terça-feira, 2 de novembro de 2010

Dizer ao não querer dizer


“Eu só quis dizer...”, o pensamento vem mais uma vez na minha cabeça e tudo gira. A pessoa na minha frente quis confrontar minha afirmação. Uma afirmação bem simples, daquelas feitas por fazer, mas que nem por serem esse singelo pedaço de pensamento, deixam de ser o seu pensamento; deixam de ser eu. Aí, veio essa pivete e me refez o que eu disse bem na minha frente. Ela deslocou todo o sentido das minhas palavras e, sem educação alguma, resolveu imprimir suas verdades em mim. Eu havia dito simplesmente: “O dia tá rosa hoje!” e ela, sentada de costas pra mim, se virou com o sorriso mais forçado do planeta e comentou: “Ia ficar um desenho foda, hein...” No exato momento em que a ouvi, fiquei bem chateada, mas de uma maneira que não me afeta completamente, aparente apenas. Esperei que assim ela sentisse minha raiva pelos meus olhos e me poupasse as palavras a mais. Porém seu sorriso era estático e sua alegria acerca de sua genialidade comentada continuava a me puxar pra si, pra seu próprio núcleo.

“Eu só disse que o dia tava bonito rosa...”, nesse instante minha tática foi outra e retribuí um sorriso. Foi a vez dela fechar o rosto por estranhamento. Felizmente ela dirigiu os olhos através da janela e pôde constatar o que havia dito. Acho que percebeu que o dia só estava rosa e que isso bastava. Ledo engano. Ela voltou a sorrir e puxou o caderno da mochila, prontificando-se a desenhar.

À princípio não acreditei no que acontecia diante de mim. Que mulherzinha estúpida! Eu tenho um ódio tremendo de gente que vive de imagens, fotos, roupas, vestimentas, personagens... Eu sei lá como descrever, mas é isso de visualizar seus gestos fora do corpo, apostando numa mensagem falsa ao espectador. O jeito como ela alisava o lápis na folha e lambia os lábios, tudo artificialmente orquestrado pra me causar algum tipo de reação. Ela realmente acha que eu vou colocá-la num pedestal por simplesmente fazer de tudo um projeto artístico? Só porque fazemos a porra do curso de desenho industrial não quer dizer que tudo em nossas vidas tenha que estar relacionado à droga da faculdade. Me recuso a enxergar meu mundo pelos mesmos olhos durante esses quatro anos aqui dentro; na próxima o que vai ser: ter os olhos “época” de quem vê ou “superinteressante” de quem admira? Deve-se realmente viver do que se faz ou fazer do que se vive? Puta merda, ela conseguiu. Me tirou do sério e embaralhou meus pensamentos.

“Eu só quis dizer...”

“Shhhh... Tô quase terminando.”

Ela não fez isso! Eu me levantei, peguei a porcaria do cigarro no meu bolso e fui até a janela me acalmar. Acendi e joguei pra fora. Ufa, essa pivete pensa que faz um bem danado pro mundo quando se sente bem, mas quem sou eu pra recriminá-la, eu nunca de fato me senti bem. Talvez por isso nunca fiz nada de bom pro mundo. O fato é que não há esse bem lá fora só porque existe um sentimento bom aqui dentro. Sei que não. Pensando assim, me vi retida em uma lembrança vaga e chata. Não era bem uma lembrança boa, porque nunca me senti assim tão bem na minha vida: era tipo um dia assim como esse, em que uma cor prevalece no céu. Um azul bem forte, talvez fosse só o quesito passado afetando minha memória, mas era anormal aquele azul que me envolvia por inteira. Não sei, acho que queria chorar aquele dia (ou é agora? Deve ser a influência do tempo essa lágrima que caí). Tive uma bomba em uma disciplina, uma dessas professoras mal-amadas bem vadias que só querem te ferrar porque o que sabem de bom da vida está restrito àquela sala e àquelas palavras cheias de loucura sexual. Enfim, essa figura me ferrou e fui pro banheiro feminino chorar, algo não muito comum, mas naquele dia era como se aquele fato fosse a válvula chefe para o meu colapso total. Eu tinha umas questões mal-resolvidas em casa por que fiz uma merda daquelas bem grandes nesse meio tempo de ano. Até fiquei uma semana na minha avó; mas naquele exato dia eu tinha saído de casa com palavras bem bravas ressoando na minha mente (“Quero mais é que você e toda esse seu teatrinho de moralista vão se foder!”) e não eram palavras que devessem ser ditas a sua mãe, muito menos quando é ela a única capaz de te livrar da dor. Tá, eu fodi legal quando fui me meter com a piranhazinha da Verônica e com aqueles seus amiguinhos patéticos. Sabia que ia dar merda, mas mesmo assim fui entrando fundo no joguinho do eu-quero-testar-meus-limites, e eles me levaram à fossa diversas vezes. Tinha dias em que eu dormia junto de gente que sabia que não prestava e que, possivelmente, tinha mortes acumuladas no currículo, mas isso me motivava a continuar de uma maneira absurda e paradoxal. Perdi inúmeras virgindades sem me dar conta. Perdi as primeiras fases do desperdício e quando acordei ouvi em alto e bom som minha mãe me chamar de nada, meu pai me olhar como uma prostituta barata e meu irmão me tratar com nojo. Teve esse dia - meramente forjado de “dia” - em que me olhei e vi isso tudo e senti raiva mesmo. Parei; quer dizer é difícil parar...

Com o bagulho em si foi até fácil, porque nisso nunca fui fundo. A droga era parar com a vontade de ser o tal nada. Aquele dia azul tinha me feito refém do banheiro feminino, daquele espelho e daquele choramingo alto que não tinha provas de existir de fato. Não sei bem quanto tempo fiquei trancada ali, mas fui lembrando da droga toda com uma nitidez boa, fácil... Sabia porque tinha brigado com minha mãe depois de ter me transformado num robô por dois meses. Sabia que era impossível reter toda a raiva dentro de mim por mais tempo e que era lógica a vontade de destruir quem ainda restava de herói. Aquelas horas azuis foram me amortecendo. Olhava pro nada e era como se visse fora dos muros, como se estivesse aberta nesse dia de longas horas; eu estava era no tempo mesmo. É estranho porque só agora percebo isso. Não tem nada a ver com a cor, ela só te ajuda a lembrar. Dali pros dias imediatos eu fui melhorando em algum sentido, não digo no sentido exatamente pleno de cura e coisa e tal, mas fui me estruturando pra crescer em mim.

O cigarro acabou. A garota não tá mais ali, graças aos céus. Não sei porque a odiei tanto, só sei que o ódio me é aleatório. Faz parte desse meu processo. “Cara, quero ser autêntica!” falei na aula seguinte. A pivete estava lá e me olhou estranho. “Eu sei, é...” (ele continua sem saber o meu nome, nem me importo em dizer) “Eu sei, só queria que você explicasse porque tem tanta aversão a essa estética!”, o professor desviou os olhos de mim e pensei que seria bom se ele jogasse aquele papo todo pela janela e se fixasse nos meus peitos. Porque nem todo homem é maníaco sexual? “E isso vai de lição pra todos vocês, não vale sair por aí teorizando e criticando indiscriminadamente. É preciso parar, olhar...” Ele se virou e colocou as mãos nos bolsos - uma bunda espetacular, deve-se dizer. Apontou pela janela: o dia estava quase no fim. “Por exemplo, já notaram o tom do dia hoje?”

Eu ri. “O dia tá bonito rosa, não?” Ela me olhou sonsa, revelando sua verdadeira face não trabalhada no personagem perfeição-profissional. “Com certeza, está... está sim, muito bonito rosa” ele riu na minha direção. O desenho de minha cara colega pivete estava uma bela droga, eu finalmente pude ver. Sorri feliz e me dirigi ao meu querido professor. De repente minhas palavras tinham adjetivos carinhosos e eram boas de pensar. O professor sorriu pra mim mais uma vez com o dia em seus olhos. Fiquei feliz. Seus olhos caíram bem nos meus peitos. Fiquei feliz.

sábado, 2 de outubro de 2010

Texto errado persistente


A areia foi entrando pela boca, me sufocando de grão em grão. Preencheu meu pulmão e o tornou duro feito pedra; o ar doeu. Respirei forte pelo nariz, numa tentativa de recuperar a facilidade de viver, mas acabei por misturar catarro à volumosa massa de areia. Entupi e cuspi. Foi então que o desespero deu o primeiro passo: comecei a me debater, ansiando por fugir dali e sentir a emoção de escapar, estar a salvo de um perigo que não foi perigoso o bastante para me aniquilar. E observá-lo de longe achando tudo engraçado. O alívio. Todavia, esse instante agonizante nunca cessava, e a questão da eternidade causou-me um temor triste. Entreguei-me às lágrimas. A areia foi descendo e encontrando todos os espaços deixados vazios até chegar ao coração. Então, disparou pelo corpo um calor incomum de felicidade; um que pelo inverso subia. Voltei minha mente à uma conexão celestial. Rezei, rezei e chorei. No fim, misturei tudo: lembranças perdidas e resgatadas, sofrimentos arrependidos, carinhos infantes, uma loucura adolescente de fuga eterna, a virgindade dos encontros verdadeiros, braços abertos como feridas fraternas, caminhada frustrada de homem, a imagem de indescritível realeza, que entendi como amor - vomitei! Arrebentei minha garganta com as unhas, chamando a visão infernal do ódio vermelho enlamado na areia. Meus olhos piraram, virando pra dentro e encontrando meu coração quase em cima. Ele pulou para fora pelo buraco aberto na garganta. Fugia pra longe. Não permiti, mas meus braços já não se mexiam. Pensei em explodir. As vitórias derrotadas com êxito sublime pela desistência da vida foram premiadas com a morte dum corpo cuja alma também pereceu, tenra e ilusória, fechada em si. Fiquei errado.

