sábado, 5 de novembro de 2011

Joana da vibrações psicodélicas


“Joana das vibrações psicodélicas”? Ei, Joana! Venha cá que quero ter uma prosa com a senhorita! Oh, Joana! Minha Joaninha, por que fica saindo por aí sozinha? Não tem medo desses monstros da tevê? Essa mata é alta demais pra você, minha pequena! De mais a mais, não quero você saindo por aí sem minha permissão. É uma ordem agora! Ah menina, você tem horas que parece que é boba. Fica zanzando por aí, sem falar com ninguém, dizendo coisas que o pessoal não entende. Eles ficam de cochicho depois. Esse pessoal daqui não presta! Você é muito bobinha.

Vem cá, por que vai direto pro meio daquela mata suja? Que tem lá pra você fazer que não pode tentar nesse troço que te dei? Quer dizer, que eu e teu pai te compramos. Você não sabe mexer, é isso? Oh! Mas Joana, todo jovem da sua idade sabe usar essas coisas de internet! Se você quer dizer bobagens, faz que nem todo mundo, ora bolas! Seja normal uma vez ou outra! Até seu pai tem esse negócio de iokut, youtubi... Quer que ele te ensine?

Não vai dizer nada?

Vai ficar aí parada sem dizer nada?

Ah não, Joana! Para já de girar! Agora!

Não vai dizer nada?

O mato que é alto não come gente viva, ele adormece nosso espírito com suas vibrações escatológicas de dúvida pacífica e faz nossos pés tremerem de gelo; e quando o orvalho derrete eu tenho um orgasmo atrás do outro, mas não sei se a senhora ou a internet entenderiam o que me faz entrar e sair e fingir que sou doida e tocar palavras que dizem realmente alguma coisa sobre as músicas que existem dentro das pessoas. Por isso, mãe, me perdoe, mas não sei falar normal, não sei o que os outros querem que eu diga sobre o mundo. Não consigo evitar falar, falar, falar, falar, falar, falar e falar em silêncio. Eu vi outro dia um inseto redondinho, com asas vermelhas cheias de pontinhos pretos, e ele voou pra dentro do nariz indo parar bem no dia do meu nascimento – porque nosso cérebro guarda todos nossos anos, sabia? – e ele chegou lá onde fui concebida e sussurrou no seu ouvido: “Ela vai ser Joana!” e você me deu esse nome.

Bubadubadindindecobizaginavinca!

Bu!

Ai, que susto garota! Só pro seu governo, quem escolheu seu nome foi seu pai. Agora senta aí e come direito. E hoje não tem nada de passeio lá fora. Ah, menina! Só você mesmo...

A teoria


Quando era pequeno, disse pra mãe: "Sabe que eu sou neurótico assim por bobeira. Já percebi que as pessoas guardam as coisas por pouco tempo. Por exemplo, se eu faço uma coisa que me envergonha, como sei lá, se eu falo uma besteira indelicada, as pessoas só guardam aquela impressão ruim de mim por no máximo cinco minutos. Já contei. Acho que só há rancor quando é algo muito pesado e, mesmo assim, só com alguém muito íntimo." Na ocasião, ele parou, pensou e continuou: "Então é uma tremenda bobagem nossa ficar ligando pro quê os outros pensam. Ficamos em suas mentes por tão pouco tempo que nem dá pra criar um ninho. Aquela coisa de primeira impressão ruim é a que fica é idiota, até porque acho que nem existem primeiras ou segundas ou, sei lá que numeração de impressões. Impressão só existe uma: a verdadeira! Se não é essa, não é nada e não causa coisa alguma. Simples assim." Ele riu: "Cinco minutos e nada; nenhum registro."


Mais velho uns cinquenta anos, ele continuava neurótico com números e pessoas. O que elas pensavam a seu respeito, sobre o que conversavam quando não estava presente, se o conheciam tão bem quanto diziam - vivia testando amigos para averiguar se realmente sabiam seus gostos e suas lembranças mais dolorosas, e assim decidir continuar ou não a amizade. A maioria dos seus amigos não passava no teste, mas ele fingia que se magoava por um pouquinho de tempo e continuava a papear, amargurado de verdade por dentro. A outra parte dos amigos havia morrido, e também nunca passaram de cinco minutos.


No dia em que disse o que disse para mãe, ela respondeu com risos as seguintes palavras: "Ah, você é estranho. Às vezes tenho certeza que é a reencarnação de algum escritor famoso." e ele perguntou porque, já que sempre analisava tudo, e ela respondeu insatisfatoriamente: "Ah, não sei. É porque você tem essas ideias estranhas que ninguém tem." Ele ficou feliz, mas fingiu que não. Conforme foi vivendo, o velho pequeno cientista da teoria dos cinco minutos, continuou sem perceber que tivera ao seu lado a melhor experiência de amizade. E quando ela - a mãe - morreu, ele continuou sem perceber, pois não guardara impressão alguma a seu respeito. Infelizmente impraticável.

