quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Retornável


Ontem tive minha primeira ejaculação presenciada e hoje meu avô morreu. Soube agora pouco quando minha avó telefonou pra minha mãe. Depois de chorar, gritar e quebrar a mesa – o que não tem nada a ver com o desespero, mas que pela força das circunstâncias aleatórias ou mesmo pela vibração extensiva do próprio desespero, veio a se partir ao meio e despedaçar no chão do nada, por desgaste natural (causa essa equivalente a do meu avô, diga-se de passagem). Nesse momento minha mãe já se foi com meu pai pra casa da minha avó e tá tudo em silêncio por aqui. Lucinha dorme. Minha irmã Lucinha tem seis anos; ela até acordou meio atordoada, mas eu a transferi pro meu quarto, que é lá nos fundos e ela nem percebeu que tinha acordado ou porque tinha acordado. O Júlio ainda tá no banheiro fazendo não sei o quê; acho que disse que ia tomar banho pra ir ver minha vó. Tá lá dentro há horas, minha mãe esmurrou a porta na despedida, dizendo “Você vai com a gente, meu filho?”, ele não respondeu e ela saiu sem xingá-lo até. É estranho isso que acontece quando uma coisa destrói nossa rotina. Minha mãe e meu irmão vivem brigando, eu sei que ele tá demorando no banheiro porque tá fumando uma bola e ela também. Em dias comuns ela até quebraria a maçaneta e nunca o chamaria de “meu filho” com tanta naturalidade. Acho que “meu filho” sempre esteve encubado no peito dela, esperando momentos oportunos pra sorratear por debaixo da razão materna, que impropriamente é sempre vencida pela emoção materna, mas que no caso da minha mãe, não impropriamente, não acontece.

Meu avô ainda esteve aqui em casa hoje, quem diria... Hoje mesmo eu tive um daqueles momentos de conexão com parente tipo aquilo que acontece em série de TV quando um personagem secundário faz parte da história principal do episódio. O lance é que meu vô tinha me falado na terça que ia vir aqui em casa pra mandar uma carta eletrônica – ele quis dizer e-mail, mas não lembrou – reclamando de um serviço de plano de saúde aí. Hoje de manhã o velho sacana me acordou pra me dizer que tava saindo de casa e ia no banco pra depois vir aqui. Me levantei sem vontade e fui até tomar banho, mas nada dele aparecer. Na hora do almoço ele tocou a campainha e eu digitei a parada e mandamos pra empresa. Ele ainda quis que eu imprimisse porque queria mandar carta real também e pediu pra tirar o extrato do INSS, fazendo as piadas de costume. Almoçou aqui, reclamou da comida sem sal, teve um ataque de tosse de tanto rir de uma besteira que minha avó fez um dia desses na fila do mercado (envolvia somente uma tigela peito de galinha de marca duvidosa e o preço do rolo de papel higiênico. Não vi tanta graça assim), e depois discutiu com meu pai sobre o preço do remédio pra pressão em comparação ao antidepressivo – meu pai é um veterinário falido, agora dono de farmácia, mas meu avó não compra com ele porque reclama dos preços e porque ele come sua filha – Enfim, o dia foi uma verdadeira festa pro meu avô, aí no fim, de noitinha, ele inventa de morrer.