Ideias


Olhar vazio parado na sombra sem cor. E como sombra se fez, se nem luz há? Xita, monkey! Samba sonífero! Dolorido numa dor sem corpo. Alma vã e vaga: o secreto inexiste.

Quebrando, partindo e vendo o que mente: as cores, a luz e o sol divertido. E o escuro.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Sombra


Assombrada, minha sombra fugiu.
Carregou consigo aquele sombreiro
sobrecarregado de temor,
sombreando esse amor,
de amores.

Em direção ao teu sobrado
num brado só hesitou,
e cocorou sem abrir.
Jamais retornou.

Ira!

Sombra sobre sombra.
Cadê a minha?
O coração clareou.

domingo, 12 de setembro de 2010

Conversas


"Por que sentimos um monte de coisas ao mesmo tempo e, mesmo assim, não conseguimos dizer com sentido? Consentindo e sentindo?" - ele pensou.

Aí esse cara pergunta pro outro:

- Diz aí, Felicidade!

E o outro responde, perguntando:

- A minha ou a sua?

- A sua, sempre!

- O que é isso companheiro? Você vem sempre em primeiro lugar.

- Só se for depois de você, porque pra dizer a verdade eu nem tanto assim...

- E assim, assim... Eu nunca te vi, nem me vi.

- Opa!

- Opa!?

Os dois se olham e sorriem um sorriso cheio de lábios e poucos dentes que some quando saem de olhos baixos. Naquela mesma energia o sujeito chega em casa e a esposa pergunta:

- Que houve, meu amor?

E ele faz questão de responder:

- Não enche!

"Ah, é porque tem horas que enche o saco ficar transbordando de felicidade. Deixe seu saco vazio, meu amor, e venha ser completamente feliz comigo porque eu também te amo!" - ela pensou.

Que coisa!?


Quando o peixe molha um olho, o rabo é de sereia.
Faceta encacetada em brumas desbolhadas. 
Corre choro venenoso de potências imperiosas:
Morte diminuta.
O paz encaixotado e o morrer.
Flui o que transfere história.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Um casal


Fernanda e Gustavo - parecem nomes de personagens de novela que, apesar de casados, estão sempre envolvidos em traições para no fim ficarem juntos renovando seu amor diante do casamento de outrem, sem se esquecer de deixar, mantendo o núcleo cômico da narrativa, uma brecha para mais traições. Contudo, dessa vez os nomes te enganam, Mari. Se você for do jeito que a vejo, creio que sorrirá com minhas sentenças afirmativas sobre sua identidade. E será um sorriso tão belo, que lembrará Fernanda assim meio de lado, tirando os fios castanhos do rosto para em seguida baixar a cabeça com vergonha do tanto charme. Sabia que os olhos dela também eram estreitos como os seus? Isso tem certa beleza, já que não carateriza uma origem oriental, tampouco ocidental; passariam com altíssimos méritos nos testes de beleza de ambas culturas. Deve estar pensando agora que tenho a mente tão resolvida em soluções simples apenas pelo fato de ter resumido padrões de beleza aos dois grandes eixos culturais do planeta na sua figura e de Fernanda; mas não, Mari, não sou assim. Na verdade, prevejo seus pensamentos como constantes curvas dispostas a me enrolar, guiando ao precipício. Espero que ria dessas minhas colocações loucas, pois também riu Fernanda, ainda mais porque era dela o serviço de leitora dos meus escritos.

Gustavo quase nunca largava aquela sua câmera. Se der uma revirada em alguma gaveta do armário da sua mãe, vai achar a bela Nikon F. Não a tome por qualquer bugiganga, Gustavo foi um dos primeiros a trazer a máquina para o Brasil. De primeiro, costumava sair por aí com ela pendurada no pescoço só para alimentar o orgulho, depois passou a ter um pescoço pendurado numa câmera quando os olhos se tornaram famintos. Era um homem muito engraçado. Por volta dos trinta e tantos anos resolveu ir estudar inglês em Londres -  ninguém fazia isso naquela época - mas quando Fernanda decidiu que queria investir num novo guarda-roupas, ele fortaleceu os motivos. Voltaram de lá brigados, como duas crianças brigam hoje num shopping por quantidade de brinquedos. Gustavo tinha uma Nikon F e Fernanda, uma coleção inteira Mary Quant. Fernanda me confidenciava sua vida íntima enquanto escrevia minhas poesias. Quase toda semana, pelo menos por três dias, ela vinha a minha casa passar a tarde. Tomávamos o chá (num costume forçosamente inglês por mim adotado após a viagem) e ficava uma hora até a sua partida. Nos dias em que o tormento conjugal se agravava, ela passava quase toda semana em minha companhia. Como me faziam rir suas histórias atrevidas sobre nossas conhecidas em comum! Promovíamos desfiles de minissaia ao anoitecer na companhia de minhas filhas e comentávamos o corte, redesenhávamos os modelos, e minhas filhas só tinham o trabalho de permaneceram estáticas, de pé – a viuvez, nessas ocasiões, me auxiliava imensamente.

O desentendimento tolo não os impediu, todavia, de cumprir a tradição das festas em promoção à seleção brasileira da copa de 1966. O dia fatídico que trouxe a derrota do Brasil de três a um para a seleção portuguesa, trouxe também a reconciliação do casal. Três meses depois, Fernanda me confidenciou a gravidez do primeiro filho. Uma emoção tamanha que não caberia nessas palavras. Fernanda e Gustavo haviam tentado durante anos e anos trazer ao mundo uma criança para carregar seu sobrenome, mas todos os tempos se foram sem que o desejo fosse concretizado. Pensaram até em um tratamento fora do país, muito comentado na época, mas desistiram assumindo ser a vontade de Deus o impedimento da chegada do herdeiro. Então, no dia em que o Brasil afundava na fossa da derrota para Portugal uma mágica das mais felizes ocorreu no quarto do casal; não preciso entrar aqui em detalhes porque você já deve conhecer o famoso poder da reconciliação. Fernanda estava já na casa dos quarenta, e sua gravidez foi considerada de tamanho risco que sua médica até lhe aconselhou o aborto. Ora, veja só, você que daí me lê. Que diria você, Mari? Outros tempos, não? Fernanda, evidentemente desconsiderou o conselho da médica e consagrou, felizmente, os meses seguintes como os melhores de sua vida de casada.

Nunca a vira tão feliz, e Gustavo então... Lágrimas me chegam aos olhos só de lembrar nossos passeios constantes pela cidade, uma outra cidade, uma outra vida... Tão bela fora essa vida. Gustavo percebera finalmente que mostrar sua máquina fotográfica a todos os amigos em suas festas no casarão (o de Laranjeiras) não surtia efeito algum em sua consciência. Comportava-se tão inquieto pelo salão, de lá para cá, olhando de sobrolho para a esposa; tanto amor contido naqueles tempos de briga. Quando se libertou, descobriu o verdadeiro significado da máquina e começamos a ir sempre ao centro para fazer longos passeios pelas praças. Ele fotografava cada movimento de Fernanda. Ela lhe sorria como Audrey, só que não sorria para câmera, bem sabia, mas para o que havia detrás dela. Era privilegiada por presenciar tanta felicidade. Cada vez que o telefone tocava em minha casa, meu coração palpitava de alegria. Fora um momento de grande inspiração e isso se refletiu profundamente em minha escrita. Publiquei meu primeiro folheto de poesias. A barriga crescia a cada encontro. Sorriam como se tudo fizesse rir: o sorvete que a criança chorava para mãe depois de ver Fernanda se lambuzando, e eram tantos, dia de pistache, dia de amora, desejos, desejos... Haviam os artistas de rua que pareciam mais espectadores do casal; os estudantes que corriam de lá pra cá com bandeiras políticas; os guardas que nada guardavam mas mantinham bela imagem da cidade estampada no uniforme – suspiros acerca de tudo e o charme em direção à câmera.

O filho veio para os braços da mãe em uma tarde de outono. Mas, antes disso, esqueci de dizer que as minhas noites de sábado haviam sido raptadas pela Fernanda da época de glória. Foi a fase dos sucos também, bebia sucos variados por causa da gravidez. E chás também. Ah, como fui feliz dentro de minha casa, no meu círculo de amizade! Dançávamos juntas até o alto da noite. Raras as vezes em que ela não me fazia sentar ao piano para acompanhá-la numa cantaria descontrolada, acalmada apenas por sua sereníssima voz de anjo. Eu queria lhe dizer, ainda ali, no mesmo quadro, que a amava muito e que queria dançar abraçada a ela pela eternidade. Dançaríamos paradas, deixando o entorno correr sozinho. Ficaríamos presas à noite dentro de uma taça de vidro, intocada, esquecida sobre o piano. Porém perdi a oportunidade de me expor, fiquei presa aos meus versos. E a filha (era uma menina, você já sabe) nasceu. Linda como o outono, com os olhos já presos como se a unha delicada de Deus, ao desenhá-los, tivesse feito dois riscos e deixado que a força do tempo os abrisse. Mas o tempo sempre fora paciente com as duas, Fernanda e a filha, e até esse agora não abriu de todo seus estreitos olhos. Ficamos longe desde então. Acompanhei o crescimento de Aline pelos jornais, como qualquer outra desconhecida. Gustavo me ligava de vez em quando, convidando-me para comemorações de aniversário, mas era a falta de Fernanda em sua voz que me preocupava. Decidi que era vida que começava a passar de novo e fiquei agradecida pelos lindos meses de sublime abstração.

