sábado, 8 de outubro de 2011

Sobre bruxas e algo que foge


No escuro, a única coisa segura era seu coração. Ele não batia conforme ela dançava. Era um estado de consciência além do que conheciam as outras ao seu redor. Todos paravam para deixá-la sozinha na pista. Até a música não era mais independente; nada mais que mera escrava de seus movimentos. Ela era o nada de dentro com toda força possível, como que uma mosca contra toda violência dos mares sempre lutando consigo de olhos fechados. “Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu...” era o ritmo de lá. E os braços se erguiam além do peso da carne, revelando as vibrações magnéticas saídas da alma para guia-los como marionetes. Os pés já pertenciam ao reino dos céus e as mãos iam sem reverência alguma até o bico do seio excitado, tocando de leve o tecido, que grudava na pele suada. E ela sondava os machos com as coxas no alto e o vestido inconvenientemente não vulgar: uma hippie guerreando com a prostituta; ela única era dúbia, era pura, puta, era duas.

Antes de sair de casa naquela noite, dormiu o sonho mais estranho que tivera: estava descalça na mata quente e dava saltos altíssimos para não queimar a sola dos pés. A cada salto, via mais de perto aquele ser estranho, curvado, barulhento, comendo algo. Tinha ares de roedor, mas era mulher velha e esmigalhava algo com os dentes. Saltando mais e mais perto, ela via suas mãos juntas levando à boca uma boneca de gente e estilhaçando seus ossos. Esta parecia com vida, mas não gritava. Parecia que já tivera vida em algum tempo e, embora, os olhos estivessem abertos, ela não estava ali sendo devorada. No fim, a velha olhou com olhos de ódio profundo e berrou algo em outra língua. Nesse instante ela acordou e seguiu sua rotina inalterada. Ao sair notou o tempo que mudava. As folhas faziam arruaça no vento, e o céu se partia em mil, cortado por raios, numa umidade retida debaixo do nariz que causava arrepios. Pegou o casaco e entrou no táxi: “Para on11 na Francisco Otaviano, por favor!” Estava estressada e só queria dançar. “Caramba menina, parece que te vi ainda outro dia no Jornal Nacional! Você tem que ser parente daquela pequena que denunciou lá aquele troço de comunidade sei lá o quê hippie...” o motorista se virou para olhar melhor, mas não conseguiu distinguir bem no breu do banco de trás e se contentou em soltar uma risada de incredulidade. Quando ele partiu com o carro, ela se sentiu à vontade pra falar: “Era a comunidade do Prospectus Ninth Dimension, com sede oficial no Alabama e não, não sou ela.” Ele prestou atenção redobrada na voz, mas algo pareceu confundi-lo e passou a nem ter certeza se era realmente importante aquilo tudo: sua vida, o táxi, receber ou não o dinheiro da passageira, afinal a vida era tão estranha e rotacional, o mundo era redondo e ele podia cair a qualquer instante e estaria pronto para isso... se liberar, se jogar... “Hã? Como são as coisas, né?” Num suspiro voltou a si com segurança.