Resolvi mandar uma mensagem pra Sabrina, minha namorada e espectadora da nossa primeira ejaculação (digo “nossa” porque ela tem grande mérito na parada e ela nunca quis dar também. Já faz mais de um mês que estamos nessa juntos e sempre respeitei sua dificuldade em relação ao sexo, mas aí ontem ela veio com essa história de que era muito difícil pra ela também, e que às vezes ela racionaliza demais e que nem tudo que diz é o que realmente quer... blablabla, aí eu pedi pra tirar a calcinha e ela não quis. Ficou tirando minha mão de lá a cada nova tentativa. No fim, ela deixou eu ir numa visita guiada e passou minha mão por dentro da calcinha e em cinco segundos pude sentir seus pelinhos úmidos. Em vista de tanta maldade da garota, eu avisei que se ela tava afim de não sentir prazer, o que eu queria era o contrário e pedi pra ela me ajudar a sentir e comecei a me masturbar; antes, pedi pra ela não olhar pra baixo, claro. A voz da Sabrina me deixa louco e ela sabe como eu gosto quando ela passa a língua no meu pescoço e morde minha orelha. Nossa, e aqueles lábios! Dá vontade de morder, chupar, sei lá, são como uvas suculentas... E quando eu tava quase lá, meu braço meio dobrado numa posição desconfortável, com minha mão acariciando o bico firme do peito dela, ela subitamente resolve fazer o suprassumo da coisa toda: começou a gemer no meu ouvido. Eu nem tava aí pra saber se era autêntico ou não, quando eu vi, o esperma tava por todo lado, inclusive na mão da Sabrina. Ela me olhou tão assustada, coitada. Quando foi embora, eu perguntei se tava tudo bem, mas ela ainda mantinha o choque no olhar. Respondeu apenas que “sim”. Ela não é falsa, se tem uma coisa que gosto nessa garota é a capacidade de não se importar com as regras das coisas, tudo que ela sente ela me diz; sou um bobão por me sentir tão especial. Ela disse: “Não, tá tudo bem... Eu só tô meio confusa. Você entende, né? Eu me atrasei, minha mãe deve tá puta, foi a primeira vez que presenciei seu esperma, e foi meio forte, uma vez que ele foi parar na minha mão. (ela riu sem graça) Esse primeiro contato foi meio abrupto, não tem como você negar. E sua mãe aí do lado, cozinhando, seu pai, sua irmãzinha! Dá pra ouvir ela no patinete. Ah, sei lá... É nóia minha, mas passa. Tudo num relacionamento é feito de primeiras vezes e daqui a pouco isso vai ser natural. Eu sou bobona mesmo. Sábado a gente se fala, ok?” – se tem uma coisa que eu odeio nessa garota é que ela fala pra caralho! – “Ah, me leva no ponto, sim?”, Esqueci disso, ela é muito fofa; eu fico babando toda vez que ela me pede isso meio envergonhada. A minha mensagem foi simples, mas sei que ela não liga por eu soar frio. Uma vez me disse até que isso a atraia, e mesmo assim ela não liberou até hoje... “Ei, meu avô morreu.. Eu sei que você dá aula, mas passa aqui amanhã de manhã.. Eu tô mal, preciso de vc! Bjs...” – simples, curta e real. Eu realmente tô fudido!

