terça-feira, 4 de junho de 2013

Sujeitos abreviados


Ma e Ed estavam sentados na cama fumando. Na TV, a programação estava fora do ar. O silêncio da noite de domingo, o vazio dos corredores da casa e o chiado da tv causavam um mal estar tão profundo que Ed começou a chorar. Ma nem ligou, bufou de tédio e jogou a cabeça na cama. Ed, esticado no chão, já começava um soluço quando seu irmão entrou no quarto. “Vou sair!” O choro cessou, Ed saltou do chão assustado: “Vai aonde?” O irmão deu as costas e seguiu escadas abaixo, sem acender as luzes. “VAI AONDE?”, Ed gritou pro escuro lá de baixo. A chave fez barulho na fechadura. Bam! A porta fechou. “Esse merdinha!” Ma amassou o cigarro no chão e se sentou: “Vamos sair?” Ed sorriu e depois chorou uma manha.

“Ed seu besta, esquece esse seu irmão que nem te dá bola!” Ma era manca e por isso lenta; descia as escadas de degrau em degrau. Ed não ligava, já tinha se acostumado com o ritmo dela. E, quando a esquecia para trás, retrocedia os passos e colocava a mão em sua cintura. “Vamos dançar? Deu vontade!”, ela acendeu a luz da cozinha, onde Ed bebia água numa longa e chateada golada. “Domingo à noite? Querida, em que mundo você vive?”, Ed se jogou no chão, sentando. Ma engatinhou até ele e beijou seu pescoço. “Deixa de ser ranzinza vai...” e lambeu. Ele riu e empurrou seu rosto: “Faz cócegas, não gosto!” Ela ficou de pé e esticou o braço na sua direção: “Vem?”

Ed não conseguia parar de visualizar os cômodos escuros de sua casa. Solitários, vazios, tristes. E pensava em seus pais chegando e acendendo todas as luzes, falando alto, sem calma ou cuidado. Essas vozes altas o incomodavam tanto que ele chacoalhava todo o corpo para voltar a si. “Você trancou a porta?”, Ma perguntou, longe, lá atrás na calçada. Ed correu e abraçou. Beijou sua bochecha e sussurrou: “Claro que tranquei”. Ele morava com seus pais e irmão numa casa de vila alugada. Mudaram recentemente para essa casa de dois andares, bem localizada no centro, perto do metrô, da faculdade e de Ton, antigo namorado de Ma e melhor amigo do irmão de Ed.

Havia um bar a três quarteirões da casa. A rua vazia, com um ou dois taxis passando de tempo em tempo, bem devagar, quase seguindo o casal de amigos. Eles se viravam e mostravam o dedo do meio, como dois adolescentes insolentes. E os motoristas metiam o pé, xingando. Eles não riam, continuavam a caminhada lenta e tediosa. Chovia fininho e parava, de novo e de novo. Noite incerta, nem fria, nem abafada. O asfalto molhado, escorregadio, os becos cheios de sussurros ecoando e postes de luz falhando. Passaram por uma cabine da polícia e uma criança veio vindo com a avó. Não respondia os chamamentos da senhora e andava na frente, com os braços cruzados. Vendo os dois jovens de preto, se assustou e esperou a avó, que também se assustou e pegou forte na mão da pequena e apressou o andar, já de cabeça baixa. O policial olhou pela janelinha da cabine e sorriu pensando serem duas almas penadas as que via deslizar vagarosamente pela rua.

“Ele tá lá dentro, acredita?”, Ma voltou pra mesa e se sentou na frente de Ed. Era um barzinho bacana e grande. Algumas mesinhas na calçada, onde jovens se aglomeravam para fumar e rir. Na parte de dentro, rock alto, luz baixa e algumas poucas mesas junto à parede, onde havia apenas uma menina de cabelos cacheados e embaraçados, com fundas olheiras debaixo dos olhos e piercing de argola no nariz. Bebia itaipava e olhava o celular. Nos fundos, um largo balcão de madeira, com uma decoração cool  com discos de vinil na parede logo atrás e dois bartenders jovens e cansados servindo o pessoal. No meio da pista vazia, um rapaz dançava excentricamente. “Quem?”, Ed perguntou. “Ton!” Os dois pararam junto do balcão e observaram Ton fazendo seu show. A menina de cabelos cacheados os notou e se levantou imediatamente, indo falar com Ton no pé do ouvido. Ele parou e olhou Ed e depois Ma. Sorriu e foi se sentar com a menina. “Ele é tão sexy!”, disse Ed, sem desgrudar os olhos do rapaz. “Se você acha...” Ma revirou os olhos. Ton entornou um copo de cerveja goela abaixo. Pingava de suor. Usava calças jeans tradicionais e camisa de botão listrada aberta até o peito, onde se podia ver um cordão de ouro com uma medalhinha de santo. Tinha os cabelos tão cacheados e bagunçados quanto os da irmã. “O que será que eles tanto cochicham? Aposto que falam de nós!”, Ed roia a cutícula de nervoso. Ma se virou, encarando-o longamente: “você dá tanta pinta quando tá ansioso. Chega a ser patético.” Ed nem sequer ouviu as palavras dela, saiu andando assim que viu Ton tirar um cigarro do bolso e ir para fora do bar.