No inferninho barato a não sei quantas quadras da on11, a luz do banheiro masculino piscava a cada três minutos e o tempo só fazia diminuir a cada piscada. Se ficava mais forte, dava que ia parar e voltava à vida, mas depois piscava num tempo diminuído de intervalo. Dentro do segundo compartimento, com as mãos fixas nas divisórias, ela gemia de prazer. O careca entre suas pernas perguntara ainda na boate se ela estaria afim da melhor chupada de sua vida. Ela respondeu que não, que tinha namorado, mas ele ofereceu uma balinha, duas balinhas, e ela engoliu e rumou ao êxtase. Com a cabeça encostada na parede pichada, logo abaixo de “gozei aqui”, ela gritou uma sensação que subia ao mesmo tempo que a vontade de botar pra fora todo seu tédio e tola de vergonha, se concentrou em algo que a assustou: outro sonho, dessa vez um que existiu em algum lugar do passado (de qualquer forma, mesmo que não tenha existido, devia valer alguma coisa na vida, porque era importante conhecer). Ainda menina, sempre se via dentro do carro indo para um novo lugar, escondida e amordaçada pelos pais, que só a alimentavam com palavras vagas e abraços fingidos que já não diziam nem a primeira metade de segurança. Dessa vez foram para uma casa de extensa sala de visitas, com piso de mármore e uma longa escada bem em frente. Haviam pessoas lá, vozes, e elas receberam os pais com abraços firmes e apertos de mão. Deviam ser umas doze pessoas, e quando a menina já estava pensando ter se tornado invisível, eles desceram pela escada correndo, assustadores: enormes cães, seis cães, direto na sua direção. Ela não podia ser mais feliz, toda lambuzada de baba e ouvindo latidos de quem a queria bem. Recordou as infinitas horas no jardim dos fundos, correndo com os amigos, rolando pela grama, ouvindo o crack das folhas numa alegria de nunca. Havia um jardineiro ali, seu melhor amigo humano. Velho de uns cento e trinta anos, meio gigante, meio duende de orelhas caídas; na época a menina pensava que ele era a mãe dos cachorros e tinha o maior respeito por aquele senhor. Lembrava das conversas demoradas sobre assuntos perdidos na memória. Quando seu analista lhe perguntava sobre o que falava, ou sobre onde seus pais ficavam, o que faziam, se a viam de vez em quando, ela não sabia responder. Era como se eles tivessem sumido por uma vida e voltassem apenas perto de sua morte, quando teria que partir mais uma vez para outra casa, ou para um trailer, uma cabana, dias e dias em aviões, ou em companhia de estranhos, crianças de olhos puxados e pele morena que não falavam muito, ursos do outro lado do rio, livres e inatingíveis. E dos pais, não sobrava uma palavra. Ficavam lá atrás na história, como uma sombra que despertava a lealdade rancorosa. Ela gozou num grito arranhado e levou o punho à boca como se fosse comê-lo. Tinha raiva de si por chorar, mas as lágrimas já estavam por toda parte.

No dia seguinte acordou bêbada tarde demais e faltou o trabalho. Nem teve coragem de ligar para uma colega, a única em quem confiava. Deixou do jeito que estava. Sentia que a sombra se aproximava e ficava sussurrando “é hora de partir...” e queria chorar o dia inteiro agarrada a sua pelúcia de Pooh, o ursinho. À medida que o dia ia passando, ela ia secando. À tarde lembrou dos longos passeios de barco quando tinha treze anos, ouvindo centenas de nomes de peixe. E tinham gosto de cereja ou amora, não se fazia entender direito dentro da cabeça, na língua. Ah, e lembrou que uma vez conheceu a avó, pelo menos pensa assim, uma senhorinha muito doce de pele bem morena que descascava laranja arriada no chão, de pernas abertas com a saia lá nos joelhos. Ela dava uma bronca na mãe, que permanecia de cabeça baixa sem soltar uma palavra, e de vez em quando, olhava pra menina com um sorriso atraente e acolhedor dos lábios. Pedia que ela girasse a casca no alto igual um peão com um laço. E no a, b, c, d, e, f, ela parou no l e riu sem pudores quando percebeu que estava confortável. Na sua história também houveram peões e políticos e havia transado com pelo menos três de cada espécie. A tarde foi sumindo. Sua amiga ligou, perguntou por que havia faltado. Ela respondeu que estava passando mal, a amiga se assustou e deduziu gravidez, o que ela negou inalterada. “Por que você não vem aqui em casa? Vai se sentir melhor! Estamos fazendo uma reuniãozinha.”, a amiga convidou. “Não, já disse que não curto esses seus estudos. Sei lá, tem alguma coisa que me arrepia nisso e me joga pra longe.”, ela respondeu, insegura como nunca, mas abalada e viva novamente. No fim da conversa, as palavras foram sendo ditas em tons baixos, e foram se tornando sérias, e, quase como confissões, convenceram a mulher a ir até a casa da amiga.

