sábado, 24 de dezembro de 2011

Feliz natal do hospital

Era dia 23 de dezembro e ele estava deitado no sofá lendo uns livros. Na verdade, usava essa desculpa de ler pra se sentir útil ou pra não se sentir tentado à inutilidade – o que parecesse mais convincente. Ele pegava Machado achava chato, trocava por Drummond, lia dois poemas, sentia-se bem, sentia-se insuportável. Clarisse tinha duas vezes pelo chão, páginas abertas, pedaços rasgados e molhados. Pegava finalmente Pessoa e se acalmava. Um outro ano passou... Por que o deixaram só em casa, pensava repetidamente. “Por que me deixam só esse tanto de tempo?”

Mais um ataque e ele destruiu Álvaro de Campos. “Um supremíssimo cansaço, íssimo, íssimo, íssimo, cansaço…” Pôs os pés pro alto, ficou com a cabeça cheia. Tinha umas tristezas e lá suas águas muito salgadas, cheias de medo e angústias inexplicáveis. Sozinho em casa numa tarde longe de alegrias. John Lennon tocava no radinho na cozinha. Era um desses especiais de fim de ano. Ele ia adormecendo e vinha pelo ar a fatal war is over... Um raríssimo “John and Yoko wish you a merry christmas!”... a cabeça ia ficando pesada... Ele, os anjos ou um invasor alienígena o tocou, reposicionando sua cabeça no braço do sofá, esticando suas pernas e beijando sua testa suada. Era calor, ele roncou.

Dormindo, acordando, gritando, chorando, vislumbrou John Lennon entrando pela janela. Ele subira na mangueira do quintal e com uma manga em punho entrou pela janela dizendo: “Oh Yoko!” e oferecia a fruta mordida e sorria. Seus dentes com fiapos. A guerra acabara! A guerra acabara? Alguém atirou. Um grito e de repente o peito de John sangrava e do buraco a bala pulava e saiam fiapos e cascas e caroços. O garoto acordou assustado e fechou a janela. O especial tinha acabado e agora só orações. Ficou cinculando descalço pela cozinha, bebendo água, bebendo alcóol. Transitara rapidamente da cerveja pra garrafa fechada de conhaque. Tinha um cheiro forte, forte demais pra gostar, mas fechava o nariz e mandava goela abaixo. Colocou uma música e girou pela sala com a garrafa na mão, rindo eufórico. Mandou a garrafa na parede e foi ao chão rindo mais alto. Do chão viu o teto que viu o céu que viu o universo que viu de volta sua dor e mostrou pra todo o infinito que quisesse ver. Que dor é essa, menino? Quantos anos tinha que nem sabia? Havia passado dos catorze? Não sabia se queria ou podia. Que dor é essa, rapaz? – o universo insistia em perguntar e ele ria na cara dele, chupando o sangue dos caroços.

“Puta merda! Onde minha mãe esconde essa merda? Onde ela escondeu essa merda?! Que inferno!”, ele agora revirava o quarto da mãe à porcura de seus antidepressivos. Na sala, os animais: o gato lambia o alcóol do chão e as formigas se entupiam do sangue doce do rapaz. Pingos o rastreavam até o quarto. O braço pingava sobre a cama e ele tirou o forro do travesseiro do pai e enrolou no pulso. Gavetas abertas, cartas pelo chão, segredos desvendados, cartas de sexo de ex-namoradas e atuais amantes, luzes de velas queimando no silêncio, ultra do câncer no estômago, atestado de óbito do caçula que morrera há quatro anos, os sonos de mentira, os sonos de verdade, o cartão da psicologa, da psiquiatra, do personal trainer e do cabelereiro, o vidro de perfume da avó que passou pra mãe e que espirrou sem querer quando quebrou no chão. Grito! “Ah, como é bom!” E ele passava o braço, umidencendo o pano com sangue no perfume. Assim se sentindo limpo e livre. Riu uma vez mais e desmaiou por sete segundos, indo parar num mundo paralelo entre demônios e um báu com anjos ventríloquos. Arregalou os olhos e lembrou. Correu, escorregou, bateu a cabeça na parede, riu, chorou um pouco de infelicidade e felicidade, chutou a parede, urrou de dor, chorou desconsolado, se abraçou e o gato veio roçar, tonto, na sua perna. A campainha tocou e era a velha vizinha. Ele ignorou e já na sala, com o vidro na mão “isso deve dar...”; aumentou a música, colocou uns comprimidos na boca e tomou com uma golada de cerveja.

Cerimoniosamente, repetiu três vezes, dançou e desmaiou achando que tinha morrido.

Acordou numa maca no meio do corredor. Hospital lotado. Um estranho numa maca na sua frente fedia à cachaça e estava sujo como o quê; provavelmente um mendigo perdido que pela emoção do natal deixou que suas pernas buscassem ajuda. Não havia ninguém para levar um café pro coitado do mendigo, mas havia a mãe do garoto, com olhos inchados de chorar, trazendo o seu. “Meu filho...”, ela enfiou o cabeça do rapaz no seu peito e chorou. “Deixa ele, vai machucá-lo!” – o pai falou, com as mãos no bolso, uma delas segurando o celular desligado (mais de sete mensagens não lidas, duas da operadora). Ele parou ao lado do garoto. Este olhou os botões de sua camisa e pela primeira vez quis chorar. “Por que isso, meu filho?” – o pai perguntou, o filho segurou o choro. Na verdade, não precisou segurar, ele apenas secou instantaneamente. Ficaram os três em silêncio. O mendigo coçou a cabeça e sairam uns pontos pretos que andaram por seu ombro e se dissiparam no vento.

