviu um estrondo vindo de sua casa. As pessoas do bar se assustaram. Ele correu para dentro. Voltou um longo tempo depois, os olhos vermelhos de raiva, a mão segurando na pele atrás do pescoço do cão. Jogou-o para fora do bar, xingando. "Que houve?", perguntaram. "Essa peste invadiu minha casa e derrubou duas gaiolas". Riram. "Mas é só um cachorro bobão", "Te garanto que não teve a intenção". O homem, ainda mais furioso, respondeu: "Ele podia ter esmagado meu curió galador se não tivesse chegado à tempo". "Ah, é só uma cachorro! Não fez por mal", "Estava brincando". Os risos foram mais contidos. Tadeu pediu licença asperamente e foi terminar a leitura do jornal. Por esse motivo, algumas pessoas tiveram certeza absoluta de que o dono do bar havia encomendado a morte de Rio. Outros, mais esperançosos, acreditaram que ele havia chamado a carrocinha para levar o cachorro ou mesmo que Rio fora adotado. O fato é que, nas semanas seguintes desde o sumiço, o bar passou a ter menos frequentadores. Chateado, o homem começou a se descuidar no atendimento, tornando-se cada vez mais grosseiro. E depois, o dinheiro curto o obrigou a comprar produtos de menor qualidade. As pessoas que eventualmente retornaram e as que de nada sabiam não voltaram depois por conta sabor amargo do café. Tadeu demitiu suas ajudantes Ana e Clara, passou a comprar saldados gordurosos com outra pessoa e não vendeu mais as famosas empadinhas de frango. Seu público foi minguando e migrando para outros bares. A cidade cresceu, mudou. Hoje, Tadeu é morto. Rio também, provavelmente. Obviamente. Deve ter vivido pouco. Disso não sei - imagino. Todo cão de rua tem vida breve, não?