Voltei, escrevi, continuei nos poemas, arriscando progressivamente linhas de prosa. Gostava de alguns personagens que me surgiam na mente. Percebi que derramava cada vez mais de mim pelas folhas espalhadas sobre a escrivaninha. Um dia, veio a notícia de que Aline completaria cinco anos. Não houve um toque sequer do telefone; entristeci-me. Estavam tão longe agora... em outros papéis, só em papéis borrados. Acho que foi nesse momento que pisei fundo nos contos. Escrevia um por dia, sobre a vida que eu via correr pelos jornais e pelos dizeres trazidos à voz por Ana, minha ajudante do lar. Os contos cresciam com personagens que mudavam tanto de ideais como minhas filhas. Dei-me às crônicas também. E a transição exata e completa do meu estilo de poetiza para cronista se deu quando recebi em minha casa, pela primeira vez em seis anos, o casal Fernanda e Gustavo. Gustavo soube de meus problemas financeiros (minhas poesias estavam perdidas no esquecimento público) e me propôs um emprego no Jornal do Brasil. Tinha conhecidos por lá que, segundo me assegurou, estariam interessados na minha escrita. Aceitei a proposta em vista da fragilidade em que me encontrava após do impacto das fortes reminiscências trazidas pela visita. Os dois estavam bem na minha frente, alheios ao passado de alegrias que compartilhamos. E eu, confusa e amável, temendo o fim da visita. Fernanda permaneceu calada durante toda a tarde e quando pensei que ia perdê-los uma vez mais, e dessa vez para sempre, ela abriu a boca: “Você não acreditará, mas outro dia estávamos eu e Gustavo olhando Aline brincar. - os mesmos olhos cerrados, flutuando no passado – Sabe como é estranho vê-la assim tão crescida! Acho que nós mães nunca vamos nos acostumar com essas pessoas grandes que chamamos de filhos. - sorriu, tirou o cabelo do rosto e notei que devia ter uns quarenta e cinco anos – Então lembramos da minha gravidez, de nossas adoráveis tardes passeando pela cidade. Nós quatro nunca fomos tão próximos como naquela época. - apertou forte a mão do marido e ele a olhou tirando da imagem da esposa uma foto perfeita. - E agora, veja só, percebemos que Aline nem a conhece de vista... - retruquei afirmando que a visitara nos primeiros dias. - Mas aí não vale! Ela mal tinha os olhos abertos.”

Gustavo falou, completando o pensamento da esposa: “Venha nos visitar de vez em quando, sim?”

Fernanda abriu a bolsa e tirou uma pilha de fotos, passando às minhas mãos.

“Queremos que fique com essas” - folheei. Eram as fotos daquele tempo. - “Temos cópias.”

Pronto. Agora eles podiam se despedir para sempre de mim. Não tomei tal ato por mal, sabia que era o jeito das coisas se reacomodarem de vez. O tempo, às vezes, simplesmente passa, e certas graças são perdidas pelo caminho. Mas logo logo outras são encontradas, te asseguro, Mari! Tome sua mãe por exemplo: a porta que se fechou naquele dia trouxe consigo a abertura de minha sensibilidade para outro caminho. As fotos inspiraram minhas primeiras e mais belas crônicas dominicais. Sei que não nos conhecemos pessoalmente e informo que nunca conheci sua mãe também
, mesmo depois daquele dia. Soube que são estimadas ainda pela alta sociedade carioca. Não sei exatamente o que isso representa em importância, mas sei que esse é o único meio que me sobra para conhecê-las: as pequenas informações que coleto pelos jornais, pelas vozes da rua. Formo uma imagem e a fotografo em uma crônica. Acho que é por isso que te escrevo agora. Escrevo a você, cujas feições carregam tanta história, palavras que remetam ao reconhecimento em mim de uma figura amiga para todo o sempre. Peço que permita a continuidade de suas histórias imaginadas estampadas domingo após domingo nas folhas do jornal. Eu que a vejo apenas em fotos, espero, sinceramente, que possa ver nos meus textos seu espírito desenhado em ação eterna. Você é Fernanda e Gustavo. Beijos de sua amiga desconhecida. Eles ficaram após o fim, mas na mesma linha, para que não nos separem nunca, as palavras.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Olhos pequeninos


Quando era pequeno tinha olhos pequenos. Mas ao contrário do que pensavam meus mentores, meus olhos viam apenas as coisas grandes demais. Pouco antes do incêndio, conheci o circo do gigante e vi toda aquela altura sem nem inclinar a cabeça, alinhando todos os detalhes à candidez de meus olhos miúdos. O fogo o levou numa labareda só e conto como foi:

Da janela do meu quarto, ouvi os primeiros gritos e fui acalmado por uma imagem de imponente beleza: o gigante correndo em silêncio. Levava o circo em chamas nas costas - o circo inteiro com todas as pessoas menores dentro! Levava-o tal qual se leva um cão doente ao veterinário. Só com os olhos que tinha pude ver o rosto do homem coberto de lágrimas infinitas. Ainda na mesma janela, acompanhei seus passos pesados, que seriam curtos para os que são pequenos e vagarosos, para aqueles que tem suas pernas separadas da urgência. Ele mergulhou o circo de uma só vez no lago da cidade vizinha. Seria um herói se a água não fosse pouca para o fogo muito. A imagem do gigante inconsolável: lágrimas longas como cascatas de água salgada. Os gritos de dentro da lona eram abafados pela proximidade da morte enquanto ligeiras formas de vidinha saiam nadando pelos buracos, explodindo em fogo a seguir, num estalo inaudível. Dentro do gigante constantes sopros de esperança eram abafados por cada nova morte - via isso pelas brechas que a imensa alma desesperada permitia mostrar aos outros. O ser enfim resolveu abraçar seu lado monstruoso e pude sentir seu urro atordoarem minha respiração calma. Ele se levantou e todas suas ações foram verdadeiramente grandes. A imensidão de sua fé parou as demais formas de desesperança e, mesmo sabendo da sua giganteza toda, não conteve seus gestos. Foi aí que ele virou deus e se jogou em cima do fogo, contendo-o com o próprio corpo. Meu pulmãozinho pareceu de um momento para o outro o de um gigante para poder acomodar todo ar de surpresa que engoli de repente. Seu grito fora tão persistente, tão longe... Ele se levantou - eu vi - e o circo estava apagado e toda a água se foi do lago. As pessoas foram então saindo aos poucos, assustadas, mas vivas. Ninguém que via o fogo flutuar no ar pôde imaginar que era o gigante: grande balão de fogo pairando! Apenas eu podia acolher toda sua dimensão. Pelo pouco tempo da infância.

De lá pra cá, venho crescendo e o som do grito do gigante, que ainda ressoa no fundo do meu peito, vai sumindo a cada novo inspirar. Quando espirro, costumo imaginar que me saem dois ao invés do costumeiro um pedaço espectral do gigante; e nem o “saúde” que é dito por alguém me ajuda a recuperá-lo. Mas hoje já raciocino com minha reduzida visão de olhos grandes que o gigante provavelmente via tudo pequeno demais e não teria me visto como espectador do seu show magnífico. Se creio que sim - que me viu - deixo de pensar nas angústias da vida. O gigante, sua paz e todos seus gestos afobados, que não o impediram o queimar, mas que o levaram a uma espécie de ascendência, tem sua foto imaterial marcada numa cena que até hoje é comentada pelas ruas do meu inconsciente. Fora visto numa noite de pessoas acordadas, um fogo que, ao contrário de se consumir, era de constante combustão e recombustão, voando por um céu de uma só escuridão. No dia imediato ao evento, meus mentores me contaram, num momento de esplêndida revelação, que a imagem era um sinal de que o fim dos tempos reservava um novo começo: “um novo sol caminha em nossa direção”, eles disseram. E eu ali, sentado a mesa com meus olhos ainda pequenos, pude ver suas palavras e seus pensamentos por inteiro. Agora já não tenho muito o que ver com meus olhos grandes, mas trago sempre à tona essas belas imagens quando fico cego pro mundo. Toda manhã, penso que o sol um dia acaba e volta. Escarro menos as velhas lembranças, 
expecto mais as novas ressignificações.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Reticências


Amor de verdade... Começar alguma coisa por esse conceito é meio um risco de se nascer pela morte ou pelos pés. Ela acha que é melhor pensar em pernas porque puxar pernas frágeis como as do amor deveria ser algo cruel o suficiente, podendo assim se encaixá-lo nas suas experiências ruins. Mas amor de mentira nem é parte do conjunto de verdades que Sara guarda, ela só quer que alguém a ame, já que amor deve, por si só, ser uma verdade. Acredita que não é o amor que possuí uma característica, mas a relação. Tudo que gira em torno de relação parece se movimentar rápido demais para uma menina que sente a vida ir embora a cada passo dado pela varanda de casa. Essa Sara tem uns vinte e seis anos agora e nem pode mais ser chamada de menina, mas usa vestidos até o joelho e chinelos sem ocasião. Gosta também de pedalar, e quase sempre caminha pela varanda, de onde pode ver os caminhos que percorre diariamente e me incluir, sem se dar conta, aos seus questionamentos de vida. O meu amor é de mentira porque não tem relação com ninguém. Apenas eu faço ideia do que ela quer, mas nem quero que ela saiba que estou aqui,  olhando. A história é dela.

Sara teve um namorado que ia todas às sextas na sua casa porque achava que sexta tinha uma significação estranha de fim de tudo e última oportunidade de início. Os dois se deitavam na varanda e olhavam o céu tocando discretamente seus respectivos corpos através de palavras sussurradas. Eu podia perceber isso porque ouvia bem tudo que pertencia à esfera das palavras através dos gestos. Achavam arriscado fazer o que faziam em público, mas não tinham ideia do quanto realmente eram patéticos só por acreditarem na metáfora das sextas eternas vividas intensamente. Não sabiam o que esperar desse eterno, já que desconheciam o tempo do amor por estarem dessintonizados. Um dia, num último suspiro, ele disse que a amava e ela se sentiu viva como nunca; até chegou a pensar que alguém mais sabia seus pensamentos (mais uma vez, eu) e concordou em fazer parte de um todo, exprimindo liberdade flutuante. Naquele dia, ele a puxou pela mão para dentro do quarto e tirou das palavras o que havia de sexo. Ela foi feliz e ele não sabia que isso simbolizava um retorno à crença no amor. Na outra sexta...

