Fernanda e Gustavo - parecem nomes de personagens de novela que, apesar de casados, estão sempre envolvidos em traições para no fim ficarem juntos renovando seu amor diante do casamento de outrem, sem se esquecer de deixar, mantendo o núcleo cômico da narrativa, uma brecha para mais traições. Contudo, dessa vez os nomes te enganam, Mari. Se você for do jeito que a vejo, creio que sorrirá com minhas sentenças afirmativas sobre sua identidade. E será um sorriso tão belo, que lembrará Fernanda assim meio de lado, tirando os fios castanhos do rosto para em seguida baixar a cabeça com vergonha do tanto charme. Sabia que os olhos dela também eram estreitos como os seus? Isso tem certa beleza, já que não carateriza uma origem oriental, tampouco ocidental; passariam com altíssimos méritos nos testes de beleza de ambas culturas. Deve estar pensando agora que tenho a mente tão resolvida em soluções simples apenas pelo fato de ter resumido padrões de beleza aos dois grandes eixos culturais do planeta na sua figura e de Fernanda; mas não, Mari, não sou assim. Na verdade, prevejo seus pensamentos como constantes curvas dispostas a me enrolar, guiando ao precipício. Espero que ria dessas minhas colocações loucas, pois também riu Fernanda, ainda mais porque era dela o serviço de leitora dos meus escritos.
Gustavo quase nunca largava aquela sua câmera. Se der uma revirada em alguma gaveta do armário da sua mãe, vai achar a bela Nikon F. Não a tome por qualquer bugiganga, Gustavo foi um dos primeiros a trazer a máquina para o Brasil. De primeiro, costumava sair por aí com ela pendurada no pescoço só para alimentar o orgulho, depois passou a ter um pescoço pendurado numa câmera quando os olhos se tornaram famintos. Era um homem muito engraçado. Por volta dos trinta e tantos anos resolveu ir estudar inglês em Londres - ninguém fazia isso naquela época - mas quando Fernanda decidiu que queria investir num novo guarda-roupas, ele fortaleceu os motivos. Voltaram de lá brigados, como duas crianças brigam hoje num shopping por quantidade de brinquedos. Gustavo tinha uma Nikon F e Fernanda, uma coleção inteira Mary Quant. Fernanda me confidenciava sua vida íntima enquanto escrevia minhas poesias. Quase toda semana, pelo menos por três dias, ela vinha a minha casa passar a tarde. Tomávamos o chá (num costume forçosamente inglês por mim adotado após a viagem) e ficava uma hora até a sua partida. Nos dias em que o tormento conjugal se agravava, ela passava quase toda semana em minha companhia. Como me faziam rir suas histórias atrevidas sobre nossas conhecidas em comum! Promovíamos desfiles de minissaia ao anoitecer na companhia de minhas filhas e comentávamos o corte, redesenhávamos os modelos, e minhas filhas só tinham o trabalho de permaneceram estáticas, de pé – a viuvez, nessas ocasiões, me auxiliava imensamente.
O desentendimento tolo não os impediu, todavia, de cumprir a tradição das festas em promoção à seleção brasileira da copa de 1966. O dia fatídico que trouxe a derrota do Brasil de três a um para a seleção portuguesa, trouxe também a reconciliação do casal. Três meses depois, Fernanda me confidenciou a gravidez do primeiro filho. Uma emoção tamanha que não caberia nessas palavras. Fernanda e Gustavo haviam tentado durante anos e anos trazer ao mundo uma criança para carregar seu sobrenome, mas todos os tempos se foram sem que o desejo fosse concretizado. Pensaram até em um tratamento fora do país, muito comentado na época, mas desistiram assumindo ser a vontade de Deus o impedimento da chegada do herdeiro. Então, no dia em que o Brasil afundava na fossa da derrota para Portugal uma mágica das mais felizes ocorreu no quarto do casal; não preciso entrar aqui em detalhes porque você já deve conhecer o famoso poder da reconciliação. Fernanda estava já na casa dos quarenta, e sua gravidez foi considerada de tamanho risco que sua médica até lhe aconselhou o aborto. Ora, veja só, você que daí me lê. Que diria você, Mari? Outros tempos, não? Fernanda, evidentemente desconsiderou o conselho da médica e consagrou, felizmente, os meses seguintes como os melhores de sua vida de casada.