O médico trouxe a boa nova: um contato de um hospital psiquiátrico com uma comunidade terapêutica para dependentes de álcool e outras drogas. Os pais discutiram ali perto mesmo. O médico voltou, as enfermeiras limparam mais uma vez a ferida no pulso do rapaz, fazendo-a arder; ele cerrou os dentes. Fecharam as ataduras e os pais se decidiram. O pai apertou a mão do médico: “Obrigado por tudo doutor! Feliz natal...” A mãe, na impossibilidade de abraçar o filho (que tinha ataduras também no pescoço e cabeça, além do pulso esquerdo e pernas) e necessitando urgentemente abraçar alguém, se agarrou no médico e ficou perdida por lá um tempo. Retornou e se refez, olhando o marido. “Obrigada de coração! Mesmo, mesmo! Abraço e feliz natal pro senhor e toda sua família!”. O médico se virou para o menino, que não olhava pra nada, e pôs a mão em seu ombro. O Rapaz sentiu uma eletricidade lhe tomar o cérebro e numa quase convulsão, teve uma visão: ele e o mendigo dançando macarena para uma grande platéia em um teatro na Holanda. Seus pais olhando de um lado da coxia, mulheres de bíquini do outro lado. O mar de gente em suas macas aplaudindo energicamente – o rapaz sorriu discretamente e olhou os olhos negros do outro.

Noite de 24 de dezembro do ano seguinte, no refeitório do hospital psiquiátrico, uma pequena ceia organizada pelos médicos, psicólogos e enfermeiros, que levaram suas famílias. Os outros pacientes sentando nas mesas, a maioria sem a companhia dos consanguíneos. Os filhos corriam pra lá e pra cá, explorando o mundo complexo de paredes azuis e uniformes claros de olhos arregalados. Seu Bumba contava histórias que via pela janela, sobre a neve que caia no norte. Algumas crianças o achavam interessante, mas olhavam à certa distância, agarradas a seus pais, que riam. Os pais do rapaz estavam sentados com ele numa mesa. Comiam peru com farofa e salada. Não tinha azeite, só sal. Não tinha vinho, só suco de caixa. Havia um rádio tocando músicas de natal em inglês. Em determinado momento, o menino reconheceu a voz de Elvis cantando “Blue Christmas”. Não se sabe se foi nesse momento, mas sua mãe pegou na mão de seu pai e conseguiu cochilar em seu ombro. Ainda desconhecendo a sincronicidade real das coisas, Seu Bumba abriu a janela e choveu isopor pelo salão; as crianças riram e começaram a pular com a língua pra fora.

O rapaz se levantou e caminhou para o banheiro. Abriu a torneira e tirou do bolso a carteira que pegou escondido da bolsa da mãe. Uma foto do irmão segurando uma gargalhada com os cabelos embaraçados e a cara amassada. Colocou sobre a pia e esboçou um sorriso que só o espelho viu. Um grito veio de longe. Seu Bumba se jogou da janela. Um murmuro prolongado. Alguém tinha prisão de ventre em uma das cabines do banheiro. O rapaz ficou um tempo olhando para outra foto na carteira (uma sua aos sete ou nove anos de idade). A porta da cabine abriu e Elvis saiu com a braguilha aberta. Fechou e pôs as mãos debaixo da torneira aberta. “Bons tempos, né rapaz?” O menino desviou o olhar e viu seu reflexo no espelho ao lado de Elvis. Sorriu e acenou com a cabeça. O cantor pegou a foto sobre a pia e saiu. Passou um tempo, o relógio novo no pulso do rapaz fez pi-pi marcando meia-noite e ele saiu do banheiro, imaginando abraçar os pais. Com urgência, com afeto.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Carnaval preso


Um ponto de pontes,
De esquartejos a nenhum lugar.
Um perdido de fontes
Sem guia que do mar se vá.
Eu penso,
Mesmo que o fundo infinito
Reafirme a incerteza profunda do céu.


E sei que as criaturas morrem.
Sei que o infinito apenas encharca meu inteiro.
Mesmo assim, na profunda incerteza do mar,
Vislumbro os habitantes do céu esternizarem
Seus gritos, seus gritos mergulhados pelo ar.


E eu silencio e afundo.
Mesmo sabendo o que não sei.
Silencio e afundo
Porque ainda me sinto todo presente.

sábado, 5 de novembro de 2011

Joana da vibrações psicodélicas


“Joana das vibrações psicodélicas”? Ei, Joana! Venha cá que quero ter uma prosa com a senhorita! Oh, Joana! Minha Joaninha, por que fica saindo por aí sozinha? Não tem medo desses monstros da tevê? Essa mata é alta demais pra você, minha pequena! De mais a mais, não quero você saindo por aí sem minha permissão. É uma ordem agora! Ah menina, você tem horas que parece que é boba. Fica zanzando por aí, sem falar com ninguém, dizendo coisas que o pessoal não entende. Eles ficam de cochicho depois. Esse pessoal daqui não presta! Você é muito bobinha.