Na outra sexta, tudo dependia da quinta, da quarta, da terça, e Sara de repente se viu presa aos dias como se não representassem nada além do mesmo. Os dias não se contavam até a sexta, eram sós e participavam de Sara em aflição, como milhos de pipoca presos numa panela que aquece cada vez mais. A menina era um evento de contornos frágeis: estava arrasada pela chuva que tempesteou a sexta, alagando a varanda. Daí, foi uma sucessão de imprevistos que distanciou gradualmente o casal de escola. Ela prosseguiu entre livros e semanas sem sextas. Quanto a mim, nesse passar dos anos, nem sabia se estava matriculada em alguma universidade ou se ainda ia à escola, porque sempre que precisava, olhava para varanda e a encontrava como alegoria constante. Palavras deixaram de ser trocadas naquele espaço da casa, agora eram recebidas ordens daqueles livros. Sara desconhecia seu poder de fazê-las desabrochar em carinhos. Então sumiu. Fiquei sozinho olhando meu vazio sobre a varanda. A chuva passava por ela sem deixar água acumulada para ser escorrida pelo rodo e eu, em momentos de angústia extrema, morria de medo que um dia ela voltasse e soubesse de minhas aventuras por varandas imaginárias e outras Saras. Minha mãe sabia do meu afeto e, pelo acaso de morarmos juntos e almoçarmos na mesma mesa, me trouxe a informação de que Sara morrera. Minha mãe era louca.

Sara não tinha morrido, havia apenas mudado sua maneira de existir.

Seu sentido agora era falta. Uma falta tão grande que vivia despedaçando meu peito cada vez que chorava minha saudade. A menina cujos passos cresceram no meu olhar simplesmente quis ser alguém além das minhas verdades. Percebi que toda sua leitura que lhe dava ordens fora desconstruída nesse tempo de  sumiço. Quando Sara olhou, encontrou no fundo de si verdades múltiplas e, calma, não pediu mais nada: seus processos de amor se tornaram despretensiosos e éticos. Sara me deu adeus e me deixou a varanda como herança. Todas as sextas tiro folga - são meus instantes oportunos. A cada nova sexta envelheço uns cento e vinte anos só de olhar. Me engolem esses dias!

Mas depois ela voltou. E trazia amor de verdade. Não hesitava mais em marcar as reticências após “verdade”, pois sabia que elas ficariam ali passando o tempo e, ao lado dessa noção de muito tempo, restaria algo essencial e íntimo, que era ela mesma. Amor de verdade... São dois tons do mesmo sentimento. Ela aparecia e eu me emocionava. Não era sexta, mas eu vivia crescendo num mesmo instante de infinita sabedoria derivado de uma pausa que a menina provocava dentro dos meus olhos, e isso alterava muito minha idade. Parei de passar num tom só. Dupliquei desdobrado nu sobre meu próprio voyuerismo
. Ela voltara com os mesmos livros, com o mesmo vestido voando pelo joelho. E ainda chegava em casa pedalando e assobiando. Tirava os pés do pedal para empurrar a bicicleta no curto caminhar até o portão. O ferro arrastava ao abrir. Girava a chave e entrava.  E tudo escurecia - na cabeça acendia uma luz e a via pisar num templo imaculado. Era uma bela dança: minha menina na minha varanda. Esqueceu de morrer, de apagar aquela que foi, antes de resolver renascer em carne e osso dia após dia. Não dava mais importância para os dias especiais, para os amores velados no risco, para as palavras de ordem e muito menos para os olhos perseguidores. Minha ânsia por viver em sua pele como suor nunca seria saciada porque ela nunca pararia de suar e suava despojando-se de todas suas amarras. Ficava me perguntando porque Sara fazia tudo parecer tão fácil.

O último dia: sem superstições era uma sexta. Não sei porque motivo, eu estava fora de casa; fazia algo para alguém, para minha mãe e talvez para suas loucuras. Andava apressado com a atenção fixa nos meus passos cotidianos quando percebi o assobio perto. Sara pedalava graciosamente ao meu lado. Levantei a vista e vi que nossas casas ficavam uma de frente pra outra, quase se misturando. Parei a pressa e a acompanhei como se fizesse parte de seu caminho. Ela parou em frente à sua casa e eu, em frente à minha. Entramos. Ambos subimos nossas escadas e cumprimentamos nossas respectivas mães. Ela foi para o seu banheiro lavar as mãos e eu esperei que acabasse dentro do meu. Saímos juntos com as toalhas nas mãos. Ela olhou pela janela e, pela primeira vez, viu minha casa. Tudo que fiz foi tentar me encaixar no seu olhar. Ela me tinha perto de si, como um amor de verdade, reticente. E me viu por inteiro, como eu sempre quis, até não me ver mais, nunca mais. Fiquei horas ali sentado, olhando para o outro lado. Minha mãe, louca de pedra, me chamava. Os minutos foram me cercando enquanto minha mãe subia as escadas até aparecer naquela varanda que me encarava. Gritou mais alto. Esfreguei bem os olhos e enxerguei com os olhos de Sara. E me mirei, sendo Sara. Me vi flutuando de cabeça pra baixo no meio do nada até uma mão enorme surgir e me puxar pelas pernas. Sumi no ar. Ela me olhou de uma varanda vazia e alagada, porque o ralo estava entupido e os olhos choraram demais. Minha mãe berrou outra vez. Abri os olhos e fui atender seu chamado. Não era nada demais: a vizinha tinha morrido.

Números


Um, dois dos quatro amores
resvala no pressuposto do grão,
sublima a água fundada no oco
e repassa ao infinito o que venta.

Um, dois daqueles instantes amarelados
revelam a magna ânsia por sonhar
a certeza do que há por trás,
por dentro,
no armário ruidoso das emoções.

Escolhendo sem querer um dos dois
descobri o terceiro amor,
que nem se escondia do riso,
delegando ao inverso sua exatidão:
o amor na imensidão da risada!

Esse amor é palhaçada!

E é tal que nos salva.
Salvadora, heroína...
Um amor da droga de fazer,
traficado pelos palhaços do alvorecer.
Um amor assim que urge umas palmas
e se rodeia do eterno.

O que se foi de um,
dois dos que ficaram, se chocaram.
E, por mais incrível que possa parecer,
o cho(foi tão aberto)que
no abeto do coração latente ele explodiu.
Respingou certezas muito próximas,
replicando sabores muito familiares.

Ele, nessa árvore, queria família.
E Julgava conhecer a chamada vida
fingindo sociedade na alegria.
Por que no fundo? Pertencia ao escondido da falta,
embora o plano enganoso tivesse alicerces bem sonhados.
Ele era uma pena...

Foge! - disse o passado.
Descobriu-se desespero sem falseamento.

Agora, já não se escapa mais do que se é dançando no escuro,
nem da voz que berra por amanhecer.
Tem-se pra quem correr, ao menos
ele voz disse.
Um, dois dos que se foram, ficaram.
Está nele de volta a volta!
Tem-se pra quem correr!

Dos que ficaram pra trás na discórdia do riso dramático,
um está de volta
e é seu parceiro.

Tem pra correr quem se tem.

Cessa então expressão triste mascarada de sonho:
o dito que foi sobre quem era enfim é.
E dá pra ouvir apenas o clamor sereno da estrela
a chamar duas das uma, em horas.
A esperar um ou dois dos quatro amores passados.
O amor agora é o choro que ri
da palhaçada que guia cambaleante,
e o infinito recomeço se abraça
naquele um que já foi dois.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Japoc


Já pouca
Já toda
Já louca
Já nossa
Já!
De São Julião
A Juca Tocado
Doidão/Adoidado

Declaração de amor


Gorda feia! Lá lá lá! Lé lé lé! Lelé da cuca, cuqueira curandeira, que arrebanha meninos e faz deles meninas. Velha gorda, velha gorda! Sem cara, sem rosto, com cabelo sem barbeiro: uma macaca! Barata bruaca bruxa!

Mas eu te amo!

Toquei piano até a morte dos meus gestos - as mãos sangraram: adoro seu jeito de ler minha mente na sua bola de cristal e quebrar o silêncio dos meus pensamentos num terreiro de macumba. Espero que se exponha transcendendo a barreira descritiva que a faz gorda ou bruxa (xabruí, quebra odargo que quis iafe, mas disse magra e bonita, fazendo de tudo uma coisa só. Arcaxanabrundi!). Mão de santo, preta veia, Maria loca, Xuxa de cobra, Abá Sanro. Minha doce Taya! Minha música é pobre, simples, ruim - não te deseja e te teme. Música cantada sem melodia, com rimas superficiais e lelés fugidios. Tenho o coração gelado, meu bem... E congelados estão esses papéis e tintas dessa mancha que te escreve. Me perdoe!

sábado, 17 de julho de 2010

Catando do chão


Hoje eu voltei de um lugar ruim e tudo o que eu queria antes eram paredes com crianças enfileiradas de narizes sangrando tinta guache. As paredes brancas nem sabiam a luz que precisavam ou se tinham que esconder seus riscos e suas sujeiras. A luz da lanterna marca um alvo: luz amarela que expõe o palco. Mas não era nada disso que queria... Necessitava da força encontrada na dor. Dor de passados que não passam.

Embora tudo ainda me atormente, um hoje penetrou pelo meu sossego até chegar na minha zona de ação, e minha atitude perante a vida foi fazer o que fosse mais fácil de fazer, porém de primordial feitura. Qualquer energia em frente é bem-vinda. No teen-against! Sem berços desovando filhotes da raiva sem-noção. Um diálogo ainda pobre, carregado da munição tola de toda essa juventude que teme o passar dos anos. Acabou aqui! E o que temos? Quem somos e qual nossa marca - nem perguntas conseguem ser. Deveríamos ter sido escolha antes que tentassem tirar nossa cara e substituir pela engrenagem que sorri ordem. Perdemos a paz na ordem e a ordem se fudeu. Estalei os dedos sob o comando de cérebro alheio. Antes, quando vivia, saia de casa apressado pra ser alguma coisa.