Eu nunca ouvi alguém falar que tá fudido quando tá triste, é meio que coisa minha. A primeira vez que transei com alguém foi com uma mina que tinha namorado, aí o cara veio pra cima de mim quando soube e arrancou meu couro bonito. Quando cheguei em casa naquele dia minha mãe ficou super-preocupada e tal, mas aí os dias passaram e ela veio falar comigo com uma cara horrível, dessas de mãe quando tá muito chateada, que tem um quê de decepção escorrendo. Ela tinha falado com um amigo meu pelo msn que eu deixei aberto e a velha se passou por mim quando ele foi logo se abrindo. Puta que pariu, quem é o viado que começa uma conversa dizendo: “Eu soube o que aconteceu entre você e a mina do Tubarão! Mandou bem, compadre!” Minha mãe só fechou a porta e disse, irretocável: “Eu tô muito triste com sua atitude recente! O que você fez mina qualquer direito seu de ser respeitado! E o pior, tendo a educação que você tem e tendo passado o que todos nós passamos juntos quando sua avó fez o que fez por conta do seu avô, me destrói ver que você seja tão insensível comigo e com seu pai!” Ela levantou da minha cama e se virou de costas pra sair. Eu ainda fui idiota o suficiente pra perguntar: “Eu tô de castigo?”, ela voltou a cabeça na minha direção com os olhos marejados, mas ainda convictos. Evitando a necessidade qualquer resposta, ela balançou a cabeça e saiu. A única coisa que me veio na mente naquele momento foi “tô fudido!” E não sem motivo, a gente tá verdadeiramente fudido ou ferrado quando sabe que tá no fundo do poço das emoções e que não tá lá por nada, tá lá porque se jogou de tanta vergonha, e o escuro dali tem cheiro de merda mesmo. E tristeza pra mim é a pior vergonha do ser humano. Minha avó por parte de pai se matou depois de descobrir que meu avô tinha um caso fora do casamento, não sei exatamente o que foi, mas acho que era uma conhecida da família, eles tinham filhos juntos e tudo, mas minha avó, eu acho, sempre foi muito orgulhosa, era de elite decadente e mantinha certa postura; aquilo foi o fim pra ela, e foi um fim tão fim, porque era uma impossibilidade, um absurdo... Essas são minhas teorias pro caso, no mais, eu tinha só treze anos quando tudo aconteceu, treze ou catorze, mas lembro que isso foi muito discutido aqui em casa. Minha mãe tava grávida e ficou dando lição de moral pra gente, os homens da casa. “Tudo que eu peço a vocês é que sejam homens de bem e respeitosos com quem quer que seja, mais principalmente com a mulher de vocês!”, ela dizia sempre; até hoje ela me diz isso. Então no dia que eu me fiz de meu avô paterno, eu me senti o mais fudido dos homens e nunca mais quis saber de garotas por um bom tempo. Acho até que foi por isso que passei no vestibular. A gente jovem sofre essa pressão pra colocar os relacionamentos amorosos no topo da lista de tudo, mas não devia ser assim. Somos tão jovens pra temer a solidão. Minhas amizades são até hoje as coisas mais importantes da minha vida, elas me ajudam a lidar com a dependência e me mantêm quase que cronicamente feliz, penso ser por isso que tô com a Sabrina; antes de engatarmos o namoro, fomos amigos por um ano, depois ela sumiu e quando voltou, aí rolou. O que sinto agora é tão ruim quanto o que senti há seis anos atrás. Eu tô triste, mas não consigo chorar. Só fico repassando a imagem do meu avô aqui em casa hoje de tarde. Ela vai e volta na minha mente... Vai e volta. Estive sentado no sofá, olhando no escuro meu avô almoçando no sofá da frente, rindo, cuspindo sem querer alguns grãos de arroz. Eu também sinto vontade de rir às vezes, mas também não dá. Meu irmão passou por mim e disse alguma coisa; saiu de moto. Eu continuei no sofá pensando em tudo: no meu avô, na Sabrina, na resposta da Sabrina (“Estarei aí assim que acordar!”), na minha mãe chorando desesperadamente, na minha mãe chorando contida, na minha avó que acabou do nada, ficando pra sempre fudida e nos deixando fudidos, no meu outro avô canalha, em mim canalha, em porque eu forçava tanto a barra com a Sabrina, no meu avô comendo de novo, nos grãos de arroz, na sua risada, no seu sono eterno, no meu sono... Quando acordei ainda era escuro e fui pra cama do Júlio só pra dormir mais um pouco.

Ouvi o som da TV ligada e gente conversando alto na sala. Nossa, eu babei no travesseiro! Faz séculos que eu não babo no travesseiro... A sensação da cara amassada só ocorre plenamente junto da sensação do cérebro comprimido, quando você tá com aquela dor de cabeça pesada acima dos olhos, que não dói de maneira aguda, que fica mais prum grave potente. Sabrina tava sentada bem na minha frente, junto da mesa do computador, me olhando.

- Você tá aí há muito tempo? – perguntei.

