Eliseu morava no pé de um morro e Gâmbia no topo. Todos os sete dias da semana, o rapaz caminhava 1.185 passadas até a casa lilás que lhe guardava a amada. Ele sempre trazia em mãos uma oferenda e no peito um desejo: a oferenda variava, o desejo se fortalecia e lhe tomava o coração de modo a prensar os pulmões; Eliseu arfava.
Esse amor não era tolo, tolos eram os participantes que se permitiam o envolvimento num jogo de embaraços pretendidos e risadas dissimuladas. Apenas o coração era sincero em ambos e os dois eram um, batiam sincronizados, entoando aquela música a qual os amantes dedicam horas a fio com ouvidos apurados a cada nota e receptivos a cada agudo. A memória se empregava em guardá-la e a língua em exercitá-la em eternos lálálás.
Num retorno ao passado, encontramos Gâmbia na primavera, tendo ingressado na vida adulta há poucos instantes. Seu olhar como mulher trazia uma sublime ternura que lhe aguçava o mel dos olhos, atentos na leitura de um livro de poesias. Estava amparada pela sombra de uma grande amendoeira em frente a sua humilde casa de paredes cinzentas. Eliseu, por sua vez, aproveitava sua infância prolongada em arremessos de peão. Foi então que levantou sua cabeça ao sol e encontrou os fios dourados dos cabelos de uma deusa em toda sua magnitude a contemplar os meros mortais.
O moleque, em sua condição de mortal se tornou homem digno de admirar a deusa, esta que se tornou efetivamente mulher ao ser tocada pela alma do outro deslumbrado.
Gâmbia deixara o livro sobre as raízes da árvore para sentir os raios de um sol que se despedia e exigia reverência. De olhos fechados, ela reconheceu o olhar de um homem a abraçá-la; e o abraçou de volta. Fora um momento único, onde se tornou capaz de sobrevoar a amendoeira e sombreá-la.
Eliseu planejou seu futuro assim que chegou a casa e olhou nos olhos de sua mãe:
- Meu filho...
- Minha mãe...
- Ah, que belo - respondeu a mãe ao ver sua ideia escorrendo dos olhos.
- É amor - pausa e um majestoso abraço - pela deusa da amendoeira.
A mãe do moço sorriu e se afastou de seus braços. Seu filho era um homem, ela era mãe de um homem - que truque do tempo, como uma mulher franzina poderia carregar aquele Eliseu em seu ventre por nove meses? As lágrimas umedeceram o rosto.
- Não chora, mãe. - surpresa nas palavras do filho.
- São lágrimas felizes.
- Então, a senhora compartilha da minha felicidade?
- Por que não? - surpresa nas palavras da mãe.
- Porque meu coração agora pertence à outra mulher.
- Ora, vejo que a tolice não é virtude infantil.
E assim, em outro abraço, foi finalizada a conversa entre mãe e filho, e Eliseu atinou que aquela que fora a primeira mulher de sua vida jamais seria esquecida e tampouco substituída; com o passar dos anos perceberia que nenhuma podia.
Na noite do mesmo dia, Gâmbia se banhou cantarolando, jantou cantarolando, viu a novela cantarolando (na novela não havia cantarolares), reparou seu pai cantarolando (?!) e foi dormir cantarolando. A cama da moça dava para um pequeno sótão e para um pequeno porão, naquela noite ela subiu para o sótão e ao sair por uma pequena janela se posicionou no telhado, olhando as estrelas, que a olharam de volta e brilharam mais.
Na noite do mesmo dia, Gâmbia se banhou cantarolando, jantou cantarolando, viu a novela cantarolando (na novela não havia cantarolares), reparou seu pai cantarolando (?!) e foi dormir cantarolando. A cama da moça dava para um pequeno sótão e para um pequeno porão, naquela noite ela subiu para o sótão e ao sair por uma pequena janela se posicionou no telhado, olhando as estrelas, que a olharam de volta e brilharam mais.
“Quem é o rapaz do pé do morro, o que carrega meu coração e tem um abraço cativante?”
As estrelas piscaram uma, duas vezes - Gâmbia adormeceu, as estrelas se apagaram e o sol nasceu: um dia previsto feliz.
- Gâââââmbia! - o pai berrou.
A mulher caiu do telhado. O pai correu em socorro.