Eles estavam em circulo, cada um com seu respectivo livro, mas o clima era leve ainda, e comiam também. Havia salgadinhos, cerveja ou vinho, e bolo de chocolate com maconha. “Sinta-se a vontade, Ana. Pegue o que quiser!” ela vestia uma longa saia de estampas abstratas, e não vestia nada da cintura pra cima. Seus seios pesados caiam e levantavam levemente enquanto ela pegava a travessa com os bolos fatiados: “Hum, você tem que provar esse bolo especial (ela fez o gesto de aspas com as mãos) que a Japa fez!”, riu bobamente como se fosse criança brincando com o proibido “Hum... divino!”, gargalhou cuspindo bolo pra todo lado. Ana pensou em gritos fantasmagóricos de bruxas de verdade. “As bruxas de verdade sentem a influência de um fantasma ou coisa parecida? Como funciona?”, ela se juntou ao círculo, acariciando o gato que se aproximou. Logo vieram mais dois e ainda um menor que todos os que já tinha visto, devia ter uns dez centímetros de altura. Ela o colocou no colo, desprezando os demais. “Esse é o McRonald, meu gato anão!” a Japa era uma mulher baixinha e gordinha, de sutiã e calcinha, com meias pretas até o joelho estampadas de corações amarelos e azuis. “Ele ajuda a transmutação de energias. Pode parecer pequeno, mas esse peste é mestre em suportar o caos.” Ana deixou que o gato fosse até a dona. Outra pessoa falou: “Ele é um dos pilares-chave pra que o círculo não desmorone.”. Do nada, Ana sentiu uma inquietação crescer no peito. Queria sair dali já, estava se sentindo incompleta, abafada, e os gatos começaram a miar, as pessoas foram rindo alto demais, tudo numa sintonia da qual ela não fazia parte. Estava suja. “O que você quis dizer com bruxas de verdade, hein mocinha?”, a amiga voltava da cozinha com duas taças de vinho nas mãos e os seios suando por debaixo. Escorria pela barriga da mulher e marcava contra a luz. Ana quis chorar, se levantou. Pegou a taça e levou a amiga até a porta, falando ao pé do seu ouvido: “Preciso ir, preciso vê-lo! Acho que fui muito má com ele. Outro dia fico pra assistir, ok?” a amiga a olhou nos olhos como sua mãe fizera há muito tempo: “Eu te falei, não falei? Poxa, um cara tão bom...” Ela pegou a taça da mão de Ana e colocou sobre a mesa. Levou a unha do polegar à boca e, pensativa por um tempo, se resolveu, olhando para outra: “Tá, vai lá! Mas me conta como foi depois! Não me deixa no escuro, Ana!” McRonald roçou na perna de Ana e ela o recolheu, com remorso por tê-lo odiado antes. “Leve-o! Você precisa dele! Ele sabe dessas coisas!”, a Japa gritou de longe. “Quando voltar, me devolve, sim?”

Ana desceu as escadas correndo, com o gato tentando escapar da bolsa, escalando a alça. Apertou o botão e o apito abriu a porta. Lá fora, lembrou do fim do outono, de como o tempo estava revirando tudo à procura de si. O celular anunciou nova mensagem de voz. Ana colocou o gato no banco de uma moto estacionada ali em frente e ouviu: “Eu sei que não quer me ver e que quanto mais me humilho, menos desejável me torno. Mas preciso te ver... dessa vez é urgente, resolvi tentar aquele troço e passei. Tô indo pra Austrália na terça. Me encontra no Bukowski! Por favor!” Outro apito, termina a mensagem e a porta se abre. “Ei, tira esse bagulho da minha moto, tá arranhando tudo!” O homem devia ter uns quarenta e poucos anos e uma barba espessa longa demais pros normais da cidade e da idade, mas não estava de óculos escuros, tinha olhos verdes na verdade. “Ah, desculpe.” Ana recolheu o bicho e o recolocou dentro da bolsa. Queria dar praquele homem tão urgente quanto queria ver seu namorado. “Prazer, sou Ana!” O homem só fez que sim com a cabeça e colocou o capacete, olhando a moça de esguelha, desconfiado. “Você não é aquela garota do...” Ana o interrompeu: “Pode me dar uma carona?” Ele olhou mais desconfiado ainda, pensando nas possibilidades, na interrupção, na vida, na moto, nos pequenos arranhões debaixo do seu traseiro, no traseiro da prostituta que ia ver, na mulher bem na sua frente... A confusão se desfez quando a voz da garota voltou à cena: “Eu faço valer a pena!”