- Tempo suficiente pra te ver dormir profundamente. Agora pouco você foi ficando com uma respiração mais rápida, mais normal; foi bem sutil. É estranho como ninguém repara no retorno. Mas enfim, você fica muito fofo dormindo e mais fofo ainda ao acordar todo babado e descabelado. – Ela riu e se sentou na cama, alisando meu cabelo, ainda com semblante feliz. Eu fiquei pensando no retorno, e foi aí que ela mudou do nada e ficou séria. Quando vi, percebi que era um movimento anunciado e que a sobrancelha agiu na frente, seguida do olhar parado e dos lábios na horizontal perfeita, e as bochechas também ficaram firmes quando ela disse: “Eu sinto muito pelo seu avô!”. Notei minha loucura e recebi de presente um beijo nos meus lábios recém-desgrudados.

- Você tá louca? – eu disse em seguida, querendo mais – Eu tô bafudo!

Ela me surpreendeu confirmando minha afirmação num tom irônico e me deixando só com pensamentos preocupantes. Pensei que ela ia me deixar. Que sua saída do quarto representava sua exclusão total da minha vida. Ela saía e ia caminhando devagar pelo corredor, passava pela geladeira, roubava um imã que me deu numa feira na praia, passava pelo banheiro, vendia drogas pro meu irmão, e de repente ela era a culpada pelo drama daqui de casa, pelos problemas do Júlio, ela ria sacana e passava pela sala. Notava meu avô comendo ainda no sofá e ria junto com ele, ela ria mais alto e mais alto, eu só a perseguia, mas não podia me aproximar. Ela abria a porta da frente e saia pro quintal. Ela passeava no quintal, ria e se admirava com tudo, mantinha um tom melancólico de despedida pairando nos meus olhos, nos seus olhos loucos. Nossos olhos se encontravam no portão e ela me encarava firme, com lágrimas à espreita, e sua voz me dizia que sou um homem desrespeitoso, porém ela só me encarava de boca fechada. De repente abriu o portão e correu. Correu rápido, correu longe. Fugiu. Quando acordei já tinha vomitado em cima da cama.

- Puta que pariu, seu imbecil! – meu irmão entrou no quarto, com cara de zumbi. Provavelmente não tinha dormido. – Minha cama, cara! Ah não!

Ele falou “ah não!” tão engraçado que eu pensei que fosse chorar igual eu fazia quando ele mexia nas armas dos meus power rangers e trocava tudo de lugar. Minha mãe nem ligava, mas aquilo parecia o fim do mundo pra mim. Outro dia descobri que a Kimberly fez um série chamada Felicity. Fiquei meio viciado por dois dias; era uma série que me deixava tão triste e power rangers eram pra ser divertidos. Foi aí que descobri a incoerência de tudo. Eu tomei logo meu banho e coloquei o lençol e a colcha do meu irmão pra lavar. Na sala, minha mãe, minha avó, meu pai, meus irmãos, Sabrina e minha prima Elisângela estavam prontos pro velório. Só então percebi que eram três horas da tarde. Olhei pra baixo, meio com vergonha, meio olhando minha roupa, e ela tava adequada, nem tão branca, nem tão preta. Coloquei uma camisa que meu avô tinha me dado – esses sentimentalismos ainda me são estranhos, parecem tão forçados. Mas quando comentei isso com a Sabrina dentro do carro, ela disse que não é forçado, é natural. Mas ela não disse bem natural, ela disse de outro jeito, mais complicado e lógico, que eu não sei explicar. Disse exatamente: “Eu não vou te dizer que não é forçado, é! Mas também não deixa de ser uma conexão e um instinto natural. Você, fazendo isso, tenta dizer a si mesmo que nada mudou e que a conexão entre você e seu avô está sendo renovada nesse dia.” Ela olhou pra minha cara, e eu lembro desses olhos porque eles não queriam fugir. “É natural!”