E fui. Lembro de ter feito alguma coisa, ouvido alguma coisa... Falado um pouco talvez, não mais que duas palavras e relaxado por não precisar pensar no que fosse. Saí de lá bem. Mas bem, bem, bem nem ele que me queria tão bem soube ser merecedor do bom que todo bem pode trazer. Então não foi bem assim. Mas saí de lá andando. E eles me seguiram e eram muitos, juntos de risos debochados que riam de mim. Cavei o que de ridículo trazia na minha aparência, mas fui atormentado pela possibilidade de estarem vendo além disso. E realmente não viam nada do que era por fora. Viam meu ridículo interior! Toda babaquice e caretice que nunca me cansou. Continuaram pelo mesmo caminho que eu, me assustando com os medos que tinha construído. Ao invés de encará-los, busquei outros caminhos na tentativa de despistá-los, e disse gritando que aqueles rostos não eram meus. Cheguei finalmente em casa por atalhos diferentes dos deles. Tranquei a porta, entrei no quarto, coloquei Sonic Youth e fingi que tinha um cigarro pra fumar e amigos pra chegar. Fucei folhas em branco, escrevi bobagens em tópicos pelas paredes e coloquei tinta debaixo do nariz. BUM! A revolução estourou do outro lado da tela e chorei sem parar... "não me custou um centavo, era caseira."

Não sei se vou continuar nessa luz que me cega.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Tarde de ódio, política, amor, pesadelo e fé no orkut

Eram duas da tarde num domingo quando um perfil chamado @Fábi°* resolveu postar numa comunidade chamada "Ódio Aleatório", que zelava pela mútua compreensão desse sentimento talvez incompreensível. O perfil clicou em "nova postagem" e começou a digitar: "Olá, nem sei se permitem isso na comunidade, mas pensei em criar um tópico-caixa, onde toda vez que alguém ficasse muito puto com alguma coisa aleatória, pudesse despejar suas merdas."

Para começar: Hoje eu odeio esquemas!

Tudo tá tão esquematizado pra se pensar, agir, falar de determinada maneira que parece que já decorei as falas dos outros e as minhas. Sem contar que esquema é uma palavra complicada porque lembra tático que lembra futebol que lembra vencer que lembra prepotência que lembra capitalismo selvagem que lembra desigualdade que lembra injustiça que lembra revolta que, por sua vez, lembra ódio enfim."

O tópico foi postado e a página permaneceu estática por cinco ou seis minutos. Foi então que o perfil @Fábi°* voltou para sua página principal, visualizou suas fotos recentemente postadas e verificou a contagem de comentários (igual a zero). Ficou preso nessa reverificação até decidir (e digitar) ele mesmo um comentário na foto 017 do álbum "cada vez mais longe...".

O comentário foi feito e desfeito sete vezes. Um amigo perfil Ana§Vote15§ deixou um recado na página de recados de @Fábi°*
"Oi, pasando pra lembrar de votar 15 semana q vem!!! Vlw. conto c/ vc! Bjs.te/amo.."

Ele clicou em responder a mensagem e ctrl+c no "te/amo" acrescentando "tb!". Hesitou em enviar, mas enviou mesmo assim, indo em seguida visitar o perfil Ana§Vote15§. Visualizou todos recados. Leu e releu o seu, recomeçando toda a checagem uma segunda vez. Sentiu ciúmes de alguns perfis que também amavam Ana. Ficou com raiva de si mesmo. Fugiu pros álbuns da menina. Todas as fotos com sorrisos mostrando os dentes e uma dedicada a um homem: um cartaz com a seguinte inscrição "Robierto Alvez: Vote no centroavante! Vote pelo avanço! Vote 15!". Ctrl+c novamente - copiou a legenda da foto e a salvou na área de trabalho. Uma revoltinha crescia dentro. Clicou em comunidades, mas recebeu um recado de um outro perfil. Em sua página de recados, os dizeres:

"Oi, pasando pra lembrar de votar 15 semana q vem!!! Vlw conto c/ vc! Bjs.te/amo.."


Era do perfil Lei²linha.


Subitamente a tela se apagou e as palvras sumiram. O computador reiniciou sozinho. O que ele escrevia em resposta foi sugado pelo espaço obscuro do não-existir. A tomada do computador trabalhava hesitante, com mal contato, e o estabilizador piscara centenas de vezes, mas Fábio não tinha percebido. @Fábi°* desapareceu, sobrou Fábio. Perdeu o ctrl + c e as ideias que tinha. Esqueceu a raiva anterior e chutou CPU. Restou apenas o número quinze na configuração mental repetitiva do provedor humano Fábio. E esse número ficou tão grande que o engoliu num pesadelo enquanto cochilava sono inquieto de meio da tarde. Acordou assutado e carente. 

Apertou os botões orando para que o computador ligasse em paz.

domingo, 30 de maio de 2010

Galaxy


- Puta merda! O que você fez, seu imbecil?

Já era dia e José Antônio mal sabia. O ar da manhã gelada batia sem dó no rosto de Helena enquanto ela lutava para arrancar fora a calcinha suja de terra. Ao seu redor, um campo de mato orvalhado e resquícios da noite abandonada.

Helena primeiro umedeceu os lábios com a língua para depois abrir os olhos. Sabia que o que eles podiam ver a envergonharia. De fato a razão serviu dedutivamente bem: vários seres humanos não-recicláveis jaziam em posições sexuais variadas, congelados no cansaço do orgasmo inalcançável. Eles haviam feito jus às várias latas de energéticos. E ela se lembrava claramente que o que via era o resto de uma manifestação política.

A calcinha cheirava a álcool. Helena se desfez dela enquanto José Antônio procurava desesperadamente seu cachimbo escavando o mato alto. A calcinha lhe trouxe o cachimbo caindo bem em cima dele. O rapaz teve nojo e se desfez da desfeita, levando o cachimbo à boca com um saquinho de fumo já na mão.

- Eu não fiz porra nenhuma, foi o puto do Henrique que chamou os caras pra tocar a parada.

Helena se aproximou de José Antônio com um saião hippie de uma mulher desacordada chamada Carmem, cujos cabelos foram raspados pela metade. Helena guardava a dúvida sobre se aquilo ocorrera antes por moda ou depois por protesto. José, que havia terminado o primeiro fumo entre chacoalhadas no corpo todo pra acordar e lembranças cômicas do que foi o dia anterior. Olhou a moça se aproximar com desconfiança fingida, para sustentar um suposto charme. Helena puxou um galão de lata e se sentou ao seu lado.

Os dois rapazes que dialogavam alto demais para a sensibilidade auditiva matinal de Helena se distanciaram um pouco na busca das chaves da picape:

- Liga pra ele, cara! Você não vai querer que o Madruga acorde sem uma explicação do que...


E as vozes se foram.

Helena olhou para José Antônio e parou os olhos com fixidez incomum no seu pescoço encardido com riscas de sangue. Esse dado a iniciou numa série de questionamentos sobre o passado do rapaz e sua ligação com o dela. Aparentemente, os dois estiveram no mesmo círculo sonoro de batidas eletrônicas acordadas com a ação em prol da unificação dos CUTB. Existiam grandes chances de que haviam tido um encontro numa mesa de poker qualquer ou compartilhando um baseado. Do nada, a mente da garota desnudou o rapaz e ela só desejava adivinhar suas proporções genitais. Imaginou se elas seriam capazes de lhe dar prazer e se o corpo dele saberia como se comunicar com o dela. As mãos que eram delicadas com o cachimbo suportariam a fragilidade dos ombros gemendo? O quadril saberia se mover ao som da melodia de seus dedos?

- Me dá uma tragada?

- Você fuma cachimbo?

- Não, nunca fumei.

José Antônio passou o cachimbo para Helena e sua mão, sem querer tocou nos dedos da outra. Ele sentiu de repente a frieza toda da manhã. Ao seu redor a desgraceira do que fora um protesto sem fundamento, ele lembrava. Sua capacidade de acordar um dia depois do outro mantendo os olhos abertos para ver o que mais de patético existia na sua vida ainda o deixava atordoado e surpreso. “Quando você vai parar de respirar um minuto em homenagem ao minuto que perdeu percebendo a desgraça do mundo?”, pensou. A Helena ao seu lado era a mais comum das Helenas, mas ele, mesmo sem saber o nome, nem queria saber sobre suas origens e motivações. José perdera o paladar para o fumo e começou a choramingar silenciosamente em seus pensamentos, lembrando de suas pretensões artísticas.

- Ontem à noite nem deu pra completar a apresentação da proposta cultural. Ia ter uma performance bem bacana sobre a persona universitária atual. Digo, a brasileira.

Ele tomou o cachimbo de volta e notou que Helena lhe sorria no apelo de uma conquista.

- Pois é. Mas se quer saber nem existia a possibilidade de se levar isso a sério. Você fazia parte de algum conselho? - ela o olhou se esquecendo que sorrira antes buscando sexo - Pra falar a verdade, eu nem sabia que isso existia. Vocês foram bem estúpidos de fazerem o evento logo aqui. A primeira sexta do mês é o dia da Galaxy.

- Sabíamos disso. Na verdade, esperávamos que isso ajudasse nossa causa.

José soltou o cachimbo, segurando-o com os dentes pelo canto da boca, fazendo com que Helena dissecasse a cena, adicionando um novo aspecto masculino ao rapaz - uma mais charmoso e tolo. Ele  estendeu a mão direita na sua direção.

- Faço parte do Conselho da URSERJ. José A, prazer!

- José A?

- A e ponto. Significando Antônio.