Vem cá, por que vai direto pro meio daquela mata suja? Que tem lá pra você fazer que não pode tentar nesse troço que te dei? Quer dizer, que eu e teu pai te compramos. Você não sabe mexer, é isso? Oh! Mas Joana, todo jovem da sua idade sabe usar essas coisas de internet! Se você quer dizer bobagens, faz que nem todo mundo, ora bolas! Seja normal uma vez ou outra! Até seu pai tem esse negócio de iokut, youtubi... Quer que ele te ensine?

Não vai dizer nada?

Vai ficar aí parada sem dizer nada?

Ah não, Joana! Para já de girar! Agora!

Não vai dizer nada?

O mato que é alto não come gente viva, ele adormece nosso espírito com suas vibrações escatológicas de dúvida pacífica e faz nossos pés tremerem de gelo; e quando o orvalho derrete eu tenho um orgasmo atrás do outro, mas não sei se a senhora ou a internet entenderiam o que me faz entrar e sair e fingir que sou doida e tocar palavras que dizem realmente alguma coisa sobre as músicas que existem dentro das pessoas. Por isso, mãe, me perdoe, mas não sei falar normal, não sei o que os outros querem que eu diga sobre o mundo. Não consigo evitar falar, falar, falar, falar, falar, falar e falar em silêncio. Eu vi outro dia um inseto redondinho, com asas vermelhas cheias de pontinhos pretos, e ele voou pra dentro do nariz indo parar bem no dia do meu nascimento – porque nosso cérebro guarda todos nossos anos, sabia? – e ele chegou lá onde fui concebida e sussurrou no seu ouvido: “Ela vai ser Joana!” e você me deu esse nome.

Bubadubadindindecobizaginavinca!

Bu!

Ai, que susto garota! Só pro seu governo, quem escolheu seu nome foi seu pai. Agora senta aí e come direito. E hoje não tem nada de passeio lá fora. Ah, menina! Só você mesmo...

A teoria


Quando era pequeno, disse pra mãe: "Sabe que eu sou neurótico assim por bobeira. Já percebi que as pessoas guardam as coisas por pouco tempo. Por exemplo, se eu faço uma coisa que me envergonha, como sei lá, se eu falo uma besteira indelicada, as pessoas só guardam aquela impressão ruim de mim por no máximo cinco minutos. Já contei. Acho que só há rancor quando é algo muito pesado e, mesmo assim, só com alguém muito íntimo." Na ocasião, ele parou, pensou e continuou: "Então é uma tremenda bobagem nossa ficar ligando pro quê os outros pensam. Ficamos em suas mentes por tão pouco tempo que nem dá pra criar um ninho. Aquela coisa de primeira impressão ruim é a que fica é idiota, até porque acho que nem existem primeiras ou segundas ou, sei lá que numeração de impressões. Impressão só existe uma: a verdadeira! Se não é essa, não é nada e não causa coisa alguma. Simples assim." Ele riu: "Cinco minutos e nada; nenhum registro."


Mais velho uns cinquenta anos, ele continuava neurótico com números e pessoas. O que elas pensavam a seu respeito, sobre o que conversavam quando não estava presente, se o conheciam tão bem quanto diziam - vivia testando amigos para averiguar se realmente sabiam seus gostos e suas lembranças mais dolorosas, e assim decidir continuar ou não a amizade. A maioria dos seus amigos não passava no teste, mas ele fingia que se magoava por um pouquinho de tempo e continuava a papear, amargurado de verdade por dentro. A outra parte dos amigos havia morrido, e também nunca passaram de cinco minutos.


No dia em que disse o que disse para mãe, ela respondeu com risos as seguintes palavras: "Ah, você é estranho. Às vezes tenho certeza que é a reencarnação de algum escritor famoso." e ele perguntou porque, já que sempre analisava tudo, e ela respondeu insatisfatoriamente: "Ah, não sei. É porque você tem essas ideias estranhas que ninguém tem." Ele ficou feliz, mas fingiu que não. Conforme foi vivendo, o velho pequeno cientista da teoria dos cinco minutos, continuou sem perceber que tivera ao seu lado a melhor experiência de amizade. E quando ela - a mãe - morreu, ele continuou sem perceber, pois não guardara impressão alguma a seu respeito. Infelizmente impraticável.

Vocêu


O pé esquerdo era dela e o direito era meu. Os pés não andavam descalços na presença dela, mas também não fugiam do chulé que era meu. Eu dizia: se afaste do direito quando for escolher onde pisar e ela vinha com o dedão a roçar, a roçar. Não queríamos nenhuma homenagem, só o dia de domingo numa king size onde os esquerdos conversassem e dissessem o que é do nosso coração. O outro direito, na periferia da cama, tem alguma impressão que quase sempre é certa, quase sempre é errada. Nos damos bem pelas certas e bem pelas beiradas das erradas. Quando ela diz que me ama de cara amarrada, tenho vontade de pisar com o calcanhar, que é pra machucar sem chorar, mas um pezinho toca o outro e a vergonha marca a volta da razão: percebo que o calo só faria aumentar se não respondesse “eu também te amo”. Longe um do outro, quando fazemos ginástica, nos alongamos ou fazemos piruetas, sentimos o imenso prazer de desviar a atenção por um segundo, e triunfamos nisso – crescemos – e os aplausos vêm de pé. Entendam, por favor e por nós: não somos ginastas ainda! Ela tem mais talento pra ficar sozinha do que eu, mas não consegui ainda... Afastar e difícil.