Vocêu


O pé esquerdo era dela e o direito era meu. Os pés não andavam descalços na presença dela, mas também não fugiam do chulé que era meu. Eu dizia: se afaste do direito quando for escolher onde pisar e ela vinha com o dedão a roçar, a roçar. Não queríamos nenhuma homenagem, só o dia de domingo numa king size onde os esquerdos conversassem e dissessem o que é do nosso coração. O outro direito, na periferia da cama, tem alguma impressão que quase sempre é certa, quase sempre é errada. Nos damos bem pelas certas e bem pelas beiradas das erradas. Quando ela diz que me ama de cara amarrada, tenho vontade de pisar com o calcanhar, que é pra machucar sem chorar, mas um pezinho toca o outro e a vergonha marca a volta da razão: percebo que o calo só faria aumentar se não respondesse “eu também te amo”. Longe um do outro, quando fazemos ginástica, nos alongamos ou fazemos piruetas, sentimos o imenso prazer de desviar a atenção por um segundo, e triunfamos nisso – crescemos – e os aplausos vêm de pé. Entendam, por favor e por nós: não somos ginastas ainda! Ela tem mais talento pra ficar sozinha do que eu, mas não consegui ainda... Afastar e difícil.

Domingo de tarde, puxo o edredom e deixo seus pés descobertos. Sem querer, beijo dedo por dedo pra tirar o frio dali, faço cócegas na sola dos 36 e recebo notas de 8 a 10 em risadas. Subindo numa massagem, sinto meu coração se acalmar, e respiro mais e mais a paz que diziam ser vazia nesses dias. Mas ela era cheia de pés! A sete pés de altitude, na cabeça, existiam vinte milhões de dedões espelhados, e pernas que pulavam pra lá e pra cá, e não paravam de brotar e reclamar e pisar duro. As frieiras, brotoejas e calos eram curados logo depois e o espaço de repente era um infinito que dava pra ver por inteiro. Ela e eu, num domingo, deitados numa king size, dormindo e acordando, rindo, nos beijando, vivendo e vivendo de tocar. Toque, toque! Quem abria era o direito acompanhado do esquerdo, às vezes o esquerdo namorando o direito, mas não fazia muita diferença porque eram belos os nossos pés. Juntos.

Inveja


Para irmã, ela queria dizer: "Você é tão linda, mais ainda com esses seus 15 anos!", mas não dizia porque tinha rancor. Eles iam até os seus próprios quinze anos e ela se lembrava que não fora feliz lá. Dormia todas as noites de frente para o espelho e não sabia como ainda não estava morta por ser tão velha como era.  Apenas uma bailarina desgarrada, perdida nos lençóis úmidos de suas lágrimas. E, quando a irmã entrava no quarto sem bater, ela ria de verdade e as lágrimas pareciam de alegria. É que a irmã fazia nascer nela um amor absoluto e uma vontade de se superar e ficar bem. A irmã não tinha rancores e nem apreço por todo show dos quinze anos. Ela tinha.

Só pensava em coisas absurdas. Se não estava de plano com fugas, privava-se de alimentos e fingia ter um drama a mais na vida, como se estivesse dentro de uma caixinha de música. Ela doía, e doía muito, por dentro. Quando no quarto, na intimidade cotidiana do sofrimento, imaginava todas as danças que nunca dançara e os beijos de que escapara. Sempre deitada, era como um véu sobre a irmã: também tivera 15 anos e fora feliz naquela época, apesar de (negar, afirmar, odiar, amar, lamuriar, acostumar, gritar, encostar, alugar, passar, lavar, enxugar, olhar, nadar, se jogar e voltar, reclamar). Nesse antigamente, deixava os outros à vontade para rirem em vez de chorarem e ficava mais tempo de pé. Mas, como agora é agora pouco e não há muitos anos atrás, ela era somente o pedaço fino de pano que cobria tudo o que podia ser. Leve, leve, ela era o sufoco e dormia, dormia, não fazia nada a não ser vislumbrar a beleza do que havia sido, e a irmã.

Na cama, vai chorar ainda muito, mas sem a pressa que outros carregam. Por isso, será para sempre (e o seu para sempre também existe) o que nunca foi. O lenço gigante que a cobre e a constitui, deixará cada vez mais desfocada a pele e dificultada a respiração, como quem habita  e pressente a morte. E dirá para irmã: "Você é tão linda, ainda mais com seus 70 anos!" e com um sorriso imenso: "Eu nunca fui..."