terça-feira, 4 de junho de 2013

Sujeitos abreviados


Ma e Ed estavam sentados na cama fumando. Na TV, a programação estava fora do ar. O silêncio da noite de domingo, o vazio dos corredores da casa e o chiado da tv causavam um mal estar tão profundo que Ed começou a chorar. Ma nem ligou, bufou de tédio e jogou a cabeça na cama. Ed, esticado no chão, já começava um soluço quando seu irmão entrou no quarto. “Vou sair!” O choro cessou, Ed saltou do chão assustado: “Vai aonde?” O irmão deu as costas e seguiu escadas abaixo, sem acender as luzes. “VAI AONDE?”, Ed gritou pro escuro lá de baixo. A chave fez barulho na fechadura. Bam! A porta fechou. “Esse merdinha!” Ma amassou o cigarro no chão e se sentou: “Vamos sair?” Ed sorriu e depois chorou uma manha.

“Ed seu besta, esquece esse seu irmão que nem te dá bola!” Ma era manca e por isso lenta; descia as escadas de degrau em degrau. Ed não ligava, já tinha se acostumado com o ritmo dela. E, quando a esquecia para trás, retrocedia os passos e colocava a mão em sua cintura. “Vamos dançar? Deu vontade!”, ela acendeu a luz da cozinha, onde Ed bebia água numa longa e chateada golada. “Domingo à noite? Querida, em que mundo você vive?”, Ed se jogou no chão, sentando. Ma engatinhou até ele e beijou seu pescoço. “Deixa de ser ranzinza vai...” e lambeu. Ele riu e empurrou seu rosto: “Faz cócegas, não gosto!” Ela ficou de pé e esticou o braço na sua direção: “Vem?”

Ed não conseguia parar de visualizar os cômodos escuros de sua casa. Solitários, vazios, tristes. E pensava em seus pais chegando e acendendo todas as luzes, falando alto, sem calma ou cuidado. Essas vozes altas o incomodavam tanto que ele chacoalhava todo o corpo para voltar a si. “Você trancou a porta?”, Ma perguntou, longe, lá atrás na calçada. Ed correu e abraçou. Beijou sua bochecha e sussurrou: “Claro que tranquei”. Ele morava com seus pais e irmão numa casa de vila alugada. Mudaram recentemente para essa casa de dois andares, bem localizada no centro, perto do metrô, da faculdade e de Ton, antigo namorado de Ma e melhor amigo do irmão de Ed.

Havia um bar a três quarteirões da casa. A rua vazia, com um ou dois taxis passando de tempo em tempo, bem devagar, quase seguindo o casal de amigos. Eles se viravam e mostravam o dedo do meio, como dois adolescentes insolentes. E os motoristas metiam o pé, xingando. Eles não riam, continuavam a caminhada lenta e tediosa. Chovia fininho e parava, de novo e de novo. Noite incerta, nem fria, nem abafada. O asfalto molhado, escorregadio, os becos cheios de sussurros ecoando e postes de luz falhando. Passaram por uma cabine da polícia e uma criança veio vindo com a avó. Não respondia os chamamentos da senhora e andava na frente, com os braços cruzados. Vendo os dois jovens de preto, se assustou e esperou a avó, que também se assustou e pegou forte na mão da pequena e apressou o andar, já de cabeça baixa. O policial olhou pela janelinha da cabine e sorriu pensando serem duas almas penadas as que via deslizar vagarosamente pela rua.