McRonald roçava na perna de Ana enquanto a garota gemia, de tronco erguido, com o homem de quarenta e poucos anos deitado na sua frente, com seu pênis ereto à mercê da sua vontade. Ana não pensava em nada a não ser a mesma vaga repetição de eus, dessa vez misturados a um lodo fétido e bosta de gato. Queria arrancar a camisinha e queimar, sentindo o corpo arder e as mãos dançarem. Queria ter a sensação da dança eterna, podendo estar além dali, de tudo, no comando do corpo. De repente, teve certeza do que fazer. Uma vontade subiu pelo esôfago e quis vomitar, mas ela segurou. E só pensava nele, nele, nele, nele e nele. As imagens dele piscando e piscando como a luz no banheiro masculino de um inferninho qualquer, e ia aumentando em intensidade e em ritmo numa carreira de limites constantemente batidos. Tinha que expurgar esses demônios que entravam. Ela deixava – uma porta aberta, a escada por onde desciam todos os tipos de animais, buscando a finalização da palavra segurança. Ela deixava que seus pensamentos lhe dissessem o quanto de vadia fora naquelas noites onde decidia o destino, permitindo que nada lembrasse o que podia fazer ao invés do que estava acostumada a ser. Contudo, foi educada, deixou que ele terminasse e pediu que a deixasse no bar Bukowski. Ele também foi simpático e, estando devidamente alimentado, fez o que ela pediu. Quando chegaram, ele tentou beijá-la a força. “Não, por favor, senhor!” Ana o desviava com as mãos. “Não, pelo amor de deus, me deixa em paz!” Ela não pôde fazer mais nada: ele a beijou. Sua língua disse para a dela que não podia aparecer daquele jeito na frente do amor, que devia se limpar antes. Ela o olhou meio que com raiva, meio que assustada. “O que você sabe?”, perguntou. Ele se fez de canalha com a boca: “Eu te levo lá!” Ela subiu novamente na moto e eles foram.