Nunca a vira tão feliz, e Gustavo então... Lágrimas me chegam aos olhos só de lembrar nossos passeios constantes pela cidade, uma outra cidade, uma outra vida... Tão bela fora essa vida. Gustavo percebera finalmente que mostrar sua máquina fotográfica a todos os amigos em suas festas no casarão (o de Laranjeiras) não surtia efeito algum em sua consciência. Comportava-se tão inquieto pelo salão, de lá para cá, olhando de sobrolho para a esposa; tanto amor contido naqueles tempos de briga. Quando se libertou, descobriu o verdadeiro significado da máquina e começamos a ir sempre ao centro para fazer longos passeios pelas praças. Ele fotografava cada movimento de Fernanda. Ela lhe sorria como Audrey, só que não sorria para câmera, bem sabia, mas para o que havia detrás dela. Era privilegiada por presenciar tanta felicidade. Cada vez que o telefone tocava em minha casa, meu coração palpitava de alegria. Fora um momento de grande inspiração e isso se refletiu profundamente em minha escrita. Publiquei meu primeiro folheto de poesias. A barriga crescia a cada encontro. Sorriam como se tudo fizesse rir: o sorvete que a criança chorava para mãe depois de ver Fernanda se lambuzando, e eram tantos, dia de pistache, dia de amora, desejos, desejos... Haviam os artistas de rua que pareciam mais espectadores do casal; os estudantes que corriam de lá pra cá com bandeiras políticas; os guardas que nada guardavam mas mantinham bela imagem da cidade estampada no uniforme – suspiros acerca de tudo e o charme em direção à câmera.
O filho veio para os braços da mãe em uma tarde de outono. Mas, antes disso, esqueci de dizer que as minhas noites de sábado haviam sido raptadas pela Fernanda da época de glória. Foi a fase dos sucos também, bebia sucos variados por causa da gravidez. E chás também. Ah, como fui feliz dentro de minha casa, no meu círculo de amizade! Dançávamos juntas até o alto da noite. Raras as vezes em que ela não me fazia sentar ao piano para acompanhá-la numa cantaria descontrolada, acalmada apenas por sua sereníssima voz de anjo. Eu queria lhe dizer, ainda ali, no mesmo quadro, que a amava muito e que queria dançar abraçada a ela pela eternidade. Dançaríamos paradas, deixando o entorno correr sozinho. Ficaríamos presas à noite dentro de uma taça de vidro, intocada, esquecida sobre o piano. Porém perdi a oportunidade de me expor, fiquei presa aos meus versos. E a filha (era uma menina, você já sabe) nasceu. Linda como o outono, com os olhos já presos como se a unha delicada de Deus, ao desenhá-los, tivesse feito dois riscos e deixado que a força do tempo os abrisse. Mas o tempo sempre fora paciente com as duas, Fernanda e a filha, e até esse agora não abriu de todo seus estreitos olhos. Ficamos longe desde então. Acompanhei o crescimento de Aline pelos jornais, como qualquer outra desconhecida. Gustavo me ligava de vez em quando, convidando-me para comemorações de aniversário, mas era a falta de Fernanda em sua voz que me preocupava. Decidi que era vida que começava a passar de novo e fiquei agradecida pelos lindos meses de sublime abstração.