“Ei!” Ed riu sem graça e sem vontade. “Olá Ed!”, Ton colocou o cigarro na boca e acendeu. Soprou na cara do outro. Ed inspirou, não abanou. “Não sabia que você já tinha voltado. Meu irmão nem me falou nada.” Ton não olhava para o rapaz, encarava com doçura um nada qualquer na sua frente. “É”, ele disse: “Voltei ontem.” Soprou mais fumaça e notou um gato debaixo de um carro. “É estranho isso de você voltar e nem sequer me ligar. Sei lá, você sabe como esses dias têm sido arrastados. Tô sem inspiração pra nada. Não escrevi nem uma linha da mono. Sequer tive uma ideia de por onde ir. Estagnei legal. Nem sei se quero continuar, sabe?” O gato parecia procurar alguma coisa. Não ficava quieto no quentinho do lado da roda. Ton jogou o cigarro no chão e pisou: “Sei como é. Só um instante, Ed.” Foi andando cautelosamente ao encontro do gato. No grupo ali fora ninguém parou de falar, fumar ou rir. Apenas um olhar o seguiu. Era Ed, que estava hipnotizado com o jeito de Ton. Havia uma certa chateação também por não ser ouvido, mas era tão irrelevante que sumiu rápido. Ed não queria ser ouvido, queria ser tocado.

Ma conversava bobagens com a irmã de Ton até esta resolver ir ao banheiro. Sozinha, Ma puxou papo com o bartender para saber quais músicas ele tinha no notebook. Animou-se brevemente ao ver uma pasta de blues. “Isso aqui é pras noites de quarta [...] Cara, hoje é domingo e não vejo a hora de bater na cama [...] às suas ordens sempre, meu amor!” Ma beijou o sujeito e ele colocou Nina Simone pra tocar. And now we are one, let my soul rest in peace…”, Nina começou a cantar. Ma puxou o bartender e jogou os braços no seu pescoço. “In search for you, so that someday I could give birth…” Para lá e para cá, mexendo apenas os quadris, parados no mesmo lugar. O rapaz primeiro achou graça, mas depois acompanhou o ritmo triste da garota, fechando os olhos. “And now we give thanks... “ Ma começou a chorar. “Give thanks for each other…” Sem entender o que acontecia, o rapaz tentou puxar o rosto da garota para olhá-la nos olhos e, quem sabe, acalmá-la. Mas ela resistiu. Murmurou uma raiva, as lágrimas descendo nas bochechas, olhos cerrados. “At peace forever...” Forçou o rosto contra o peito do bartender e lá ficou até cansar o choro e o we de Simone, eterno em “For we are one”, permitir que terminasse aquela tristeza que chegou sem avisar.

“Ton, larga esse bicho, ele deve estar atrás de um rato nessa roda aí.” Ed riu. Tão sincero que se surpreendeu. Ton se virou e levantou do chão, com o gato no colo. “Fala pra ele que ele fica uma graça quando ri, fala!”, disse, segurando a patinha do gato, como se imitasse sua voz. Eles se olharam por um tempo, meio constrangidos. “Bom te ver, Ed! De verdade.” E sorriu. Ed não conseguiu sorrir e apanhou o gato das mãos de Ton, enxotando-o. “Poxa vida Ton, nem uma mensagenzinha de texto? Só pra avisar que tava tudo bem... Sabe que meu irmão não fala direito comigo, né? Eu nem sei se vocês ainda estão se falando... Vocês têm conversado?” O outro fez que sim com a cabeça. “Mesmo assim, né? Como eu ia saber? Me deixou no escuro aqui. Isso não se faz, pô.” Ton tentou puxá-lo pelas mãos, mas ele se desvencilhou. Ma surgiu ao lado de Ed, apoiando a cabeça no seu ombro. “Vamo?” O gato voltou, roçando nas pernas de Ton. Ele se distraiu e ficou em dúvida se olhava o olhar empedernido de Ed ou o carente do gato. Abaixou-se num instante para apanhar o bicho manhoso e perdeu a partida do casal de amigos.