Paramos antes na casa de uns tios e fiquei sabendo que o velório começava às cinco. Fiquei encucado em como tudo é rápido quando uma pessoa morre. Meu avô morreu ontem de parada cardíaca, cardiorrespiratória – soube disso também em recortes de conversas. Eu podia ter parado de respirar ao invés de retornar do sono hoje cedo! Eu nunca dormi tanto e a Sabrina seria testemunha; esperaria, esperaria, esperaria meu retorno, mas eu ia decepcioná-la e ela ia chorar sem reter uma lágrima sequer. De ontem à noite pra hoje às cinco horas da tarde são umas vinte horas e, por incrível que pareça, está tudo certo: o caixão já foi providenciado, os médicos não atrasaram no diagnóstico da morte e na liberação do corpo, a vaga no cemitério já foi comprada sem dor de cabeça ou dúvidas de última hora e ninguém vai faltar ou chegar atrasado à comemoração – mesmo assim, todos choram. Não é incrível?

Estou no cemitério, estão todos lá. Sabrina tem minha mão na sua e aperta com força; ela chora, é apegada aos avós. Minha mãe chora, vejo que entre uma lágrima e outra, ela olha pra mim e pros meus irmãos e noto, com surpresa nos meus olhos também úmidos, que seus olhos trazem amor ao nos olhar. Uma espécie pausa para o amor. Minha avó reza em homenagem ao meu avô. Ela é cristã, mas não segue uma religião específica e quando abriu a boca falou como uma verdadeira ouvinte do coração de Deus, eu acho. É isso que se diz, certo? Ela parecia entender o que aquilo significava pra Deus e pra todo mundo. Assim, ela disse coisas belas demais e de menos tristes. Começou apresentando meu avô ao mundo quando o mundo a apresentou a ele. Falou do casamento, do primeiro filho – tudo num tom de prece, sem que o enredo fosse uma narrativa – Ela ia desvendando meu avô aos poucos e nisso eu ia descobrindo a razão do dia, de ontem, da morte dele. Era como se ali restasse o que era dele pra nunca ele, e sempre aqui, na minha cabeça, ele, memória que ardia o peito, realeza mais sublime do real eterno. Eu chorava e quanto mais chorava, mais me alegrava. É como a Sabrina disse: nada mudou! Aquilo era belo, mas ilógico. Por mim podiam jogar o corpo dele numa ribanceira e celebrar com um copo de cerveja e um Viva! enfático. Uma salva de palmas seria bobeira também. Meu avô tá lá na sala, e tá naquela pescaria sem graça de mês, e tá lá na cozinha atazanando a minha avó, tá cobrando educação dos netos à mesa, tá vibrando com a natação da Clarinha, minha prima, em dias de competição – ele não perde uma! – ele tá também lá no canto do quarto ouvindo seu Elvis escondido, meio com vergonha, e eu e meu irmão estamos na janela rindo. Meu avô agora, só agora, tá fazendo uma coisa que nunca fez na vida: ele tá voando! E quanto mais eu olho, mais alto ele voa, e eu aceno e sorrio, aceno e choro e sorrio de novo. Ele sempre sonhou em voar de avião, mas nunca como passageiro, queria pilotar. Ele tá voando agora e isso me deixa feliz por ele. Quando o corpo foi enterrado, nada mais sobrou pra ver, meus pensamentos não tinham mais nada pra encontrar. Voltei a sentir a mão de Sabrina na minha. Retornei.

- Ei, Sabrina, meu avô morreu. Eu sei que você dá aula, mas passa aqui amanhã de manhã de novo. Eu tô mal e tô bem, preciso de você...

Ela me olhou, piscou e se aproximou pra beijar meu ombro delicadamente. Depois, inspirou meu cheiro, roçando o nariz na blusa que meu avô me deu. Por fim, falou baixinho, perto do meu ouvido: “Estarei aí assim que acordar!” Eu fechei os olhos e guardei aquela imagem, ejetando minha última lágrima do dia. Ontem meu avô morreu e hoje tive meu primeiro amor presenciado, e ele tinha um jeito muito bom de nunca mais!