- Ah... - ela riu notando os primeiros raios de sol tocarem os cabelos grudentos do rapaz - Você queria passar mistério sobre sua identidade.

Ele deu uma longa tragada descobrindo uma nova conexão com a moça.

- Toda identidade é um mistério. Mas não, não pretendia fazer suspense ou coisa parecida ou causar alguma impressão especial. Tipo, você nem faz meu tipo físico de garota e acordei meio mal do estômago pelo bagulho que tomei ontem.

- Você é só José Antônio?

- Isso!

Helena sorriu discretamente para baixo e entrou novamente no jogo de coletar informações interessantes sobre José Antônio. Fora o fato dele ter um nome, seus pressupostos só tinham intenções ajustadas a devaneios sexuais. Ela gostaria de perguntar se tinham transado na noite anterior e, com a negativa, se gostaria de transar naquele momento. Ela sabia que as palavras em sua mente circulariam estúpidas sempre num mesmo eixo até que realizasse seu desejo. Não havia espaço para algo diferente daquilo que eram: ele era um conselheiro e Helena achava tudo aquilo extremamente chato. Incompatíveis.

- O meu nome é Helena.

Eles se olharam uma vez mais e ele finalmente entendeu que ela talvez gostasse de sexo pelas frescas horas do dia. Helena cruzou as pernas, esticando-as na grama e ele pôde perceber que a moça estava sem calcinha. Seu sorriso foi propositalmente safado. No minuto seguinte, José A. já estava sentido uma excitação crescente no pênis. Helena começou a cantar uma música pop qualquer, de costas para ele.

José deu um tapinha no ombro de Helena, chamando sua atenção. Ele balançou a cabeça num convite que a moça não precisou decifrar duas vezes. O botão do jeans voou para quilômetros de distância indo parar na testa de Erick, um calouro de matemática que xingou alto, bocejando. Helena puxou o saião pra cima dos seios e se posicionou em cima de José A. Durante longos quinze minutos ele tiveram relações sexuais.

- Foi legalzinho.

- Desculpe, pensei que era isso que você queria.

O casal estava deitado na grama sentindo o orvalho derreter nas costas suadas. Os outros iam começando a caminhar cambaleantes, carimbando suas sombras nos rostos de Helena e José. Provocavam ruídos de cochicho realmente irritantes àquela hora pós-sexo.

- E era. – respondeu Helena após algum tempo perdida em pensamentos.

- É. Acho que realmente foi legalzinho...

José concordou com Helena apenas por conveniência, mas depois raciocinou honestamente relembrando as cenas da trepada e reconheceu ali nada menos que uma performance meia-boca.

- A gente se vê. – disse Helena, sentindo necessidade de dar algum conforto a José com sua cara de menino triste. Nunca vira um homem tão infeliz após o sexo.

- É. Ainda vamos trabalhar naquela performance que te falei pra usar em outra ocasião... – ele olhou para cara dela forçando um sorriso – que não seja o dia da Galaxy.

- Ah é! Galaxy agora só daqui a um mês. Tá tudo limpo pra vocês e seus grupos de conselheiros discutirem seus assuntos sérios, que visam... – ela não sabia o que dizer e sua voz foi perdendo o ritmo por constrangimento – o bem da comunidade universitária brasileira. Super apoio!

Helena sorriu orgulhosa de sua capacidade de falsear sorrisos.

- Você é uma artista, Helena?

- Eu? Não! Quem dera... Não – ela cuspiu um riso de descrédito – nada a ver.

- Você faz que curso.

Helena pensou em responder, depois pensou em porquê dava tão pouco crédito às artes. Ela lembrou de sua amiga Carla, do tempo em que jogavam pingue-pongue no recreio na época do ginásio. Carla ria bem alto num tom suave e lento, e inspirava Helena a escrever e reescrever a descrição do sorriso em seu bloco de ideias. Nunca havia conseguido decifrar em palavras aquela vivência. De repente questionou a existência desse tal bloco. A galaxy era um destino seguro, porto de felicidades instantâneas. Lembrou de que estivera triste no dia anterior, revirando coisas do passado, chorando com tudo. O bloco reapareceu no meu da confusão. E, por acaso, amou de novo aqueles escritos e chorou nas páginas e guardou consigo. Levara consigo: dançou com aquelas lembranças coladas ao corpo, dentro da bolsa, batendo nos quadris. Seria o bloco um protesto artístico?

- Olha, acho que pouco importa que curso eu faço. Deixa isso pra lá que essa é uma conversa muito tola. Hoje é sábado, mais um dia pra aloprar e depois é domingo e aí volta tudo ao normal. E é assim que eu escolhi viver: sendo normal e aloprando, normal e aloprando até sei lá, sabe?

- Sei. Foi bom te conhecer, Helena! Esse é um nome mítico, não é? Digo, referente à Helena de Troia e tudo mais. Não é assim que contam?

Ela riu presa na conversa mais ridícula de sua vida.

José Antônio tinha sua mente funcionando num esquema de não-compreensão racional e objetiva do que falava, procurando alguma justificativa que validasse uma conexão mais profunda entre ele e Helena. Queria poder interpretar a relação sexual como tendo sido boa e produtiva e não comum e inconsequente, com a ressalva de que ela não engravidasse.

- Não. Ninguém nunca me contou nada.

Helena, sem graça, se virou de costas e andou, interrompendo o jogo das palavras vazias. José bateu com as mãos nos quadris sem pistas de como pescá-la de volta pra si. - "De onde você é, Helena?", ela não ouviu. A derrota forçou o rapaz a planejar uma forma de liquidar o encontro de sua cabeça – a primeira oportunidade veio numa lata de cerveja que o fez recordar da reunião do CUTB naquela tarde, que logo puxou a associação dos estudantes de teatro amador e a compra de comida pra gato. Daí os pensamentos jorraram e ele se esqueceu que estava no meio de um campus fedendo a sexo e álcool. Só existia agora o gosto triste de uma garota que sumiu.

Helena dirigiu até uma padaria, onde pediu um copo de café puro sem açúcar seguido de outro num pré-pedido. Ela deixou que a quentura lavasse sua boca, apagando o sabor de cerveja. Permitiu que a ação de levar o copo à boca, engolir e pousar de novo sobre o balcão equivalesse a uma pausa  nos pensamentos muitos.

- O senhor pode ler essa página, por favor?

O dono da padaria olhou com olhos de aborrecimento, mas tomou das mãos da moça o bloco do ginásio e começou a inspecioná-lo com os olhos. Helena o observou ainda no ritual de beber o café devagar e lavando.

O senhor pigarreou como num palco:

- “Dia sete de abril. Hoje a escola mais uma vez anunciou o início das olimpíadas de gramática e matemática e joguei vôlei. Já foi a terceira vez nessa semana. Carla e eu decidimos sair da fila durante o pronunciamento e agora escrevo do banheiro feminino no terceiro andar. A gente está fumando, mas tudo bem porque já sei que vou parar aos dezoito e porque ela está cantando. Sua voz é tão alta e suave, quase numa incoerência sem saída. Às vezes, sinto que Carla é algo pra me mostrar que eu não consigo ver...” Aqui não dá pra entender – ele resmungou – Ah... “Fiquei pensando um bom tempo no que faria da vida quando estivesse fora do colégio. Queria ser do meio do caminho, como num filme americano – um road movie – queria ser um daqueles bares de beira de estrada por onde todo mundo passa mas não fica. Sei lá, são algumas das bobagens que penso toda vez que ela canta.”

Ele virou a página para verificar que ali terminara o dia sete de abril e que o próximo escrito datava dia oito de agosto. Enfim olhou pra Helena, que bebia o café em outro mundo que não correspondia exatamente ao passado e muito menos ao futuro. Talvez fosse um mini-mundo, desses que ficam em blocos anacrônicos ou camisetas de rock.

O senhor deu uma risada honesta enquanto relia uma frase.

- Engraçado como aqui você escreve: “Carla é algo pra me mostrar...” como se ela fosse uma coisa. – ele ri novamente e olha para Helena, que ri de volta, deixando o dinheiro no balcão.

- Obrigada.

Helena deixa a padaria e dá partida com o carro de volta para aquele lugar planejado tempos atrás, deixando espaços para desvios de percurso. Atrás do espectro vazio do carro, o dono da padaria aparece afoito com o bloco em suas mãos. Ele balança a cabeça e volta para dentro, guardando o bloco dentro do avental. Ele pensou de súbito no dia em que seria uma coisa para onde todos caminhos se voltam. Tinha certeza de que o caminho daquela moça a faria retornar e, para seu espanto sua certeza era a de um profeta. Ele podia ser a ênfase da previsão por enquanto – "não existem limites que não descansassem num regresso.", pensou. E o dia era vinte e nove de maio.

sábado, 1 de maio de 2010

Batidas


Dia 29 de abril, eu não tinha para onde ir. A faculdade me esperava pacientemente e o relógio me marcava os passos com olhos indagadores: "Por que aí? O que quer encontrar nesse buraco? Pra quê se inclinar à esquerda? Não se estique tanto! Venha correndo, mas não pra trás! Onde anda sua razão?", mas ainda estava na estação de metrô comendo um folheado de quatro queijos ao lado de um bloco com uma mulher desenhada. Quem me marcava: a hora, os queijos ou a caneta?

Pequei, peguei o metrô rodeado de dúvidas. Embaraçoso era ouvi-las cantando, impedindo minha concentração nas conversas dos outros. Ainda me prendiam no centro. Centrado no centro do cantarolar, ainda me perdi do lado de fora dos assobios. Chorei com as músicas do Legião. Não, não! Na verdade ontem não existiam músicas, só memórias... Lembranças de músicas que só lembro agora. Nem sei se ao menos... nem sei... ao.

Cheguei na Urca. Chovia, entrei, vi o vazio, saí.