Ed encontrou Ton encostado num muro, próximo à estação de metrô. O gato ainda por perto, miando arrastado. Ma logo atrás, mancando silenciosamente. A chuva fina, os carros velozes. Já era meia-noite, segunda-feira. Ton sorriu e depois se emburrou: “Me deixou sozinho lá, cheio de vontade de você. Não foi legal!” Balançou a cabeça. Ed arregalou os olhos àquela revelação. E pronto, estava feliz! Nesse milésimo de segundo, quando dois homens passavam falando sobre o jogo de futebol e um ônibus deixava alguns passageiros no ponto, estava feliz. E uma mulher de saias batendo nos joelhos desceu as escadas com seu salto fazendo barulho e a bolsa apertada junto ao corpo. Tinha acabado de fugir de um trombadinha e estava com os lábios tensos, rachados de frio. Eles ficaram entreabertos no susto de ver aqueles dois sujeitos juntos ao muro, pertos demais um do outro. Fingiu que não viu e atravessou a rua. Tinha ainda voz de criança por ali – Ed se lembrou das vezes em que, quando criança, voltava de festas de domingo no carro dos seus pais, olhando pelo vidro traseiro o movimento inverso das coisas. Encostou seu corpo no de Ton e o beijou devagar, sem língua, saboreando seus lábios. Ma tirou um cigarro da bolsa. A mulher de saias virou para olhar e sorriu como quem acaba de descobrir um delicioso segredo até então inconfessável. Ouviram-se “viadinhos” e “bichas sem-vergonha”, mas estes logo sumiram na chuva. Ton afastou sua boca da de Ed e disse: “Tanto lugar pra me beijar e vem me beijar logo aqui?”

Os três seguiram até a casa de Ed. Ton de mão dada com Ed, que tinha o braço na cintura de Ma, que, por sua vez, trazia um cigarro entre os dedos. De qualquer distância pareciam um casal de três. Passaram pela cabine de polícia, onde o policial roncava alto com a TV ligada fora do ar. Ed se desvencilhou dos outros dois para abrir o portão de ferro da vila. Haviam duas vozes no longo corredor de casas, uma de homem e outra de mulher. Eles conversavam deitados na cama, no tom mais baixo possível, sem saber que àquela hora todo baixo era alto demais. Falavam da vida, de como se conheceram e de como a noite tinha sido gostosa. Fazia tempo que ele não cozinhava e ela gostou de vê-lo brincando com o filho. Ele disse que adorava seu cheiro e confessou um pensamento sobre a primeira vez em que a viu. Descreveu a cena, lembrou a sogra e a cunhada que a acompanhavam no dia em questão e disse ter se sentido pequeno pra ela. “Até hoje sou menor perto de você, mas isso não é ruim não, me faz rico em espírito.” De repente, um choro. Ela começou a chorar. Ton a imaginou emocionada e visualizou o marido a envolvendo gentilmente com os braços, o peito preenchido por uma sensação maravilhosa de completude. Ma viu finitude, como se as coisas dentro da casa os limitassem. O casal acuado na cama – os dois chorando desconsoladamente por haverem percebido que tudo o que têm e são os cerca e prende no presente. Ed, pensando como Ma, vê um porta-retratos já dentro de casa, onde há uma foto sua com o irmão almoçando, estranhamente sérios e concentrados, e imagina a angústia que essa memória deve carregar por se enxergar porcamente restrita a esse objeto. “Esse casal fica tentando tocar esse sentimento que já passou. Descrevem o que vestiam, guardam o que escreviam, mas não adianta... Não vai adiantar nunca... Já foi.” Ma liga a tv – chia fora do ar. ”Infelizmente já foi.” Ed acende um cigarro e começa a chorar iluminado pela claridade da televisão. Ton o envolve pela cintura e olha seus olhos: “Baby, não chora não! Você foi me buscar e me conseguiu de volta. Então de onde vem esse lamento?”

Logo o irmão de Ed voltou com a namorada e batatas fritas e milkshake do bob’s. E o telefone tocou e seu pai perguntou se queria pizza. “Ma, quer pizza? [...] Ton, de quê você gosta? [...] Pai, a gente não quer nada não, tá? Só vem logo pra casa de uma vez! Acho que já deu por hoje, não? Amanhã você e mamãe trabalham cedo, esqueceu? Que ideia essa de ficar até tarde na rua, eu hein?! Fica bem, Beijo!” Ton colocou a cabeça no colo de Ed, enquanto Ma girava na cadeira junto à escrivaninha. Assim que Ed desligou o telefone, Ma contou nos dedos: “Ed ama seus pais! Ed ama papai! Ed ama mamãe! Ed ama maninho! Ed ama amiguinhos! Ed ama pintinhos! Ed ama todo mundo! Ed só sabe amar e nada mais!” Os três riram sem querer, depois disseram que se amavam e foram dormir sem escovar os dentes. 



(Na foto, link da música "Consummation" cantada pela belíssima Nina Simone)