Domingo de tarde, puxo o edredom e deixo seus pés descobertos. Sem querer, beijo dedo por dedo pra tirar o frio dali, faço cócegas na sola dos 36 e recebo notas de 8 a 10 em risadas. Subindo numa massagem, sinto meu coração se acalmar, e respiro mais e mais a paz que diziam ser vazia nesses dias. Mas ela era cheia de pés! A sete pés de altitude, na cabeça, existiam vinte milhões de dedões espelhados, e pernas que pulavam pra lá e pra cá, e não paravam de brotar e reclamar e pisar duro. As frieiras, brotoejas e calos eram curados logo depois e o espaço de repente era um infinito que dava pra ver por inteiro. Ela e eu, num domingo, deitados numa king size, dormindo e acordando, rindo, nos beijando, vivendo e vivendo de tocar. Toque, toque! Quem abria era o direito acompanhado do esquerdo, às vezes o esquerdo namorando o direito, mas não fazia muita diferença porque eram belos os nossos pés. Juntos.

Inveja


Para irmã, ela queria dizer: "Você é tão linda, mais ainda com esses seus 15 anos!", mas não dizia porque tinha rancor. Eles iam até os seus próprios quinze anos e ela se lembrava que não fora feliz lá. Dormia todas as noites de frente para o espelho e não sabia como ainda não estava morta por ser tão velha como era.  Apenas uma bailarina desgarrada, perdida nos lençóis úmidos de suas lágrimas. E, quando a irmã entrava no quarto sem bater, ela ria de verdade e as lágrimas pareciam de alegria. É que a irmã fazia nascer nela um amor absoluto e uma vontade de se superar e ficar bem. A irmã não tinha rancores e nem apreço por todo show dos quinze anos. Ela tinha.

Só pensava em coisas absurdas. Se não estava de plano com fugas, privava-se de alimentos e fingia ter um drama a mais na vida, como se estivesse dentro de uma caixinha de música. Ela doía, e doía muito, por dentro. Quando no quarto, na intimidade cotidiana do sofrimento, imaginava todas as danças que nunca dançara e os beijos de que escapara. Sempre deitada, era como um véu sobre a irmã: também tivera 15 anos e fora feliz naquela época, apesar de (negar, afirmar, odiar, amar, lamuriar, acostumar, gritar, encostar, alugar, passar, lavar, enxugar, olhar, nadar, se jogar e voltar, reclamar). Nesse antigamente, deixava os outros à vontade para rirem em vez de chorarem e ficava mais tempo de pé. Mas, como agora é agora pouco e não há muitos anos atrás, ela era somente o pedaço fino de pano que cobria tudo o que podia ser. Leve, leve, ela era o sufoco e dormia, dormia, não fazia nada a não ser vislumbrar a beleza do que havia sido, e a irmã.

Na cama, vai chorar ainda muito, mas sem a pressa que outros carregam. Por isso, será para sempre (e o seu para sempre também existe) o que nunca foi. O lenço gigante que a cobre e a constitui, deixará cada vez mais desfocada a pele e dificultada a respiração, como quem habita  e pressente a morte. E dirá para irmã: "Você é tão linda, ainda mais com seus 70 anos!" e com um sorriso imenso: "Eu nunca fui..."

sábado, 8 de outubro de 2011

Sobre bruxas e algo que foge


No escuro, a única coisa segura era seu coração. Ele não batia conforme ela dançava. Era um estado de consciência além do que conheciam as outras ao seu redor. Todos paravam para deixá-la sozinha na pista. Até a música não era mais independente; nada mais que mera escrava de seus movimentos. Ela era o nada de dentro com toda força possível, como que uma mosca contra toda violência dos mares sempre lutando consigo de olhos fechados. “Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu...” era o ritmo de lá. E os braços se erguiam além do peso da carne, revelando as vibrações magnéticas saídas da alma para guia-los como marionetes. Os pés já pertenciam ao reino dos céus e as mãos iam sem reverência alguma até o bico do seio excitado, tocando de leve o tecido, que grudava na pele suada. E ela sondava os machos com as coxas no alto e o vestido inconvenientemente não vulgar: uma hippie guerreando com a prostituta; ela única era dúbia, era pura, puta, era duas.

Antes de sair de casa naquela noite, dormiu o sonho mais estranho que tivera: estava descalça na mata quente e dava saltos altíssimos para não queimar a sola dos pés. A cada salto, via mais de perto aquele ser estranho, curvado, barulhento, comendo algo. Tinha ares de roedor, mas era mulher velha e esmigalhava algo com os dentes. Saltando mais e mais perto, ela via suas mãos juntas levando à boca uma boneca de gente e estilhaçando seus ossos. Esta parecia com vida, mas não gritava. Parecia que já tivera vida em algum tempo e, embora, os olhos estivessem abertos, ela não estava ali sendo devorada. No fim, a velha olhou com olhos de ódio profundo e berrou algo em outra língua. Nesse instante ela acordou e seguiu sua rotina inalterada. Ao sair notou o tempo que mudava. As folhas faziam arruaça no vento, e o céu se partia em mil, cortado por raios, numa umidade retida debaixo do nariz que causava arrepios. Pegou o casaco e entrou no táxi: “Para on11 na Francisco Otaviano, por favor!” Estava estressada e só queria dançar. “Caramba menina, parece que te vi ainda outro dia no Jornal Nacional! Você tem que ser parente daquela pequena que denunciou lá aquele troço de comunidade sei lá o quê hippie...” o motorista se virou para olhar melhor, mas não conseguiu distinguir bem no breu do banco de trás e se contentou em soltar uma risada de incredulidade. Quando ele partiu com o carro, ela se sentiu à vontade pra falar: “Era a comunidade do Prospectus Ninth Dimension, com sede oficial no Alabama e não, não sou ela.” Ele prestou atenção redobrada na voz, mas algo pareceu confundi-lo e passou a nem ter certeza se era realmente importante aquilo tudo: sua vida, o táxi, receber ou não o dinheiro da passageira, afinal a vida era tão estranha e rotacional, o mundo era redondo e ele podia cair a qualquer instante e estaria pronto para isso... se liberar, se jogar... “Hã? Como são as coisas, né?” Num suspiro voltou a si com segurança.