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Ephémeros Mature


Eliseu e Gâmbia se casaram, mas antes bailaram ao cântico do amor.
Eliseu morava no pé de um morro e Gâmbia no topo. Todos os sete dias da semana, o rapaz caminhava 1.185 passadas até a casa lilás que lhe guardava a amada. Ele sempre trazia em mãos uma oferenda e no peito um desejo: a oferenda variava, o desejo se fortalecia e lhe tomava o coração de modo a prensar os pulmões; Eliseu arfava.
Esse amor não era tolo, tolos eram os participantes que se permitiam o envolvimento num jogo de embaraços pretendidos e risadas dissimuladas. Apenas o coração era sincero em ambos e os dois eram um, batiam sincronizados, entoando aquela música a qual os amantes dedicam horas a fio com ouvidos apurados a cada nota e receptivos a cada agudo. A memória se empregava em guardá-la e a língua em exercitá-la em eternos lálálás.
Num retorno ao passado, encontramos Gâmbia na primavera, tendo ingressado na vida adulta há poucos instantes. Seu olhar como mulher trazia uma sublime ternura que lhe aguçava o mel dos olhos, atentos na leitura de um livro de poesias. Estava amparada pela sombra de uma grande amendoeira em frente a sua humilde casa de paredes cinzentas. Eliseu, por sua vez, aproveitava sua infância prolongada em arremessos de peão. Foi então que levantou sua cabeça ao sol e encontrou os fios dourados dos cabelos de uma deusa em toda sua magnitude a contemplar os meros mortais.
O moleque, em sua condição de mortal se tornou homem digno de admirar a deusa, esta que se tornou efetivamente mulher ao ser tocada pela alma do outro deslumbrado.
Gâmbia deixara o livro sobre as raízes da árvore para sentir os raios de um sol que se despedia e exigia reverência. De olhos fechados, ela reconheceu o olhar de um homem a abraçá-la; e o abraçou de volta. Fora um momento único, onde se tornou capaz de sobrevoar a amendoeira e sombreá-la.

Eliseu planejou seu futuro assim que chegou a casa e olhou nos olhos de sua mãe:
- Meu filho...
- Minha mãe...
- Ah, que belo - respondeu a mãe ao ver sua ideia escorrendo dos olhos.
- É amor - pausa e um majestoso abraço - pela deusa da amendoeira.
A mãe do moço sorriu e se afastou de seus braços. Seu filho era um homem, ela era mãe de um homem - que truque do tempo, como uma mulher franzina poderia carregar aquele Eliseu em seu ventre por nove meses? As lágrimas umedeceram o rosto.
- Não chora, mãe. - surpresa nas palavras do filho.
- São lágrimas felizes.
- Então, a senhora compartilha da minha felicidade?
- Por que não? - surpresa nas palavras da mãe.
- Porque meu coração agora pertence à outra mulher.
- Ora, vejo que a tolice não é virtude infantil.
E assim, em outro abraço, foi finalizada a conversa entre mãe e filho, e Eliseu atinou que aquela que fora a primeira mulher de sua vida jamais seria esquecida e tampouco substituída; com o passar dos anos perceberia que nenhuma podia.