Aparentemente era só mais uma lanchonete daquela franquia, mas o homem falou baixo com o gerente (um adolescente espinhento) e ele indicou que passassem pros fundos da loja. O homem guiava Ana com sua mão na dela, e ela quase que se apaixonava. Lá atrás, uma salinha com uma placa escrito “depósito”. Dentro, uma mulher sentada de costas no chão. “Quem tá aí?”, ela perguntou, sem se virar. “Sou eu.”, ele respondeu. Soltou a mão de Ana, que balançou perdida no espaço entre o chão e a alma, e foi até a mulher. Cochichou algo em seu ouvido. “Hum, peça que se aproxime, por favor. Tenho que ver se é possível.” Ele fez que Ana viesse até ele com a mão. O gato miou alto e fugiu prum canto entre os pacotes de pão. Ana olhou para a mulher e notou que usava perucas douradas e vestido de paetês, brilhantes pela fresta de luz debaixo da porta; mas não se enganou era uma velha igual a do seu sonho de dias atrás. A senhora não olhou, apenas pediu que Ana se deitasse de frente pra ela com a cabeça entre suas pernas. O homem saiu da sala e Ana sentiu um medo absurdo, deixando que as lágrimas escorressem livres pelo rosto. A bruxa de verdade foi sussurrando rápido um latim ferrado, para a seguir levar os dedos nos olhos de Ana e fechá-los. As palavras começaram a ficar mais altas até que gritassem pra quem quisesse ouvir: “Peço que interceda por esta puta que quer retomar a pureza!”, Ana podia entender, mas ainda era latim. Na cabeça, tudo queimava assim como os documentos dos pais quando partiram pro tal retiro após terem chantageado uma Ana mais moça, muito atordoada: “Mas vocês têm certeza de que não vão nem me falar do que se trata?” ela chorava, só sabia ter uma sensação ruim no peito, de um amargor indistinto, a loucura do não-saber, da dúvida, sem promessas ou compromissos com o futuro, apenas uma obrigação de fuga imediata. "Eu não quero mais fazer isso!" Nada fazia a paz, nada queria acordar. Era como se ela nem ao menos tivesse nascido. "Eu não sou mais sua putinha particular!"Os pais viviam de longos passeios, conhecendo todo o resort, como belos turistas. Davam risadas, provavam frutas, assistiam os rituais da cultura local, entusiasmados. Ana só não intuía o que fazer porque ainda não tinha sido atingida. Uma noite, acordou no susto depois de um pesadelo, achando que alguém a olhava nua, e ouviu uns sons estranhos vindos da rua. Não ousou olhar, mas não conseguiu mais dormir e ficou desperta esperando o dia amanhecer. Longas horas desesperadas, aflitas – 105120 horas... Assim que o sol se revelou caminhou para fora da casa e andou por tudo. Os pés já doíam, não mais fortes que seu sufocar constante, mas ainda doíam e queimavam. Num instante qualquer disparou a correr para diminuir a dor que só aumentava. E daí que ficou sem ar e tudo ardeu lá dentro e ela começou a gritar e gritar. Correndo e gritando permaneceu, e buscando e buscando, até que tropeçou em algo. Era um animal: um cão morto, seus ossos já quase aparecendo. Ana ficou olhando por um bom tempo e sentiu alguma coisa profunda chegar à superfície. “Rearranjo!” – Abriu os olhos e a bruxa estava de costas. “Saia!” ela não entendia, nem sabia onde estava. O gato chegou subindo pela sua roupa e começou a lamber suas feridas no rosto. A moça se sentou e começou a tatear as bochechas, sentindo grudentas as lágrimas e seco o sangue. Eram pequenas aberturas acima dos olhos, nas bochechas, no queixo – nada com que devesse se preocupar imediatamente. Olhou nos olhos do bicho e sorriu. “Vai embora já!”, a velha fez um gesto imperativo com a mão e alguns sacos de pão caíram. “Suma!”, a luz pelo vão da porta se intensificou e tremeu, alfaces começaram a voar mesmo sem vento e os pães se esmigalharam como se pisados pelo invisível. Ana levantou e correu para porta. “Muito obrigada!” Pegou a bolsa, enfiou McRonald lá dentro e saiu sem conter a gargalhada alta.