No inferninho barato a não sei quantas quadras da on11, a luz do banheiro masculino piscava a cada três minutos e o tempo só fazia diminuir a cada piscada. Se ficava mais forte, dava que ia parar e voltava à vida, mas depois piscava num tempo diminuído de intervalo. Dentro do segundo compartimento, com as mãos fixas nas divisórias, ela gemia de prazer. O careca entre suas pernas perguntara ainda na boate se ela estaria afim da melhor chupada de sua vida. Ela respondeu que não, que tinha namorado, mas ele ofereceu uma balinha, duas balinhas, e ela engoliu e rumou ao êxtase. Com a cabeça encostada na parede pichada, logo abaixo de “gozei aqui”, ela gritou uma sensação que subia ao mesmo tempo que a vontade de botar pra fora todo seu tédio e tola de vergonha, se concentrou em algo que a assustou: outro sonho, dessa vez um que existiu em algum lugar do passado (de qualquer forma, mesmo que não tenha existido, devia valer alguma coisa na vida, porque era importante conhecer). Ainda menina, sempre se via dentro do carro indo para um novo lugar, escondida e amordaçada pelos pais, que só a alimentavam com palavras vagas e abraços fingidos que já não diziam nem a primeira metade de segurança. Dessa vez foram para uma casa de extensa sala de visitas, com piso de mármore e uma longa escada bem em frente. Haviam pessoas lá, vozes, e elas receberam os pais com abraços firmes e apertos de mão. Deviam ser umas doze pessoas, e quando a menina já estava pensando ter se tornado invisível, eles desceram pela escada correndo, assustadores: enormes cães, seis cães, direto na sua direção. Ela não podia ser mais feliz, toda lambuzada de baba e ouvindo latidos de quem a queria bem. Recordou as infinitas horas no jardim dos fundos, correndo com os amigos, rolando pela grama, ouvindo o crack das folhas numa alegria de nunca. Havia um jardineiro ali, seu melhor amigo humano. Velho de uns cento e trinta anos, meio gigante, meio duende de orelhas caídas; na época a menina pensava que ele era a mãe dos cachorros e tinha o maior respeito por aquele senhor. Lembrava das conversas demoradas sobre assuntos perdidos na memória. Quando seu analista lhe perguntava sobre o que falava, ou sobre onde seus pais ficavam, o que faziam, se a viam de vez em quando, ela não sabia responder. Era como se eles tivessem sumido por uma vida e voltassem apenas perto de sua morte, quando teria que partir mais uma vez para outra casa, ou para um trailer, uma cabana, dias e dias em aviões, ou em companhia de estranhos, crianças de olhos puxados e pele morena que não falavam muito, ursos do outro lado do rio, livres e inatingíveis. E dos pais, não sobrava uma palavra. Ficavam lá atrás na história, como uma sombra que despertava a lealdade rancorosa. Ela gozou num grito arranhado e levou o punho à boca como se fosse comê-lo. Tinha raiva de si por chorar, mas as lágrimas já estavam por toda parte.

No dia seguinte acordou bêbada tarde demais e faltou o trabalho. Nem teve coragem de ligar para uma colega, a única em quem confiava. Deixou do jeito que estava. Sentia que a sombra se aproximava e ficava sussurrando “é hora de partir...” e queria chorar o dia inteiro agarrada a sua pelúcia de Pooh, o ursinho. À medida que o dia ia passando, ela ia secando. À tarde lembrou dos longos passeios de barco quando tinha treze anos, ouvindo centenas de nomes de peixe. E tinham gosto de cereja ou amora, não se fazia entender direito dentro da cabeça, na língua. Ah, e lembrou que uma vez conheceu a avó, pelo menos pensa assim, uma senhorinha muito doce de pele bem morena que descascava laranja arriada no chão, de pernas abertas com a saia lá nos joelhos. Ela dava uma bronca na mãe, que permanecia de cabeça baixa sem soltar uma palavra, e de vez em quando, olhava pra menina com um sorriso atraente e acolhedor dos lábios. Pedia que ela girasse a casca no alto igual um peão com um laço. E no a, b, c, d, e, f, ela parou no l e riu sem pudores quando percebeu que estava confortável. Na sua história também houveram peões e políticos e havia transado com pelo menos três de cada espécie. A tarde foi sumindo. Sua amiga ligou, perguntou por que havia faltado. Ela respondeu que estava passando mal, a amiga se assustou e deduziu gravidez, o que ela negou inalterada. “Por que você não vem aqui em casa? Vai se sentir melhor! Estamos fazendo uma reuniãozinha.”, a amiga convidou. “Não, já disse que não curto esses seus estudos. Sei lá, tem alguma coisa que me arrepia nisso e me joga pra longe.”, ela respondeu, insegura como nunca, mas abalada e viva novamente. No fim da conversa, as palavras foram sendo ditas em tons baixos, e foram se tornando sérias, e, quase como confissões, convenceram a mulher a ir até a casa da amiga.