“Ele tá lá dentro, acredita?”, Ma voltou pra mesa e se sentou na frente de Ed. Era um barzinho bacana e grande. Algumas mesinhas na calçada, onde jovens se aglomeravam para fumar e rir. Na parte de dentro, rock alto, luz baixa e algumas poucas mesas junto à parede, onde havia apenas uma menina de cabelos cacheados e embaraçados, com fundas olheiras debaixo dos olhos e piercing de argola no nariz. Bebia itaipava e olhava o celular. Nos fundos, um largo balcão de madeira, com uma decoração cool  com discos de vinil na parede logo atrás e dois bartenders jovens e cansados servindo o pessoal. No meio da pista vazia, um rapaz dançava excentricamente. “Quem?”, Ed perguntou. “Ton!” Os dois pararam junto do balcão e observaram Ton fazendo seu show. A menina de cabelos cacheados os notou e se levantou imediatamente, indo falar com Ton no pé do ouvido. Ele parou e olhou Ed e depois Ma. Sorriu e foi se sentar com a menina. “Ele é tão sexy!”, disse Ed, sem desgrudar os olhos do rapaz. “Se você acha...” Ma revirou os olhos. Ton entornou um copo de cerveja goela abaixo. Pingava de suor. Usava calças jeans tradicionais e camisa de botão listrada aberta até o peito, onde se podia ver um cordão de ouro com uma medalhinha de santo. Tinha os cabelos tão cacheados e bagunçados quanto os da irmã. “O que será que eles tanto cochicham? Aposto que falam de nós!”, Ed roia a cutícula de nervoso. Ma se virou, encarando-o longamente: “você dá tanta pinta quando tá ansioso. Chega a ser patético.” Ed nem sequer ouviu as palavras dela, saiu andando assim que viu Ton tirar um cigarro do bolso e ir para fora do bar.

“Ei!” Ed riu sem graça e sem vontade. “Olá Ed!”, Ton colocou o cigarro na boca e acendeu. Soprou na cara do outro. Ed inspirou, não abanou. “Não sabia que você já tinha voltado. Meu irmão nem me falou nada.” Ton não olhava para o rapaz, encarava com doçura um nada qualquer na sua frente. “É”, ele disse: “Voltei ontem.” Soprou mais fumaça e notou um gato debaixo de um carro. “É estranho isso de você voltar e nem sequer me ligar. Sei lá, você sabe como esses dias têm sido arrastados. Tô sem inspiração pra nada. Não escrevi nem uma linha da mono. Sequer tive uma ideia de por onde ir. Estagnei legal. Nem sei se quero continuar, sabe?” O gato parecia procurar alguma coisa. Não ficava quieto no quentinho do lado da roda. Ton jogou o cigarro no chão e pisou: “Sei como é. Só um instante, Ed.” Foi andando cautelosamente ao encontro do gato. No grupo ali fora ninguém parou de falar, fumar ou rir. Apenas um olhar o seguiu. Era Ed, que estava hipnotizado com o jeito de Ton. Havia uma certa chateação também por não ser ouvido, mas era tão irrelevante que sumiu rápido. Ed não queria ser ouvido, queria ser tocado.

Ma conversava bobagens com a irmã de Ton até esta resolver ir ao banheiro. Sozinha, Ma puxou papo com o bartender para saber quais músicas ele tinha no notebook. Animou-se brevemente ao ver uma pasta de blues. “Isso aqui é pras noites de quarta [...] Cara, hoje é domingo e não vejo a hora de bater na cama [...] às suas ordens sempre, meu amor!” Ma beijou o sujeito e ele colocou Nina Simone pra tocar. And now we are one, let my soul rest in peace…”, Nina começou a cantar. Ma puxou o bartender e jogou os braços no seu pescoço. “In search for you, so that someday I could give birth…” Para lá e para cá, mexendo apenas os quadris, parados no mesmo lugar. O rapaz primeiro achou graça, mas depois acompanhou o ritmo triste da garota, fechando os olhos. “And now we give thanks... “ Ma começou a chorar. “Give thanks for each other…” Sem entender o que acontecia, o rapaz tentou puxar o rosto da garota para olhá-la nos olhos e, quem sabe, acalmá-la. Mas ela resistiu. Murmurou uma raiva, as lágrimas descendo nas bochechas, olhos cerrados. “At peace forever...” Forçou o rosto contra o peito do bartender e lá ficou até cansar o choro e o we de Simone, eterno em “For we are one”, permitir que terminasse aquela tristeza que chegou sem avisar.