- O que a senhorita fazia no telhado? - nervosismo se expressava em seu olhar e o susto ia se esvaindo. - Anda, responda! - a menina se movia lentamente. Fora acordada no susto, embora o tombo tivesse sido insignificante devido à pequena altura da casa.
As ásperas palavras do pai logo foram substituídas por seu gesto seguinte. O homem ajudou a moça a se erguer.
- Ah, minha filha... - o tom era baixo e movido à doçura – Está de volta? O tombo a acordou do disparate dessas suas idéias, como a de subir no telhado?
A mulher logo despertou seu corpo num chacoalhar e, pela pergunta de seu pai, começou a procurar seu coração.
- Não, papai. - havia um fio saindo de seu peito - Continuo longe. O senhor vê minha metade.
- Esses livros finalmente fizeram efeito...
- Os poemas prepararam a terra, a irrigaram e plantaram a semente...
- Quem a germinou? – o pai parecia aflito quanto à reposta, mesmo esta sendo irrelevante ao seu tormento.
- Ainda não sei o nome - Gâmbia notou que o pai demonstrava certa insegurança – pouco importa saber o nome.
O senhor na frente da mulher esboçou um sorriso, e viu sua falecida esposa nos olhos da filha.
- Não sabe o quanto isso me alegra!
Os dois se abraçaram.
- Corra, minha filha! - a alegria transbordava - Vá confirmar teu amor!
Gâmbia correu pra dentro de casa, tirou o camisola, colocou um vestido azul, molhou o rosto, calçou um chinelo, e apressou-se em direção à porta. Voltou, pois havia esquecido o chapéu de sua mãe em cima do armário (um chapéu Suzana com uma longa fita lilás), colocou-o na cabeça e saiu.
- Tchau pai. - beijou-o no rosto e mirou seu destino final: a base do morro.
- Vá com Deus, querida! - desejou o pai que vira de relance um fio lhe escapar do peito.
Eliseu percorria aqueles espaços repletos de flores, Gâmbia percorria o mesmo lugar de flores e os dois se olharam quando alcançaram o meio do caminho.
Gâmbia olhou os olhos e cabelos negros e o porte garboso do homem que a esperava desde sempre. Ela, certa quanto à escolha de seu coração e eufórica pelas circunstâncias, riu demoradamente e, em seu sorriso, tornou franco o amor que já sentia. Ele riu de volta. Eliseu viu o melaço dos olhos dela, embriagou-se.
O beijo.
O beijo foi inevitável. Eliseu se adiantou em cortejo e Gâmbia se entregou a fantasia. Os corpos se tocaram: os lábios da mulher se retraíram e os do homem os atingiram, não houve contato maior, o amor foi somente selado. Uma borboleta voou. As mãos do casal caminharam pelas costas um do outro, buscando a temperatura ideal para a compreensão, apitando para um abraço íntimo. Quando terminaram a jornada, abriram o casulo e esticaram os braços pela liberdade, fazendo como asas a bater em harmonia, como as da borboleta que voava.
Os corpos se afastaram, trazendo de volta a necessidade de descoberta. A borboleta pairou entre os dois e por não se sustentar diante tamanha troca de energia, morreu. Foi ao chão sob os olhares intrigados dos dois amantes. Qual não foi a surpresa de Gâmbia ao notar-se madura quanto ao falecimento de um ser tão afável:
- Positivamente morta, necessariamente bela!
Eliseu retornou de lá onde estava, o reino dos amores dobrados e guardados no bolso, e chorou por amar. O que era de um instante, um pouco mais que nunca, ele viu como eterno. E amar seria tão impossível quanto complicado e Gâmbia se desmancharia como as nuvens no céu e, curvada, seria outra. Mesmo não sabendo quem seriam no banho de sentimentos desperdiçados no tempo, ele apenas chorou a emoção de amar pela primeira vez. A borboleta foi levada por formigas em procissão, para em seguida ser arrebatada pelo bico de um pardal faminto.
Jesse, você é espantosamente talentoso.
ResponderExcluirEsse seu blog é um achado, digno de um tesouro!
Uma das formas de saber se existe talento é se o texto nos faz emocionar e nos entreter com a história.E conseguiu!Principalmente emocionar.Linda historia,parabens!
ResponderExcluirEmoção real e bela é ler esses comentários! Muito obrigado! Mesmo, mesmo!
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