segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Olhos pequeninos


Quando era pequeno tinha olhos pequenos. Mas ao contrário do que pensavam meus mentores, meus olhos viam apenas as coisas grandes demais. Pouco antes do incêndio, conheci o circo do gigante e vi toda aquela altura sem nem inclinar a cabeça, alinhando todos os detalhes à candidez de meus olhos miúdos. O fogo o levou numa labareda só e conto como foi:

Da janela do meu quarto, ouvi os primeiros gritos e fui acalmado por uma imagem de imponente beleza: o gigante correndo em silêncio. Levava o circo em chamas nas costas - o circo inteiro com todas as pessoas menores dentro! Levava-o tal qual se leva um cão doente ao veterinário. Só com os olhos que tinha pude ver o rosto do homem coberto de lágrimas infinitas. Ainda na mesma janela, acompanhei seus passos pesados, que seriam curtos para os que são pequenos e vagarosos, para aqueles que tem suas pernas separadas da urgência. Ele mergulhou o circo de uma só vez no lago da cidade vizinha. Seria um herói se a água não fosse pouca para o fogo muito. A imagem do gigante inconsolável: lágrimas longas como cascatas de água salgada. Os gritos de dentro da lona eram abafados pela proximidade da morte enquanto ligeiras formas de vidinha saiam nadando pelos buracos, explodindo em fogo a seguir, num estalo inaudível. Dentro do gigante constantes sopros de esperança eram abafados por cada nova morte - via isso pelas brechas que a imensa alma desesperada permitia mostrar aos outros. O ser enfim resolveu abraçar seu lado monstruoso e pude sentir seu urro atordoarem minha respiração calma. Ele se levantou e todas suas ações foram verdadeiramente grandes. A imensidão de sua fé parou as demais formas de desesperança e, mesmo sabendo da sua giganteza toda, não conteve seus gestos. Foi aí que ele virou deus e se jogou em cima do fogo, contendo-o com o próprio corpo. Meu pulmãozinho pareceu de um momento para o outro o de um gigante para poder acomodar todo ar de surpresa que engoli de repente. Seu grito fora tão persistente, tão longe... Ele se levantou - eu vi - e o circo estava apagado e toda a água se foi do lago. As pessoas foram então saindo aos poucos, assustadas, mas vivas. Ninguém que via o fogo flutuar no ar pôde imaginar que era o gigante: grande balão de fogo pairando! Apenas eu podia acolher toda sua dimensão. Pelo pouco tempo da infância.

De lá pra cá, venho crescendo e o som do grito do gigante, que ainda ressoa no fundo do meu peito, vai sumindo a cada novo inspirar. Quando espirro, costumo imaginar que me saem dois ao invés do costumeiro um pedaço espectral do gigante; e nem o “saúde” que é dito por alguém me ajuda a recuperá-lo. Mas hoje já raciocino com minha reduzida visão de olhos grandes que o gigante provavelmente via tudo pequeno demais e não teria me visto como espectador do seu show magnífico. Se creio que sim - que me viu - deixo de pensar nas angústias da vida. O gigante, sua paz e todos seus gestos afobados, que não o impediram o queimar, mas que o levaram a uma espécie de ascendência, tem sua foto imaterial marcada numa cena que até hoje é comentada pelas ruas do meu inconsciente. Fora visto numa noite de pessoas acordadas, um fogo que, ao contrário de se consumir, era de constante combustão e recombustão, voando por um céu de uma só escuridão. No dia imediato ao evento, meus mentores me contaram, num momento de esplêndida revelação, que a imagem era um sinal de que o fim dos tempos reservava um novo começo: “um novo sol caminha em nossa direção”, eles disseram. E eu ali, sentado a mesa com meus olhos ainda pequenos, pude ver suas palavras e seus pensamentos por inteiro. Agora já não tenho muito o que ver com meus olhos grandes, mas trago sempre à tona essas belas imagens quando fico cego pro mundo. Toda manhã, penso que o sol um dia acaba e volta. Escarro menos as velhas lembranças, 
expecto mais as novas ressignificações.

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