“Ton, larga esse bicho, ele deve estar atrás de um rato nessa roda aí.” Ed riu. Tão sincero que se surpreendeu. Ton se virou e levantou do chão, com o gato no colo. “Fala pra ele que ele fica uma graça quando ri, fala!”, disse, segurando a patinha do gato, como se imitasse sua voz. Eles se olharam por um tempo, meio constrangidos. “Bom te ver, Ed! De verdade.” E sorriu. Ed não conseguiu sorrir e apanhou o gato das mãos de Ton, enxotando-o. “Poxa vida Ton, nem uma mensagenzinha de texto? Só pra avisar que tava tudo bem... Sabe que meu irmão não fala direito comigo, né? Eu nem sei se vocês ainda estão se falando... Vocês têm conversado?” O outro fez que sim com a cabeça. “Mesmo assim, né? Como eu ia saber? Me deixou no escuro aqui. Isso não se faz, pô.” Ton tentou puxá-lo pelas mãos, mas ele se desvencilhou. Ma surgiu ao lado de Ed, apoiando a cabeça no seu ombro. “Vamo?” O gato voltou, roçando nas pernas de Ton. Ele se distraiu e ficou em dúvida se olhava o olhar empedernido de Ed ou o carente do gato. Abaixou-se num instante para apanhar o bicho manhoso e perdeu a partida do casal de amigos.

Ed encontrou Ton encostado num muro, próximo à estação de metrô. O gato ainda por perto, miando arrastado. Ma logo atrás, mancando silenciosamente. A chuva fina, os carros velozes. Já era meia-noite, segunda-feira. Ton sorriu e depois se emburrou: “Me deixou sozinho lá, cheio de vontade de você. Não foi legal!” Balançou a cabeça. Ed arregalou os olhos àquela revelação. E pronto, estava feliz! Nesse milésimo de segundo, quando dois homens passavam falando sobre o jogo de futebol e um ônibus deixava alguns passageiros no ponto, estava feliz. E uma mulher de saias batendo nos joelhos desceu as escadas com seu salto fazendo barulho e a bolsa apertada junto ao corpo. Tinha acabado de fugir de um trombadinha e estava com os lábios tensos, rachados de frio. Eles ficaram entreabertos no susto de ver aqueles dois sujeitos juntos ao muro, pertos demais um do outro. Fingiu que não viu e atravessou a rua. Tinha ainda voz de criança por ali – Ed se lembrou das vezes em que, quando criança, voltava de festas de domingo no carro dos seus pais, olhando pelo vidro traseiro o movimento inverso das coisas. Encostou seu corpo no de Ton e o beijou devagar, sem língua, saboreando seus lábios. Ma tirou um cigarro da bolsa. A mulher de saias virou para olhar e sorriu como quem acaba de descobrir um delicioso segredo até então inconfessável. Ouviram-se “viadinhos” e “bichas sem-vergonha”, mas estes logo sumiram na chuva. Ton afastou sua boca da de Ed e disse: “Tanto lugar pra me beijar e vem me beijar logo aqui?”

Os três seguiram até a casa de Ed. Ton de mão dada com Ed, que tinha o braço na cintura de Ma, que, por sua vez, trazia um cigarro entre os dedos. De qualquer distância pareciam um casal de três. Passaram pela cabine de polícia, onde o policial roncava alto com a TV ligada fora do ar. Ed se desvencilhou dos outros dois para abrir o portão de ferro da vila. Haviam duas vozes no longo corredor de casas, uma de homem e outra de mulher. Eles conversavam deitados na cama, no tom mais baixo possível, sem saber que àquela hora todo baixo era alto demais. Falavam da vida, de como se conheceram e de como a noite tinha sido gostosa. Fazia tempo que ele não cozinhava e ela gostou de vê-lo brincando com o filho. Ele disse que adorava seu cheiro e confessou um pensamento sobre a primeira vez em que a viu. Descreveu a cena, lembrou a sogra e a cunhada que a acompanhavam no dia em questão e disse ter se sentido pequeno pra ela. “Até hoje sou menor perto de você, mas isso não é ruim não, me faz rico em espírito.” De repente, um choro. Ela começou a chorar. Ton a imaginou emocionada e visualizou o marido a envolvendo gentilmente com os braços, o peito preenchido por uma sensação maravilhosa de completude. Ma viu finitude, como se as coisas dentro da casa os limitassem. O casal acuado na cama – os dois chorando desconsoladamente por haverem percebido que tudo o que têm e são os cerca e prende no presente. Ed, pensando como Ma, vê um porta-retratos já dentro de casa, onde há uma foto sua com o irmão almoçando, estranhamente sérios e concentrados, e imagina a angústia que essa memória deve carregar por se enxergar porcamente restrita a esse objeto. “Esse casal fica tentando tocar esse sentimento que já passou. Descrevem o que vestiam, guardam o que escreviam, mas não adianta... Não vai adiantar nunca... Já foi.” Ma liga a tv – chia fora do ar. ”Infelizmente já foi.” Ed acende um cigarro e começa a chorar iluminado pela claridade da televisão. Ton o envolve pela cintura e olha seus olhos: “Baby, não chora não! Você foi me buscar e me conseguiu de volta. Então de onde vem esse lamento?”