Eles estavam em circulo, cada um com seu respectivo livro, mas o clima era leve ainda, e comiam também. Havia salgadinhos, cerveja ou vinho, e bolo de chocolate com maconha. “Sinta-se a vontade, Ana. Pegue o que quiser!” ela vestia uma longa saia de estampas abstratas, e não vestia nada da cintura pra cima. Seus seios pesados caiam e levantavam levemente enquanto ela pegava a travessa com os bolos fatiados: “Hum, você tem que provar esse bolo especial (ela fez o gesto de aspas com as mãos) que a Japa fez!”, riu bobamente como se fosse criança brincando com o proibido “Hum... divino!”, gargalhou cuspindo bolo pra todo lado. Ana pensou em gritos fantasmagóricos de bruxas de verdade. “As bruxas de verdade sentem a influência de um fantasma ou coisa parecida? Como funciona?”, ela se juntou ao círculo, acariciando o gato que se aproximou. Logo vieram mais dois e ainda um menor que todos os que já tinha visto, devia ter uns dez centímetros de altura. Ela o colocou no colo, desprezando os demais. “Esse é o McRonald, meu gato anão!” a Japa era uma mulher baixinha e gordinha, de sutiã e calcinha, com meias pretas até o joelho estampadas de corações amarelos e azuis. “Ele ajuda a transmutação de energias. Pode parecer pequeno, mas esse peste é mestre em suportar o caos.” Ana deixou que o gato fosse até a dona. Outra pessoa falou: “Ele é um dos pilares-chave pra que o círculo não desmorone.”. Do nada, Ana sentiu uma inquietação crescer no peito. Queria sair dali já, estava se sentindo incompleta, abafada, e os gatos começaram a miar, as pessoas foram rindo alto demais, tudo numa sintonia da qual ela não fazia parte. Estava suja. “O que você quis dizer com bruxas de verdade, hein mocinha?”, a amiga voltava da cozinha com duas taças de vinho nas mãos e os seios suando por debaixo. Escorria pela barriga da mulher e marcava contra a luz. Ana quis chorar, se levantou. Pegou a taça e levou a amiga até a porta, falando ao pé do seu ouvido: “Preciso ir, preciso vê-lo! Acho que fui muito má com ele. Outro dia fico pra assistir, ok?” a amiga a olhou nos olhos como sua mãe fizera há muito tempo: “Eu te falei, não falei? Poxa, um cara tão bom...” Ela pegou a taça da mão de Ana e colocou sobre a mesa. Levou a unha do polegar à boca e, pensativa por um tempo, se resolveu, olhando para outra: “Tá, vai lá! Mas me conta como foi depois! Não me deixa no escuro, Ana!” McRonald roçou na perna de Ana e ela o recolheu, com remorso por tê-lo odiado antes. “Leve-o! Você precisa dele! Ele sabe dessas coisas!”, a Japa gritou de longe. “Quando voltar, me devolve, sim?”

Ana desceu as escadas correndo, com o gato tentando escapar da bolsa, escalando a alça. Apertou o botão e o apito abriu a porta. Lá fora, lembrou do fim do outono, de como o tempo estava revirando tudo à procura de si. O celular anunciou nova mensagem de voz. Ana colocou o gato no banco de uma moto estacionada ali em frente e ouviu: “Eu sei que não quer me ver e que quanto mais me humilho, menos desejável me torno. Mas preciso te ver... dessa vez é urgente, resolvi tentar aquele troço e passei. Tô indo pra Austrália na terça. Me encontra no Bukowski! Por favor!” Outro apito, termina a mensagem e a porta se abre. “Ei, tira esse bagulho da minha moto, tá arranhando tudo!” O homem devia ter uns quarenta e poucos anos e uma barba espessa longa demais pros normais da cidade e da idade, mas não estava de óculos escuros, tinha olhos verdes na verdade. “Ah, desculpe.” Ana recolheu o bicho e o recolocou dentro da bolsa. Queria dar praquele homem tão urgente quanto queria ver seu namorado. “Prazer, sou Ana!” O homem só fez que sim com a cabeça e colocou o capacete, olhando a moça de esguelha, desconfiado. “Você não é aquela garota do...” Ana o interrompeu: “Pode me dar uma carona?” Ele olhou mais desconfiado ainda, pensando nas possibilidades, na interrupção, na vida, na moto, nos pequenos arranhões debaixo do seu traseiro, no traseiro da prostituta que ia ver, na mulher bem na sua frente... A confusão se desfez quando a voz da garota voltou à cena: “Eu faço valer a pena!”