Saí andando da faculdade de quase ninguém por causa horário cedo. Simplesmente andando, fazendo o que os passos pediam. Fui um boneco entre a chuva e a imprecisão quente encubada nas minhas coxas. Insisti ainda no guarda-chuva por um tempo que foi sumindo conforme o vento aumentava. Vi uma praça de bancos molhados, estátuas molhadas, folhas molhadas. Estava numa área do exercito. Uma área do exército molhada. Tudo era agradava minha falta de destino! Tirei meus óculos e fechei o guarda-chuva. Permaneci seguro para as novidades. O mar já ia chegar.

Finalmente a praia vermelha. Era final de tarde escura, por volta de cinco e dez, quando descobri que tinha uma praia na minha frente. Eram certas essas algumas horas, mas o tempo já havia me perdido no meio das botas encharcadas, fazendo cambalear a mente pelo chão. A praia era curta e a segui com os olhos daqui pra lá, até o lá ser perfeito para parar.

Chuva fina,
vento forte e frio,
ondas bravas,
dança do véu no costão
coberto de agulhas em prece.
Uma praça deserta atrás,
um pescador vulto-negro guardando suas coisas
e o som constante de algo batendo.

Batia no fundo do meu ouvido e parecia mais alto que o mar (infinito na névoa). No fundo, parecia o coração de uma árvore... Era o Brasil! Com a praia ainda impressa no corpo, pude ver a bandeira do Brasil bater forte contra o vento. Chorei tristezas estranhas.

sábado, 3 de abril de 2010

O que devemos fazer com o ódio?


Hoje descobri que odeio também. E com a mesma intensidade com que posso amar. O que mais me assusta nisso é a capacidade de borrar minhas palavras quando elas viram corvos de tiro à distância. Queria poder identificar minha astúcia em evitar, mas o que foge das mãos cata ruídos de um passado infeliz; e as questões da dor atordoam toda e qualquer vivência humana. Nossa dor é firme, e ela vem como um sopro a cada ventania que expõe a ferida. Aí eu odeio. E a força desse ódio me incluí no time dos desavisados.

Sei que amo.

Sempre que me sobra tempo para me ver de fora, me percebo olhando para alguém com um carinho especial. O amor é a coisa mais fácil, mais simples. Eu quero dizer que amo. Dizer o amor é a coisa mais difícil, mais complexa e as palavras não são coisas, embora todas as palavras sejam simples. Meus sentimentos de veia boa se revelam naqueles instantes em que percebo alguém além de mim, e numa primeira etapa isso já me é de imensa magnitude, não porque sou tão egoísta a ponto de ignorar meus semelhantes, mas porque alguém além de mim me permite encontrar minha face carimbada mais a frente. Quando a pessoa se aproxima e diz que existe, insisto em dizer que também há de existir em mim o amor. Aquele velho homem que carrega nas costas o peso do saber trabalha numa biblioteca e isso não necessariamente impõe que ele me deve ser simpático. Mas esse mesmo trabalhador é um mundo inteiro fechado em si, e mesmo não concordando no fechamento de um planeta inteiro num ser apenas, o que ele traz no peito é brilhante demais para ganhar minha indiferença. Ele, logo de cara, percebe minhas circunstâncias - sabe que entro na biblioteca com minha amiga, que busca um livro, e que planejo esperá-la do lado de fora - não existe nele a necessidade de inquirir além, ele me entende nas minhas motivações. Logo outro alguém me pergunta sobre o que faço ali, e depois mais outro, e enfim o primeiro torna a questionar, e todos voltam a conversar e me esquecer, já sabendo da minha posição segura em suas mentes. Não aquele senhor. Minha amiga demora a encontrar seu livro, ela vai e volta, digita o nome do procurado, anota as referências, olha as prateleiras de cima abaixo e recomeça tudo outra vez. Nem percebi o que o senhor fazia que não olhar continuamente para o jornal a sua frente, e subitamente ele me pesca com uma pergunta: "que livro sua amiga tá procurando?" - ele me via ali o tempo todo, via minha amiga, via nossa amizade e via minha preocupação. Também me ocorreu que ele notasse seus amigos em suas conversas e as notícias que permeavam o Rio de Janeiro.

Eu lhe disse o nome do livro e ele me respondeu com atenção sobre os problemas da biblioteca. Digitou o nome, anotou umas coisas com a caneta e partiu pra busca que era sua. Somente nesse momento da pergunta-isca eu parei de fato para notá-lo e o que me veio foi uma enxurrada de fotos de um mesmo homem, com suas ideias, suas palavras serenas e firmes, seus olhos por baixo dos óculos que olhavam pensando futuramente, e todos seus objetos materiais e imateriais os quais ele tocava, aproximava da alma e recolocava no lugar. Descobria pouco a pouco o princípio de uma paixão; estava embasbacado. Fiquei grudado nos seus passos: ele foi até o corredor onde estava minha amiga e ao invés de dirigir-lhe a palavra avisando que procurava o mesmo que ela, ele permaneceu em silêncio. Isso me surpreendeu mais que tudo. Quais eram suas razões? Será que queria surpreendê-la com o livro num momento irradiante? Ou podia mesmo estar lá em meu nome e não em nome da minha amiga... Podia sim fazer aquilo por mim; muita vaidade de minha parte, admito. Mas, por que procurá-lo pra mim que nem o queria?

Minha amiga desistira; ele não. Ela voltou com um sorriso amarelo, de mãos vazias, e sem sequer ter notado que o senhor estivera ao seu lado com o mesmo objetivo. De repente me surgiu que talvez o que ele buscava podia ser exatamente pra mim como pensara. Talvez quisesse me trazer a solidariedade que tanto procuro ao meu redor, a educação que meus olhos sugam pelos rostos que me passam diariamente, o carinho puramente natural, que em sua definição primeira me permite visualizar por todo o sempre a vida nas folhas das árvores, nos latidos da minha labradora, nos braços dos meus pais, e enfim, em todas as memórias que um dia foram e são boas mas que trazem consigo a certeza da eventual desaparição. O senhor achou o livro, sorriu com vitória. Ele achou e entregou com prazer, eu aceitei e o amei; amarei para sempre.

Mas hoje não é sobre amor. Sei que quando fugi agora pouco pelas lembranças dos meus amores me senti renovado e mais disposto a enganar meus ódios, porém quero gritá-los. Preciso cometer esse delito porque, por mais criminoso que seja, sua força de ferir será sempre infinitamente menor - agirá como fator de exorcismo. Vi "The Laramie Project", um filme que fala do ódio como fomentador do assassinato e me senti parte da briga. Questionei meus dogmas escondidos e sua força sobre meu julgamento dos outros. Sou alguém que odeia tanto quanto é possível odiar. Odeio como uma criança tola sempre que o orgulho é atingido. Somos todos crianças tolas, atinei, essa é sempre a raiz de todo ódio: o orgulho ferido. Dois garotos mataram porque existia um garoto gay que feriu seu orgulho em ser hétero. Um pai, por mais que clame pela proteção de um filho, é capaz de odiar sempre mais quando seu orgulho enquanto homem provedor de amor incondicional é deturpado. Tudo que nos aparentemente ataca com agressividade, desnuda nossas fraquezas, nos remete às nossas dores passadas, trazendo à tona tudo aquilo que ficou mal resolvido, que é evitado e não discutido. Primeiro passo meu: Dizer que odeio!

Segundo passo: entender porque odeio. Discutir, cair em lágrimas, tocar nas paredes sujas de sangue, orar pela fé necessária, clamar por compreensão e dormir. Acalmar tudo para que o fôlego retomado traga a clareza. Respirar fundo. Rir. Lembrar de todo o amor que me rodeia e me sentir novamente protegido, mas não enganado.

Terceiro passo nosso: ater-nos a toda riqueza de amor que somos capazes de cultivar.

No dia em que descobri o ódio dentro de mim no centro de um ônibus lotado, o vento revo
lvia meus pensamentos quentes. Ele os levava de lá pra cá na manutenção da serenidade. Desci do ônibus e meu pai me esperava. Num sopro final, o ódio foi dissipado. Durou menos que uma hora.

O ódio é a coisa mais fácil, mais simples... e esquecê-lo também é.
Só não se pode esquecer porque se odeia, já que se o fizer nunca irá lembrar de deixá-lo ir.

Cabe aqui, no fim de toda essa divagação, ressaltar que todas essas palavras são ideias cruas de um garoto de 19 anos. Palavras nem tão serenas e firmes como as de um velho bibliotecário, mas que tentam reavivar toda a integridade de um ser humano que faz questão do bem maior inerente a todos nós: o de querer e poder (espero sempre) exercer todas as formas do meu pensamento. E, se me permitirem dizer às suas mentes: devemos todos fazer questão disso!

quarta-feira, 31 de março de 2010

O cão e o rei numa folha sem história























Era uma vez um cão que era rei e um rei que era cão.


Numa disputa de desejos, o cão venceu o rei e carregou na cabeça o que era símbolo de vitória. Um dia bem enterrado, cheio de vícios sujos e virtudes caxias. E, num súbito de tolices, uma face foi revelada: a de baixo.


O rei venceu o cão. Cavou até sair. Sem tumbas de ouro ou massagens esfoliantes reveladoras do carma monárquico, o homem partiu o coração do amigo. O cão latiu em voz alta.


O rei perdeu a fala...


"Faça-se a sua vontade!", e a folha falou em linhas.

01:04


Tic tic tic. Bate uma, bate. Batendo, bate... vai passando o tempo e meu contorno se deforma...

_o que o marcador de texto piscando quer dizer me aterroriza contra a parede. Vi muitos verdes que foram chamuscados de chuva e perderam a essência amarela. Minha vida inteira, hoje, foi paz junto da noite. Conheci um amontoado de acordes loucos tirados numa viola velha por um homem com vontade de fazer o diabo de mim. Tenho me agradado muito facilmente com o que vem dos outros.

Que a paz da madrugada esteja conosco!