Logo o irmão de Ed voltou com a namorada e batatas fritas e milkshake do bob’s. E o telefone tocou e seu pai perguntou se queria pizza. “Ma, quer pizza? [...] Ton, de quê você gosta? [...] Pai, a gente não quer nada não, tá? Só vem logo pra casa de uma vez! Acho que já deu por hoje, não? Amanhã você e mamãe trabalham cedo, esqueceu? Que ideia essa de ficar até tarde na rua, eu hein?! Fica bem, Beijo!” Ton colocou a cabeça no colo de Ed, enquanto Ma girava na cadeira junto à escrivaninha. Assim que Ed desligou o telefone, Ma contou nos dedos: “Ed ama seus pais! Ed ama papai! Ed ama mamãe! Ed ama maninho! Ed ama amiguinhos! Ed ama pintinhos! Ed ama todo mundo! Ed só sabe amar e nada mais!” Os três riram sem querer, depois disseram que se amavam e foram dormir sem escovar os dentes. 



(Na foto, link da música "Consummation" cantada pela belíssima Nina Simone)

domingo, 10 de fevereiro de 2013

O impossível das tardes de verão



Numa cabine na lateral do palácio, estávamos conversando quando uma nuvem encobriu o céu. Sabe essas tardes em que o sol vai e volta porque as nuvens estão inquietas? Eis o que acontecia. Minha mãe finalmente tinha conseguido programar essa viagem em família. Meu pai concordou e pediu folga da corporação (ele é policial) e minha irmã levou o namorado. Eu sou o filho do meio, sem regalias e namorada e esqueci meu ipad em casa – o que pro meu desespero se confirmou como a pior coisa dessas férias já que tinha de fato que conversar com meus pais sobre a escola, namoros e outras coisas chatas. O resort ficava em Recife e descobri que adoro o sotaque das recifenses. Tinha uma em especial que fiquei meio perseguindo depois que me falou “bom dia!”; chamei de Lola. Uma negra que brilha no sol, de olhos pretos e trancinhas até a cintura – Lola era dona de uma bunda espetacular, diga-se de passagem. Além de tudo isso, ela tinha uma maneira linda de usar as mãos e sorrir: conversava cada dia com alguém novo e tocava suas mãos e acarinhava seu rosto e sorria sorriso grande pras coisas que as pessoas falavam e abraçava quase todo mundo. Outro dia a vi num papo sério com uma camareira na frente do seu quarto (número 32). Percebi que era sério porque não sorria, mas mesmo assim acariciou o ombro da moça ao perceber que ela entendeu sua reclamação.

Quem me acompanhava nessa perseguição era meu irmãozinho Saulo, de sete anos. Ele é autista, não fala uma palavra e não sabe nadar. Mas me entende como ninguém e adora segurar na minha mão. Minha mãe disse pra cuidar dele durante essas férias porque ela queria curtir um tempo a sós com meu pai. Meu irmão dá muito trabalho pra ela; particularmente acho que ele a odeia. Nesse momento, Saulo tá na praia com minha irmã e o pangaré (apelido carinhoso que criei pro namorado dela). “Gui, vai lá ver seu irmão! Tô preocupada com ele. Sabe como aquela garota é... Mais distraída impossível! Com o Sérgio aqui então... Ai, vai lá Gui! Que que custa?” eu olhei pra minha mãe bem fundo e pensei em como ela era chata e depois olhei pra Lola, que tava bem em frente a nossa cabine, rindo com as amigas. “Ok mãe.”  Abri a porta de vidro e saí. Lola me olhou. Percebi. Mas foi bem rápido; ela logo voltou a atenção pra algo que viam no notebook. Esbarrei num camareiro e seu rádio caiu no chão, apitando e dizendo: “Mar revolto. Mudança de clima. Aconselhar banhistas a deixarem a praia.”