“Pra Álvaro Ramos, por favor!”, ela disse para o taxista. Estava amando, a menina. Discou o número dele e esperou chamar oito vezes até ser enviada para a caixa de mensagens: “Oi, Lucas, sou eu. Tô indo praí agora. Me espera na porta. Beijo.” O táxi parou em frente ao bar. Ela não viu Lucas na porta e resolveu ficar esperando. O relógio marcava duas e sete da manhã. Disse consigo que ia esperar até três e meia do lado de fora, sem beber, sem cheirar, sem transar, sem pirar, sem reclamar. Estava decidida a vivenciar o que via ao seu redor, rindo por qualquer coisa. Entre esperas, foi procurar o celular na bolsa e não encontrou o gato. Algo se rompeu. O curativo era frágil demais! Na sala nos fundos da lanchonete, a bruxa abriu os olhos assustada e balançou a cabeça negativamente, fazendo tutututututu com a língua nos dentes. Ana se deixou levar pelo desespero do tempo e os minutos ficaram longos demais. Ela olhava o relógio e ia ficando cada vez mais como antes: angustiada, querendo fugir. Táxis passavam e ela pensava nos peixes que pulavam pra dentro do barco; ela ria, seu pai ria. Queria, mas se segurava firme. Firme, não mole como os pênis dos amigos de seu pai. Prendia a respiração, olhava para tela no celular. E nada dele. Segurava, prendia. Táxis passavam e não paravam. O nervosismo aumentava. Borrões amarelos. Luzes, faróis. O semáforo ia do verde pro amarelo pro vermelho pro verde pro amarelo pro vermelho... Tentava respirar, segurar o ar lá dentro... (AHHHHHHHHHHHHHHHH!) – na sua mente nada além de um grito sem fim. Entrou num táxi e foi pra casa. Colocou um pacote de absorventes, sua nécessaire, papel higiênico; foi até o varal, apanhou três calcinhas, dois sutiãs, abriu a gaveta e jogou tudo dentro da mala que ficava pré-pronta ao lado da porta. O táxi esperava lá embaixo. No banheiro, ela escovou os dentes se olhando no espelho. Tinha mais medo que raiva, então a fuga se justificava. Pensou nele uma última vez e depois teve uma visão da bruxa andando pelas calçadas da cidade, perdida e louca, procurando alguma coisa que, talvez, fosse Ana. Cuspiu e desceu correndo com a mala quicando nas escadas; não tinha tempo para elevadores. “Oi, Ana!” A mulher fez um sorriso audível “Acabei de receber uma ligação da sua mãe!” Ana gelou. “Eles acabaram de chegar na Bélgica e estão bem. Pediram que eu avisasse assim que te visse.” Ana se virou para encarar a síndica com os olhos cheios de uma vida que não tinha, nunca teve. A outra mulher se assustou de leve e deu uma risadinha sonsa. “Que sorte a minha, não é? Te encontrar assim no corredor...” Ela viu a mala e já ia comentar, porém Ana esbofeteou seu rosto com tanta força que ela precisou se apoiar na parede. “Manda esse recado pra eles!”, Ana falou em pensamento com a síndica. Estava bufando e seus olhos traziam todo ódio do mundo.

Entrou no táxi e pediu que a deixasse na rodoviária. No caminho ficou escolhendo um destino. Tinha quase certeza que ia pra São Paulo dessa vez, mas não queria ser previsível. Lá podia entrar em contato com uma amiga que estudou com ela na USP, nos três meses que a garota ficou lá. Tentou cursar administração, mas teve que abandonar. Ângela, a amiga desse tempo, acabou durando porque seus pais se conheciam. Ângela se formou em jornalismo e escrevia para Folha, por isso Ana se sentia íntima dela toda vez que via seu nome em alguma daquelas páginas. A cabeça só dizia São Paulo, enquanto caminhava até a bilheteria. Três e quarenta e seis da manhã. Ana pensou de onde estaria vindo aquela maldita síndica àquela hora da madrugada. Teria que esperar até às cinco da manhã, então mandou uma mensagem para Ângela, perguntando se poderia ficar em sua casa, e descansou no chão sobre as malas, indiferente ao perigo. Não conseguiu dormir na profundidade de um sono, mas conseguiu deixar que o corpo retomasse as energias parciais. Ao som dos primeiros passos, abriu os olhos e