McRonald roçava na perna de Ana enquanto a garota gemia, de tronco erguido, com o homem de quarenta e poucos anos deitado na sua frente, com seu pênis ereto à mercê da sua vontade. Ana não pensava em nada a não ser a mesma vaga repetição de eus, dessa vez misturados a um lodo fétido e bosta de gato. Queria arrancar a camisinha e queimar, sentindo o corpo arder e as mãos dançarem. Queria ter a sensação da dança eterna, podendo estar além dali, de tudo, no comando do corpo. De repente, teve certeza do que fazer. Uma vontade subiu pelo esôfago e quis vomitar, mas ela segurou. E só pensava nele, nele, nele, nele e nele. As imagens dele piscando e piscando como a luz no banheiro masculino de um inferninho qualquer, e ia aumentando em intensidade e em ritmo numa carreira de limites constantemente batidos. Tinha que expurgar esses demônios que entravam. Ela deixava – uma porta aberta, a escada por onde desciam todos os tipos de animais, buscando a finalização da palavra segurança. Ela deixava que seus pensamentos lhe dissessem o quanto de vadia fora naquelas noites onde decidia o destino, permitindo que nada lembrasse o que podia fazer ao invés do que estava acostumada a ser. Contudo, foi educada, deixou que ele terminasse e pediu que a deixasse no bar Bukowski. Ele também foi simpático e, estando devidamente alimentado, fez o que ela pediu. Quando chegaram, ele tentou beijá-la a força. “Não, por favor, senhor!” Ana o desviava com as mãos. “Não, pelo amor de deus, me deixa em paz!” Ela não pôde fazer mais nada: ele a beijou. Sua língua disse para a dela que não podia aparecer daquele jeito na frente do amor, que devia se limpar antes. Ela o olhou meio que com raiva, meio que assustada. “O que você sabe?”, perguntou. Ele se fez de canalha com a boca: “Eu te levo lá!” Ela subiu novamente na moto e eles foram.

Aparentemente era só mais uma lanchonete daquela franquia, mas o homem falou baixo com o gerente (um adolescente espinhento) e ele indicou que passassem pros fundos da loja. O homem guiava Ana com sua mão na dela, e ela quase que se apaixonava. Lá atrás, uma salinha com uma placa escrito “depósito”. Dentro, uma mulher sentada de costas no chão. “Quem tá aí?”, ela perguntou, sem se virar. “Sou eu.”, ele respondeu. Soltou a mão de Ana, que balançou perdida no espaço entre o chão e a alma, e foi até a mulher. Cochichou algo em seu ouvido. “Hum, peça que se aproxime, por favor. Tenho que ver se é possível.” Ele fez que Ana viesse até ele com a mão. O gato miou alto e fugiu prum canto entre os pacotes de pão. Ana olhou para a mulher e notou que usava perucas douradas e vestido de paetês, brilhantes pela fresta de luz debaixo da porta; mas não se enganou era uma velha igual a do seu sonho de dias atrás. A senhora não olhou, apenas pediu que Ana se deitasse de frente pra ela com a cabeça entre suas pernas. O homem saiu da sala e Ana sentiu um medo absurdo, deixando que as lágrimas escorressem livres pelo rosto. A bruxa de verdade foi sussurrando rápido um latim ferrado, para a seguir levar os dedos nos olhos de Ana e fechá-los. As palavras começaram a ficar mais altas até que gritassem pra quem quisesse ouvir: “Peço que interceda por esta puta que quer retomar a pureza!”, Ana podia entender, mas ainda era latim. Na cabeça, tudo queimava assim como os documentos dos pais quando partiram pro tal retiro após terem chantageado uma Ana mais moça, muito atordoada: “Mas vocês têm certeza de que não vão nem me falar do que se trata?” ela chorava, só sabia ter uma sensação ruim no peito, de um amargor indistinto, a loucura do não-saber, da dúvida, sem promessas ou compromissos com o futuro, apenas uma obrigação de fuga imediata. "Eu não quero mais fazer isso!" Nada fazia a paz, nada queria acordar. Era como se ela nem ao menos tivesse nascido. "Eu não sou mais sua putinha particular!"Os pais viviam de longos passeios, conhecendo todo o resort, como belos turistas. Davam risadas, provavam frutas, assistiam os rituais da cultura local, entusiasmados. Ana só não intuía o que fazer porque ainda não tinha sido atingida. Uma noite, acordou no susto depois de um pesadelo, achando que alguém a olhava nua, e ouviu uns sons estranhos vindos da rua. Não ousou olhar, mas não conseguiu mais dormir e ficou desperta esperando o dia amanhecer. Longas horas desesperadas, aflitas – 105120 horas... Assim que o sol se revelou caminhou para fora da casa e andou por tudo. Os pés já doíam, não mais fortes que seu sufocar constante, mas ainda doíam e queimavam. Num instante qualquer disparou a correr para diminuir a dor que só aumentava. E daí que ficou sem ar e tudo ardeu lá dentro e ela começou a gritar e gritar. Correndo e gritando permaneceu, e buscando e buscando, até que tropeçou em algo. Era um animal: um cão morto, seus ossos já quase aparecendo. Ana ficou olhando por um bom tempo e sentiu alguma coisa profunda chegar à superfície. “Rearranjo!” – Abriu os olhos e a bruxa estava de costas. “Saia!” ela não entendia, nem sabia onde estava. O gato chegou subindo pela sua roupa e começou a lamber suas feridas no rosto. A moça se sentou e começou a tatear as bochechas, sentindo grudentas as lágrimas e seco o sangue. Eram pequenas aberturas acima dos olhos, nas bochechas, no queixo – nada com que devesse se preocupar imediatamente. Olhou nos olhos do bicho e sorriu. “Vai embora já!”, a velha fez um gesto imperativo com a mão e alguns sacos de pão caíram. “Suma!”, a luz pelo vão da porta se intensificou e tremeu, alfaces começaram a voar mesmo sem vento e os pães se esmigalharam como se pisados pelo invisível. Ana levantou e correu para porta. “Muito obrigada!” Pegou a bolsa, enfiou McRonald lá dentro e saiu sem conter a gargalhada alta.