O resort tem uns cem camareiros e cinquenta seguranças. Chamam o prédio central de palácio por causa da sua arquitetura. Tem três andares e nas varandas existem cabines de vidro que levam a alguns quartos. Costumam servir peixe e cerveja no almoço; o que não combina muito com o termo “palácio”. Na frente há uma escadaria que leva a uma extensa área verde decorativa para as centenas de quilômetros de automóveis estacionados. Nosso carro está num segundo estacionamento suspenso e muito bem localizado porque fomos um dos primeiros a chegar, logo no dia três de janeiro.  Eu e o Saulo andamos por isso tudo: descemos e subimos as escadas diversas vezes. Às vezes ficávamos sentados vendo a multidão passar; tanta gente hospedada ali! Muita criança chorando e mulheres de canga molhada as puxando pelos bracinhos. Outras vezes, olhávamos pra dentro dos carros pra ver o que as pessoas tinham esquecido. E subíamos as escadas estreitas para o estacionamento suspenso só pra ficar dentro do carro por um tempo e meu irmão fingir estar dirigindo. Num dia desses vi Lola sair de um chevrolet meriva todo preto, com insufilm bem escuro inclusive; parecia nervosa e saiu rápida escadas abaixo.  Fiquei meia hora tentando ver o que tinha dentro do carro até meu irmão me apontar o vidro traseiro, onde a poeira permitiu se escrever: “12h30”. Parece que tentaram apagar mas não foram bem-sucedidos. Aquilo tirou meu sono por três noites – Lola tinha um caso de verão e não era eu. A decepção piorou meus dias sem ipad.

Peguei o rádio do camareiro e ele agradeceu e foi em direção à praia. Fui logo atrás. Essa nuvem que tapou o sol não era das que se vão rápido. Aqui costuma ventar muito, principalmente à tardinha, mas dessa vez logo vieram os pingos finos de chuva. Perdi o camareiro no meio da multidão tagarela. “Cadê a retardada da minha irmã?” Procurei perto do quiosque do peixonauta, que meu irmão adora, mas não estavam ali. As pessoas começaram a se movimentar lentamente; camareiras fechavam cadeiras – paft! – e guarda-sóis e levantavam a areia, mais que o vento, justo pros meus sensíveis olhos. Subi numa mesinha quando o primeiro trovão ressoou por toda minha espinha. As pessoas se assustaram, algumas gritaram. O ritmo se acelerou. Todas começaram a disputa de quem deixaria a praia mais rápido. Os pingos cresceram e, com o primeiro clarão e segundo trovão, a chuva caiu forte. Fui ficando desesperado e xinguei minha irmã em voz alta. As pessoas corriam e ainda riam, o que me deixou mais irritado. Corria por entre elas, na direção contrária. “Sauro!”, comecei a gritar. “Sauro!” – chamava ele de Sauro ao invés de Saulo porque uma vez imitei um tiranossauro rex e ele, sério, rosnou de volta; daí virou apelido. “SAURO!” De repente meu grito ganhou companhia. Era a voz da minha irmã: “Saulo, Saulo!” Parei pra procurar com os olhos; já estava mais que desesperado e a ansiedade me fazia suar frio. Estranho que mesmo com a chuva estava calor; olhei pro céu e desejei com todas as forças a volta do sol. Quando olhei pro mar, vi o pangaré puxando minha irmã da água e ela gritando o nome do meu irmão e esperneando. Corri até eles.