Na noite do mesmo dia, Gâmbia se banhou cantarolando, jantou cantarolando, viu a novela cantarolando (na novela não havia cantarolares), reparou seu pai cantarolando (?!) e foi dormir cantarolando. A cama da moça dava para um pequeno sótão e para um pequeno porão, naquela noite ela subiu para o sótão e ao sair por uma pequena janela se posicionou no telhado, olhando as estrelas, que a olharam de volta e brilharam mais.
“Quem é o rapaz do pé do morro, o que carrega meu coração e tem um abraço cativante?”
As estrelas piscaram uma, duas vezes - Gâmbia adormeceu, as estrelas se apagaram e o sol nasceu: um dia previsto feliz.
- Gâââââmbia! - o pai berrou.
A mulher caiu do telhado. O pai correu em socorro.
- O que a senhorita fazia no telhado? - nervosismo se expressava em seu olhar e o susto ia se esvaindo. - Anda, responda! - a menina se movia lentamente. Fora acordada no susto, embora o tombo tivesse sido insignificante devido à pequena altura da casa.
As ásperas palavras do pai logo foram substituídas por seu gesto seguinte. O homem ajudou a moça a se erguer.
- Ah, minha filha... - o tom era baixo e movido à doçura – Está de volta? O tombo a acordou do disparate dessas suas idéias, como a de subir no telhado?
A mulher logo despertou seu corpo num chacoalhar e, pela pergunta de seu pai, começou a procurar seu coração.
- Não, papai. - havia um fio saindo de seu peito - Continuo longe. O senhor vê minha metade.
- Esses livros finalmente fizeram efeito...
- Os poemas prepararam a terra, a irrigaram e plantaram a semente...
- Quem a germinou? – o pai parecia aflito quanto à reposta, mesmo esta sendo irrelevante ao seu tormento.
- Ainda não sei o nome - Gâmbia notou que o pai demonstrava certa insegurança – pouco importa saber o nome.
O senhor na frente da mulher esboçou um sorriso, e viu sua falecida esposa nos olhos da filha.
- Não sabe o quanto isso me alegra!
Os dois se abraçaram.
- Corra, minha filha! - a alegria transbordava - Vá confirmar teu amor!
Gâmbia correu pra dentro de casa, tirou o camisola, colocou um vestido azul, molhou o rosto, calçou um chinelo, e apressou-se em direção à porta. Voltou, pois havia esquecido o chapéu de sua mãe em cima do armário (um chapéu Suzana com uma longa fita lilás), colocou-o na cabeça e saiu.
- Tchau pai. - beijou-o no rosto e mirou seu destino final: a base do morro.
- Vá com Deus, querida! - desejou o pai que vira de relance um fio lhe escapar do peito.

Eliseu percorria aqueles espaços repletos de flores, Gâmbia percorria o mesmo lugar de flores e os dois se olharam quando alcançaram o meio do caminho.
Gâmbia olhou os olhos e cabelos negros e o porte garboso do homem que a esperava desde sempre. Ela, certa quanto à escolha de seu coração e eufórica pelas circunstâncias, riu demoradamente e, em seu sorriso, tornou franco o amor que já sentia. Ele riu de volta. Eliseu viu o melaço dos olhos dela, embriagou-se.

O beijo.

O beijo foi inevitável. Eliseu se adiantou em cortejo e Gâmbia se entregou a fantasia. Os corpos se tocaram: os lábios da mulher se retraíram e os do homem os atingiram, não houve contato maior, o amor foi somente selado. Uma borboleta voou. As mãos do casal caminharam pelas costas um do outro, buscando a temperatura ideal para a compreensão, apitando para um abraço íntimo. Quando terminaram a jornada, abriram o casulo e esticaram os braços pela liberdade, fazendo como asas a bater em harmonia, como as da borboleta que voava.
Os corpos se afastaram, trazendo de volta a necessidade de descoberta. A borboleta pairou entre os dois e por não se sustentar diante tamanha troca de energia, morreu. Foi ao chão sob os olhares intrigados dos dois amantes. Qual não foi a surpresa de Gâmbia ao notar-se madura quanto ao falecimento de um ser tão afável:
- Positivamente morta, necessariamente bela!
Eliseu retornou de lá onde estava, o reino dos amores dobrados e guardados no bolso, e chorou por amar. O que era de um instante, um pouco mais que nunca, ele viu como eterno. E amar seria tão impossível quanto complicado e Gâmbia se desmancharia como as nuvens no céu e, curvada, seria outra. Mesmo não sabendo quem seriam no banho de sentimentos desperdiçados no tempo, ele apenas chorou a emoção de amar pela primeira vez. A borboleta foi levada por formigas em procissão, para em seguida ser arrebatada pelo bico de um pardal faminto.