comprou a passagem. Entrou no ônibus, procurou seu assento e recobrou um pouco da consciência: “Finalmente conheci uma bruxa de verdade. Ai, que droga! Perdi o gato! Devo comprar outro qualquer dia desses, assim que voltar ao Rio. Mas agora sou de São Paulo. Chego lá, me instalo, arranjo um emprego. Ah, devo procurar o Teco! Com certeza ele deve ter alguma coisa pra mim. Acho que ainda levo jeito. É, ainda tenho um restinho de marra. Agora é relaxar e respirar. Vai dar tudo certo. Eu tô fazendo a coisa certa. Só não é bom sinal pensar isso porque quando pensa sempre dá a entender que está fazendo o oposto do que sabe que deveria fazer. Bem, eu não sei de nada. Por que estou sendo tão formal nesses pensamentos? Acho que faz parte do processo de reaproximação. Ou reorganização. Por enquanto vou tentar ser confiável. Aqui dentro vai voltar a ser meu espaço. Já estou me sentindo bem melhor. Foi uma ótima noite. Quem diria?” Ela deu risadas em pensamento. O ônibus partiu. Com a cabeça encostada na janela, Ana foi vivenciando tudo que negligenciara na mente. Sentindo cada sabor, cada ansiedade, transformando-os em coisas novas, refletindo de fato o que foram vinte e oito anos de pausa. O motorista freou bruscamente. Ela ouviu latidos gentis ecoarem pelo ar. Havia um acidente na rodovia. Ana viu a fumaça de longe, trazida pelo vento. Mais a frente, havia fogo num carro vermelho que parecia estranhamente familiar. Havia também um homem acenando para alguém. O motorista abriu a porta e o sujeito entrou. Estava sujo de cinzas, dava passos envergonhados e foi direto para o motorista, conversando baixo. O motorista fechou a porta e deixou o homem ficar. O ônibus voltou a andar devagar e Ana pôde ver o fogo de perto. O homem das cinzas caminhava na mesma lentidão do ônibus. Ana viu um galão de gasolina do lado da roda e teve certeza do carro ao ver um pedaço da placa meio descascado: ANA-0058 – “Terá que ficar casada comigo por cinquenta e oito anos, ó querida, avassaladora, safada, deslumbrante, doce, maluca, sincera, frágil Ana!”, e as risadas dele iam aumentando. Ele fazia cócegas na barriga e depois resolviam ficar em silêncio em cima da cama, pensando nos problemas, compartilhando curas. Ela tinha os braços dele ao seu redor, tinha seus pensamentos preenchendo seu vazio e ele também tinha cicatrizes. Estiveram juntos apenas por dois anos e alguns meses, nessa coisa de se ver de pouquinho em pouquinho. Ele era tanto que parecia que já tinham passado os cinquenta e oito anos juntos. E ele era consistente nas lembranças, o que o deixava seguro com seu lugar cativo lá dentro. Ana corria pela mente, tentando fugir da sua aproximação, mas ele já estava de pé ao seu lado. “Com licença, senhora. Posso me sentar no seu lugar? Desculpe, eu acabei de sofrer um acidente e só queria estar com essa moça hoje.”, apontou pra Ana. Lucas tinha o dom da persuasão ou poderia ser apenas sua testa sangrando. A senhora se levantou e ficou muito tocada, apesar de ainda achar tudo muito estranho e escolher a desconfiança que a levou para o fundo do ônibus. Lucas olhou Ana e fez com que ela o olhasse de volta. “Só até terça!”, disse por telepatia. Ana o olhou porque quis e pediu que sentasse sem nada dizer na mente ou fora dela e sem se mover no corpo também. Somente os olhos pra lá e pra cá de acordo com o barulho da roda no asfalto. Ele se sentou e se olharam ainda por mais algum resto de tempo, admirando o quanto ainda sabiam um do outro pelos cabelos atrás da orelha, fios no ombro, corte na testa, no pulso, olheiras fundas, mãos trêmulas e calça desbotada. Depois, Lucas pediu pra deitar no seu colo e ela deixou. A bruxa escolheu primeiro Lucas e o enviou por incêndio. Olhando ainda através da janela, Ana foi voando, pensando em quantos acidentes ainda fariam parar aquele ônibus. Sobre a vida, ela alcançou o além da sobrevivência e decidiu chegar em São Paulo só depois de amar.