“O que houve, Luiza? Cadê o Saulo?” Ela me olhou chorando e retomou o fôlego. “Ele tava nadando... a gente ensinou ele a boiar. Ela tava tao feliz, Gui... Você tinha que ver. Aí eu não sei, começou a chover e as pessoas fizeram uma confusão... e as ondas aumentaram. Eu tava com a mãozinha dele na minha, Gui. Te juro...” ela voltou a chorar e gaguejar: “Ela escorregou... Eu não sei o que aconteceu.” Deu uma cotovelada no namorado: “Me larga, Sérgio!” e furou o mar num mergulho, meio que gritando pelo meu irmão. Foi aí que me assustei de verdade: vi as ondas, uma maior que a outra, e Sérgio mergulhando atrás da minha irmã com uma cara de tristeza que nunca pensei que ele fosse capaz de ter. Minha boca tava seca. O vento forte não deixava a chuva cair normalmente. E meu pés gelados, calçados em meias ensopadas: percebi que tava de tênis dentro d’agua.  “Como assim ela colocou o Sauro dentro d’agua? Ela tem bosta na cabeça?” Os raios cortavam o céu. Nenhuma voz falava mais ao meu redor. Percebi a praia vazia de repente. “Como assim ela largou a mão dele?!” Foi o tempo de eu gritar a todo pulmão: “MAS QUE MERDA LUIZA!” e tomar um caldo daqueles. Levantei na areia, cuspi água pelo nariz e voltei a mim. Arranquei os tênis e as meias e parti pra água. Sérgio tinha conseguido tirar minha irmã de lá e ela agora gritava meu nome. Era um caos aquele mar: a cada braçada, voltava três. Mergulhei. Só enxergava uma névoa submarina de areia e alga. Algumas pernas provocavam bolhas e empurravam pra sair dali. Uma pessoa acabou dando um chute na minha costela. “Sauro, me ouve! Cadê você?” Eu tava chorando debaixo d’água, meu nariz ardia e acabei abrindo a boca. “Por favor deus.” - meu último pensamento antes de ser puxado por uma mão. “Me larga, Sérgio!”, disse com raiva. “Eu preciso achar o meu irmão, seu retardado insensível”, eu acho que disse isso, mas tudo que podia ouvir eram grunhidos entre as cuspidelas de água. Ele falou alguma coisa que não entendi e continuou me puxando. Quando conseguiu me deixar na areia, nós dois exaustos, eu arfando, deitado de barriga pra cima. Escutei minha irmã chorando. Virei a cabeça e vi umas pessoas em volta de um corpinho meio sem cor. Uma delas fazia massagem no peito do meu irmão. “Um, dois, três...” Virei pro lado e fechei bem os olhos. “Gui, me ajuda a levar ele! Gui! GUI!”

Quando dei por mim estava correndo em direção a cabine dos meus pais com meu irmão tossindo no colo e uma comitiva formada por minha irmã, o namorado, camareiros e desconhecidos logo atrás. Minha irmã escancarou a porta de vidro. “Cadê eles?”, ela gritou. “Coloca ele na cama que eu vou seca-lo” Ele tava como uma pedra de gelo; olhos semicerrados, tremendo como o quê. “Calma, saurinho...” murmurei no seu ouvido quando o coloquei na cama. “Liga pra eles, Sérgio!”, minha irmã jogou o celular em cima do cara e voltou às ordens. “Saiam todos, por favor! Ele tá bem, obrigado pela ajuda.” E forçou um sorriso. Uma camareira tentou oferecer alguma coisa, mas minha irmã sequer ouviu. A moça gritou. Minha irmã fechou a porta na cara dela. “Gui, fecha as cortinas, por favor!” Só quando me virei percebi a multidão em volta da cabine. Entre eles, ela – Lola. Fui fechando devagar, hipnotizado por seu olhar finalmente no meu. Um olhar assustado demais pra uma estranha. Olhar de quem se envolve intimamente com as coisas. “Adeus Lola!”, fechei as cortinas. Meu irmãozinho na cama, já todo enrolado nas cobertas, me chamava pra perto com seu rosnar dengoso. Me deitei do seu lado (“olha essas roupas molhadas, seu imbecil!”, minha irmã), coloquei a mão na sua testa ainda gelada e dei um beijo leve. Fechei também os olhos e fui parar em outro lugar... bem distante. Lá, Lola e eu corríamos com nossos carros de corrida numa pista cheia de curvas; os dois no mesmo carro. Ela me olhava e sorria. Tinha a impressão que íamos bater. Mas era bom: era uma corrida eterna. E ela passava a marcha e sorria. No fim, não sei se ganhamos ou batemos, porque o sonho acabou e acordei com o chiado da tv sem sinal.