Voltei, escrevi, continuei nos poemas, arriscando progressivamente linhas de prosa. Gostava de alguns personagens que me surgiam na mente. Percebi que derramava cada vez mais de mim pelas folhas espalhadas sobre a escrivaninha. Um dia, veio a notícia de que Aline completaria cinco anos. Não houve um toque sequer do telefone; entristeci-me. Estavam tão longe agora... em outros papéis, só em papéis borrados. Acho que foi nesse momento que pisei fundo nos contos. Escrevia um por dia, sobre a vida que eu via correr pelos jornais e pelos dizeres trazidos à voz por Ana, minha ajudante do lar. Os contos cresciam com personagens que mudavam tanto de ideais como minhas filhas. Dei-me às crônicas também. E a transição exata e completa do meu estilo de poetiza para cronista se deu quando recebi em minha casa, pela primeira vez em seis anos, o casal Fernanda e Gustavo. Gustavo soube de meus problemas financeiros (minhas poesias estavam perdidas no esquecimento público) e me propôs um emprego no Jornal do Brasil. Tinha conhecidos por lá que, segundo me assegurou, estariam interessados na minha escrita. Aceitei a proposta em vista da fragilidade em que me encontrava após do impacto das fortes reminiscências trazidas pela visita. Os dois estavam bem na minha frente, alheios ao passado de alegrias que compartilhamos. E eu, confusa e amável, temendo o fim da visita. Fernanda permaneceu calada durante toda a tarde e quando pensei que ia perdê-los uma vez mais, e dessa vez para sempre, ela abriu a boca: “Você não acreditará, mas outro dia estávamos eu e Gustavo olhando Aline brincar. - os mesmos olhos cerrados, flutuando no passado – Sabe como é estranho vê-la assim tão crescida! Acho que nós mães nunca vamos nos acostumar com essas pessoas grandes que chamamos de filhos. - sorriu, tirou o cabelo do rosto e notei que devia ter uns quarenta e cinco anos – Então lembramos da minha gravidez, de nossas adoráveis tardes passeando pela cidade. Nós quatro nunca fomos tão próximos como naquela época. - apertou forte a mão do marido e ele a olhou tirando da imagem da esposa uma foto perfeita. - E agora, veja só, percebemos que Aline nem a conhece de vista... - retruquei afirmando que a visitara nos primeiros dias. - Mas aí não vale! Ela mal tinha os olhos abertos.”
Gustavo falou, completando o pensamento da esposa: “Venha nos visitar de vez em quando, sim?”
Fernanda abriu a bolsa e tirou uma pilha de fotos, passando às minhas mãos.
“Queremos que fique com essas” - folheei. Eram as fotos daquele tempo. - “Temos cópias.”
Pronto. Agora eles podiam se despedir para sempre de mim. Não tomei tal ato por mal, sabia que era o jeito das coisas se reacomodarem de vez. O tempo, às vezes, simplesmente passa, e certas graças são perdidas pelo caminho. Mas logo logo outras são encontradas, te asseguro, Mari! Tome sua mãe por exemplo: a porta que se fechou naquele dia trouxe consigo a abertura de minha sensibilidade para outro caminho. As fotos inspiraram minhas primeiras e mais belas crônicas dominicais. Sei que não nos conhecemos pessoalmente e informo que nunca conheci sua mãe também, mesmo depois daquele dia. Soube que são estimadas ainda pela alta sociedade carioca. Não sei exatamente o que isso representa em importância, mas sei que esse é o único meio que me sobra para conhecê-las: as pequenas informações que coleto pelos jornais, pelas vozes da rua. Formo uma imagem e a fotografo em uma crônica. Acho que é por isso que te escrevo agora. Escrevo a você, cujas feições carregam tanta história, palavras que remetam ao reconhecimento em mim de uma figura amiga para todo o sempre. Peço que permita a continuidade de suas histórias imaginadas estampadas domingo após domingo nas folhas do jornal. Eu que a vejo apenas em fotos, espero, sinceramente, que possa ver nos meus textos seu espírito desenhado em ação eterna. Você é Fernanda e Gustavo. Beijos de sua amiga desconhecida. Eles ficaram após o fim, mas na mesma linha, para que não nos separem nunca, as palavras.
Não se preocupa com o seu futuro pq seu talento te guiará para o lugar certo.
ResponderExcluirParabens mesmo!
o que isso significa?
ResponderExcluirO que quero dizer é que vc não precisa se preocupar com o que fazer da vida.Só continue escrevendo pq as raras pessoas q possuem esse talento q vc tem,o desperdiçam.
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