E que os dias inteiros estejam presentes nas noites. O gato gaiato assobia lindamente uma canção para a lua  - uma das que ouço sempre numa espera sem desconfianças ou agonias. Essas noites estão tão boas com toda essa alegria contida! Fiu fiu, vem cá! O gato não quer saber de mim. Ele é do escuro, como seus pelos mostram. E ele também é da vida, que já nem lembra mais aquela candura do céu virgem pedinte. Foge! Some de mim!

O que nostradamus disse outrora morre ali, numa esquina de avenidas e pessoas, onde mora a morte que sempre faz visitas solidárias. Ele falava de uma felicidade partida e de um desespero consentido. Vem cá que hoje é dia de festa! Ali está! Uma tenda de papelão, suas palavras mendigas e nossas vidas em vão - uma paz foi aprendida. Não estrague esse momento! É instante de nem sei mais quê... Tudo que precede o pensamento, comprova ideia etérea. Acabou-se.

A noite é do gato. Deixe-o vazio.

terça-feira, 16 de março de 2010

Laranjas


O sol já se baixava no horizonte perdido. Com força alaranjada ele roubava a energia da donzela, e ela só fazia contemplar enquanto cosia na varanda de sua residência. Os pensamentos iam perdendo a cor aos poucos... a irmã de repente nem existia... a noiva era a irmã, que sumira no altar ao longe... os vitrais da igreja estavam partidos... os risos eram tristes... a mãe cantava a velhice nua e pálida... Do altar veio nada e, ao invés de fincar quietude, quis tudo que tinham para dar. Laranja intenso.

A donzela piscou repetidamente buscando compreensão no que a fazia enfiar a agulha no tecido branco. Observou-se por algum instante. Picou o dedo com a agulha e viu uma gota de sangue, a qual, sem pensar duas vezes, levou a boca e sugou. Fora um gesto totalmente inesperado, porém uma angústia cresceu em seu peito, devastando a natureza virgem escondida por ali. Ela chorou por um instante sem lágrimas aparentes.

Largou o bordado, os pensamentos desconexos e permitiu se perder. As lágrimas finalmente desceram em seu rosto, embora já não significassem muita coisa. Ela nem ao menos buscou enxugá-las, por mais que a incomodassem. Ficou paralisada enquanto os fios em laranja ao seu redor iam diminuindo em quantidade. Seu vestido era bonito e bem costurado por suas delicadas mãos macias. Ela, que podia senti-lo belo quando o costurava, nunca o notou belo quando incorporado a sua figura. Esperava subitamente que alguém o amassasse antes do sol se pôr, uma verdadeira pessoa de olhos aptos aos desprazeres da costura detalhista. Queria brincar de roda com as meninas mais novas e sujar de cores o vestido. Girar e girar, e rir depois.

A donzela era velha e pálida.

O sol ria disso e lhe roubava as esperanças. Como se ela soubesse que ainda as tinha.

Os últimos três fios de sol passaram pela vista, zombeteiros. A moça sentiu o sangue pulsar quente nas veias. Seus braços simplesmente não eram mais adornos das vestes, caídos frios, imperceptíveis. Precisavam que agarrasse aqueles fios com toda sua força de mulher. Ela o fez num urro de raiva e eles a levaram na contrapartida da dor.

Correu por toda sua vida. Sendo puxada, viu sua antiga morada, com paredes cor-de-rosa e jardins destruídos pelo inverno e bichos-de-terra que nele brotava. Uma rocha rosada daquelas podia lhe trazer tantas palavras... nada mais que um mero objeto gigantesco que acolhia vida em conjunto. Todas as conversas encenadas ali foram culminações de momentos de aflição. O resto era sempre um passatempo de reclamações repetidas. Custava-lhe admitir que sua infância podia ser resumida como hábito ligeiro. Eram tantas rosas de papel - origami que fazia sozinha - e voavam com os sopros de vento rouco entrando pela janela. Angústia essa de pairar no velho eterno cotidiano.

Logo mais a frente estava o bar onde todos, e aqui recordava todos por alguns tipos mais marcantes de vizinhos, se reuniam escondidos para ouvir o rádio e contemplar sua lataria prateada. Pessoas intranquilas demais, que discutiam fervorosamente havendo qualquer fagulha de oportunidade e suplicavam intimidade forçada. Uma velha dona, por exemplo, fazia bolos para fora enquanto mulher em paz com seu destino. Pedia auxilio sempre negado dos filhos e, pacientemente, tirava as botas do marido com um pedaço gordo de doce na mão para ser servido a seguir. Poucos conseguiam perceber que o que a levava a fazer aquilo castigava-a consumindo qualquer aparição do seu genuíno ser. Ao fim de todo dia, a mulher perdia o contato com a felicidade fingida e esmagava o resto de bolo com as mãos, engolindo migalhas banhadas em vodka, Outra: acontecia pouco, a cada dois meses, mas de vez em quando, ela quebrava pratos e corria pela sala da casa, evidentemente estando segura do sono pesado dos seus satisfeitos. Ela frequentava o bar depois dos surtos, sendo a figura da madrugada. Os fofoqueiros dali só zombavam pelas costas, julgando-a louca. Ela nem sabia, achava que ali era família.

Dentro do bar dançavam outros personagens também inexistentes na luz do dia. Apresentavam-se depois de terem entornado uma dose generosa de pinga e ouvir lamentações próprias em voz alta. Quando não brigavam aos berros com tudo que se movesse na penumbra do alcoolismo, serenavam juntos ao som de uma balada leve. Depois tudo era paixão e aconteciam luxuriosas e engraçadas traições. Ainda bem que tinham aquele lugar. Nesse período adolescente, ainda sem conhecer as virtudes da alta costura, a donzela visitava o local com olhos longes. Aparentemente tudo lhe repugnava, assistindo assim pessoas que se mentiam de dia. Todavia, quando retornava a casa, seu quarto a recebia com risadas irônicas. Ela ria junto até perceber que ria de si. Então chorava e tentava deixar de espiar, curiosa, os frequentadores daquele estabelecimento. Passou a se dedicar a Deus e a costura. Mas ainda olhava de canto de olho.

Existia uma praça bem ao lado do bar. Uma coisa boba toda verde, com flores pequenas que cresciam agarradas a uma forma pré-determinada. O lugar mereceu um suspiro saudoso da donzela, tão incoerente... Tinha gente ali sempre com pouca idade, sem juízo algum que partilhava de desejos curtos e planos confusos. Uma falação desconcertante. Amigas passavam de braços dados e fingiam ser mais velhas para impressionar os rapazes, que por sua vez tocavam seus violões para os companheiros de estudos e fitavam as moças com olhos esnobes, mas com corações palpitantes. Um teatrinho que mal reivindicava platéia.

Somente num único dia aquela praça pareceu ter a existência justificada. A lembrança da donzela era confusa e só contundente em sonhos, mas ela se esforçava para conectar as partes. Havia, no entanto, uma força estranha que destacava o sentimento da memória e reivindicava importância. O certo é o evento ocorrera à noite. Chovia e uma apreensão incômoda crescia no peito como uma trilha de filme de terror. A moça voltava de um recital de ballet em que amigas suas se destacaram como condutoras de jovens aprendizes, uma delas sua irmã mais nova. Uma bela peça despida de verdade. Aquilo foi o ponto crucial para o início da perturbação angustiante. Sem entender a causa de tal bobagem sem sentido, correu dos parentes num rompante de independência apática. Uma garoa leve abriu o cenário. A praça, a luz intensa amarela abraçando os pingos retos, os bancos vazios, molhados – ela se viu em tudo como um guardanapo que se desdobra revelando uma mensagem rascunhada à alguém. O lugar se refez pleno de beleza vazia em si que se apropria da essência alheia a fim de instigar seus despertar. Roubava tudo de todos, cada história, cada sonho, cada encontro, para virar lembrança bonita.

Agora a donzela estava no meio de um grande círculo de descobertas. Sua vista, embaçada com tanta memória. Queria entender porque todos os instantes de grande valia em sua vida foram massacrados pela força do hábito. Sentia-se como uma freira a contra-gosto. Agora que recuperara seus pedaços espalhados pelos cantos do berço, ela podia deixá-lo. Descobrir o que é partir, de repente, se revelou o motivo para ficar. Deixar aquela varanda de tecidos bordados, senão os já tinha concluído, não era mais necessário. Ela não era mais a donzela que se encaixava discretamente nos espaços do tempo vago. Eles começavam a ser seus.

Por fim, o fio último do sol que restava. Toda a reflexão debatida no poente do sol inaugurara visão lúdica. Ali estavam, na sua frente, a senhora e a menina. As duas no chão, curvadas e sujas, com os vestidos levantados e as mangas puxadas. Achavam-se inteiramente entregues ao divertimento e riam a cada jogada errada da outra. Jogavam bolas de gude. Os cabelos, à essa altura, já estavam embaraçados, um cinza, outro preto. O que importava eram as laranjas que rolavam entre elas. Vinham do pomar no horizonte. Nenhuma das duas as notava, somente a mulher que se pôs ali no meio, com seu vestido limpo e sua pele queimando vida. Não tentou pegar as laranjas, elas passaram direto e refizeram o caminho de sua memória resgatada.

A mulher, então, se entregou a paz do constante poente – o que eu lhe deu forças para fazer o que sua mente gritava: do finzinho de sol, ela pegou uma raiva materializada em fio real e caminhou até as duas figuras atrasadas, enforcando-as. Matou na fúria indecente do que se põe. Tudo que podia ser feito foi feito, atentando ao desrespeito às regras da vitória, a mulher de branco se dirigiu à derrota dos vingadores. Desceu a ladeira em direção ao bar. Entrou e pediu uma dose de cachaça. O líquido desceu quente. Virou-se para o dono do bar e pediu que aumentasse o rádio. Ficou ali, somente ali, ouvindo uma balada honesta até que a noite lhe revelasse o caminho a seguir.