“Luiza, Luiza... Você não tá me ouvindo, Luiza...” A sala escura, meus pais sentados no pé da cama. Meu irmão roncava baixo. Minha irmã estava de pé, parecendo irritada. Sérgio numa cadeira no breu, duro como o que, de cabeça baixa. “Você não podia simplesmente enfiá-lo na água porque te deu vontade. Precisa entender que seu irmão podia ter morrido! Era sua responsabilidade! Sua única responsabilidade!” Minha irmã andava de um lado para o outro. Minha mãe pediu que parasse e que a olhasse, no que ela disse: “Mãe, o que vai adiantar você ficar falando toda essa bobagem? É lógico que eu sei disso! Você não viu como eu fiquei? Eu nunca me senti assim... Minha voz se foi, minha garganta tá seca, tô com uma dor de cabeça...” Minha mãe cortou dizendo que era dor na consciência. “... dor de cabeça fortíssima. Você ainda vem sem a menor compaixão e me pesa ainda mais. Porra, eu fiquei muito mal...” (começou a chorar; minha mãe mandou ela não xingar) “A senhora podia ser mais carinhosa... Me desculpa, tá.” Minha mãe começou um monólogo sobre como na verdade ela é a quem mais sofre e como é impossível estar controlada naquele momento; que ela nem está conseguindo pensar direito, que minha irmã é muito inconsequente, que meu irmão podia estar morto e que ela morreria se isso acontecesse. Luiza só chorava e chorava. E de fato sua voz estava tão baixa que começou a se perder junto com o chiado da tv. “Eu nunca te perdoaria se ele tivesse morrido... Ah, minha filha eu sinto muito, mas não conseguiria olhar na sua cara!” Minha irmã parou de chorar e olhou pra cara da minha mãe bem fundo, como quem tem vontade de socar e disse ainda rouca: “Alguém desliga a merda dessa tv!” As duas ficaram se encarando e emanando muita raiva. O pangaré desligou a tv e meu pai intercedeu entre as duas: “Bom, eu acho que o melhor que a gente pode fazer é ir embora agora.” Meu pai era um sujeito bobão, desses pra quem tá tudo sempre bem, mas era só tipo. Ele tinha um jeito pra resolver situações difíceis que nunca vi em ninguém. E fazia como quem não quer nada. “Já não tem mais graça, né?”, continuou: “Filha, querida” (pegou na mão da minha irmã) “fica um pouco na casa do Serginho nesse fim de férias, pode ser?” Minha irmã danou a chorar de novo nos braços do meu pai, que só dizia “tudo bem... tudo bem...” Minha mãe, só olhando com ciúmes, fazendo pouco caso.  Olhei pro lado e meu irmão tinha acordado e me olhava. Sorri e ele se assustou e começou a gritar. Minha mãe tentou acalmá-lo e foi aí que ele gritou mais alto, repelindo minha mãe. Luiza tentou também, mas nada – ele empurrava quem chegasse perto. Papai pediu pra Sérgio ligar a tv. A luz incidiu na cara de Saulo e ele parou na mesma hora e colocou a fronha da boca, mastigando. Eu ri. E ri de verdade, até chorar. Mamãe recebeu o seu esperado abraço do meu pai e ficou mais calma.

Acordei no dia seguinte e já estava tudo pronto. Os camareiros já tinham levado as malas pesadas pro carro e estava sozinho no quarto. Estavam todos tomando café na cabine, em silêncio. “Bom dia”, eu disse. Sem resposta. Peguei um mamão e uma colher, chamei “Sauro!” e ele veio comigo pra dentro do quarto. Liguei a tv: Discovery kids. “Oba, peixonauta!” falei rindo. Eu amo esse moleque; ainda bem que ele existe. “E se morresse?” “Se meu Sauro morresse... hum... acho que ficaria tudo ruim primeiro, pra ficar bem depois porque, sei lá, ele ia poder se livrar dessa carcaça que não serve e ser quem realmente é. Sei lá...” Dei dois soquinhos na cabeça dele. Nem me deu atenção, queria meu mamão.

“Vamos?” Meu pai colocou uma mochila nas costas. “Sua irmã já foi com Sérgio, mas esqueceu a bolsa. Toma!” Peguei a bolsa e coloquei no ombro. Minha mãe mal me olhava. Estava alheia a tudo. Pegou meu irmão no colo e partiu na frente. Saí e meu pai fechou a porta. De repente senti um frio na espinha. Lembrei da praia e tive uma visão de estar no fundo do mar, com o peito roçando na areia, olhando desesperadamente tudo ao meu redor. Lá na frente, numa serenidade incrível, meu irmão deitado, flutuando. Estava tão bem. E eu tão mal. Meu ouvido apitou. “Droga, tô com o ouvido entupido.” Meu pai não me ouviu, parecia apressado também. Estava achando tudo muito estranho. Não parecia uma pressa normal. Era como se estivéssemos fugindo.  Não conseguia acompanhá-lo. “Espera po!”, ele me olhou e depois olhou assustado pra trás de mim. Me virei e vi um segurança nos estranhando. Ele ligava o rádio e começava a falar alguma coisa. Meu pai me bateu pra voltar a andar. Mas a surpresa me pausou: atrás do segurança, Lola, com uma expressão tão confusa quanto a dele. Ela sorriu pra mim e acenou. Congelei. “O que fazer?” Meu pai me gritava, o segurança se aproximava e Lola o acompanhava. “Garoto, vocês já fizeram o check out?” Não entendi, só conseguia olhar pra Lola e seu rosto a centímetros do meu. “Ei garoto?!” Ele começou a estalar os dedos na minha cara. “Como? Sim sim...” Ele colocou a mão no meu ombro, mas Lola a tirou com um tapa. Ele a olhou franzindo as sobrancelhas. “Vem comigo!” Lola pegou na minha mão e saímos correndo. Eu estava tão feliz que nem me dei conta do que estava fazendo ou pra onde estávamos indo. Quando dei por mim, estávamos em frente às escadas pro estacionamento suspenso. Lola me disse: “Vai!” Não entendi. O que estava acontecendo? Meu celular vibrava no bolso. “Vai logo, Guilherme!” Como assim? “Você sabe o meu nome?” Ela sorriu e me deu um selinho. “Claro que sei, mas não conte a sua mãe, ok?” Ela só fazia sorrir pra mim. “Mas que porra é essa?” Lola se virou e foi embora. A bolsa da minha irmã não estava mais no meu ombro. Pessoas passavam por mim e me esbarravam. Lola foi sumindo na distância. “O que estava acontecendo com a minha cabeça?” Olhei pro chão e avistei a bolsa aberta com as coisas jogadas no chão. Tornei a olhar e vi Lola me olhando estranho. “Tá tudo bem?”, ela perguntou. E me ajudou a catar as coisas e fechar a bolsa. Estávamos sendo observados por uma segurança próxima. “Tá tudo bem com você? Saiu correndo do nada.” Ela acariciou meu ombro. “Aquele garotinho de ontem era seu irmão?” Daí, ela começou a falar um monte de coisas que não consegui assimilar de uma vez, mas que foram ecoando e doendo na minha alma. “Eu sinto muito. Meu nome é Lola, trabalho aqui. Gostaria de informá-los que faremos o possível para ressarci-los pelo que houve. Gostaria de dizer em nome de todos que foi lamentável e que sua dor não tem comparação. Sei que seus pais estão passando por um momento de confusão e resolvemos não prestar queixas sobre o acontecido. Já falamos com a camareira e ela concordou em não prestar queixas. Tem algo que podemos fazer por você e pela sua família. A empresa concordou em arcar com toda a despesa que tiveram aqui no resort e nossa equipe de psicólogos concordou em atendê-los caso desejem ficar até o fim da reserva. Mas realmente precisamos, se forem sair, que façam o check-out.”

"Deixem meu filho em paz!”, me pai estava do meu lado e me levantou. Lola lhe entregou a bolsa. “Desculpe, essa carteira é minha.” Nas minhas mão uma carteira roxa da dior. “Hã?” Ela repetiu a frase e lhe entreguei a carteira. Havia bastante gente ao nosso redor. “Vem, Guilherme, vamos embora!” Meu pai pegou na minha mão e me levou escada acima. Lola tentou falar com ele, repetindo as mesmas coisas que me falou, mas ele a repeliu com gestos e negativas. Me colocou no carro e bateu a porta. O som fez doer minha cabeça. Do meu lado ninguém. “Mãe, cadê meu irmão?” Ela não respondeu. Estava dormindo. Ou desmaiada. “Droga, meu irmão realmente tinha morrido.” Meu pai entrou no carro e ligou. Estava sério, me olhou pelo retrovisor e não sorriu. “Droga, Lola nunca me beijou.” Meus olhos encheram d’água. Afundei.