“Pra Álvaro Ramos, por favor!”, ela disse para o taxista. Estava amando, a menina. Discou o número dele e esperou chamar oito vezes até ser enviada para a caixa de mensagens: “Oi, Lucas, sou eu. Tô indo praí agora. Me espera na porta. Beijo.” O táxi parou em frente ao bar. Ela não viu Lucas na porta e resolveu ficar esperando. O relógio marcava duas e sete da manhã. Disse consigo que ia esperar até três e meia do lado de fora, sem beber, sem cheirar, sem transar, sem pirar, sem reclamar. Estava decidida a vivenciar o que via ao seu redor, rindo por qualquer coisa. Entre esperas, foi procurar o celular na bolsa e não encontrou o gato. Algo se rompeu. O curativo era frágil demais! Na sala nos fundos da lanchonete, a bruxa abriu os olhos assustada e balançou a cabeça negativamente, fazendo tutututututu com a língua nos dentes. Ana se deixou levar pelo desespero do tempo e os minutos ficaram longos demais. Ela olhava o relógio e ia ficando cada vez mais como antes: angustiada, querendo fugir. Táxis passavam e ela pensava nos peixes que pulavam pra dentro do barco; ela ria, seu pai ria. Queria, mas se segurava firme. Firme, não mole como os pênis dos amigos de seu pai. Prendia a respiração, olhava para tela no celular. E nada dele. Segurava, prendia. Táxis passavam e não paravam. O nervosismo aumentava. Borrões amarelos. Luzes, faróis. O semáforo ia do verde pro amarelo pro vermelho pro verde pro amarelo pro vermelho... Tentava respirar, segurar o ar lá dentro... (AHHHHHHHHHHHHHHHH!) – na sua mente nada além de um grito sem fim. Entrou num táxi e foi pra casa. Colocou um pacote de absorventes, sua nécessaire, papel higiênico; foi até o varal, apanhou três calcinhas, dois sutiãs, abriu a gaveta e jogou tudo dentro da mala que ficava pré-pronta ao lado da porta. O táxi esperava lá embaixo. No banheiro, ela escovou os dentes se olhando no espelho. Tinha mais medo que raiva, então a fuga se justificava. Pensou nele uma última vez e depois teve uma visão da bruxa andando pelas calçadas da cidade, perdida e louca, procurando alguma coisa que, talvez, fosse Ana. Cuspiu e desceu correndo com a mala quicando nas escadas; não tinha tempo para elevadores. “Oi, Ana!” A mulher fez um sorriso audível “Acabei de receber uma ligação da sua mãe!” Ana gelou. “Eles acabaram de chegar na Bélgica e estão bem. Pediram que eu avisasse assim que te visse.” Ana se virou para encarar a síndica com os olhos cheios de uma vida que não tinha, nunca teve. A outra mulher se assustou de leve e deu uma risadinha sonsa. “Que sorte a minha, não é? Te encontrar assim no corredor...” Ela viu a mala e já ia comentar, porém Ana esbofeteou seu rosto com tanta força que ela precisou se apoiar na parede. “Manda esse recado pra eles!”, Ana falou em pensamento com a síndica. Estava bufando e seus olhos traziam todo ódio do mundo.

Entrou no táxi e pediu que a deixasse na rodoviária. No caminho ficou escolhendo um destino. Tinha quase certeza que ia pra São Paulo dessa vez, mas não queria ser previsível. Lá podia entrar em contato com uma amiga que estudou com ela na USP, nos três meses que a garota ficou lá. Tentou cursar administração, mas teve que abandonar. Ângela, a amiga desse tempo, acabou durando porque seus pais se conheciam. Ângela se formou em jornalismo e escrevia para Folha, por isso Ana se sentia íntima dela toda vez que via seu nome em alguma daquelas páginas. A cabeça só dizia São Paulo, enquanto caminhava até a bilheteria. Três e quarenta e seis da manhã. Ana pensou de onde estaria vindo aquela maldita síndica àquela hora da madrugada. Teria que esperar até às cinco da manhã, então mandou uma mensagem para Ângela, perguntando se poderia ficar em sua casa, e descansou no chão sobre as malas, indiferente ao perigo. Não conseguiu dormir na profundidade de um sono, mas conseguiu deixar que o corpo retomasse as energias parciais. Ao som dos primeiros passos, abriu os olhos e comprou a passagem. Entrou no ônibus, procurou seu assento e recobrou um pouco da consciência: “Finalmente conheci uma bruxa de verdade. Ai, que droga! Perdi o gato! Devo comprar outro qualquer dia desses, assim que voltar ao Rio. Mas agora sou de São Paulo. Chego lá, me instalo, arranjo um emprego. Ah, devo procurar o Teco! Com certeza ele deve ter alguma coisa pra mim. Acho que ainda levo jeito. É, ainda tenho um restinho de marra. Agora é relaxar e respirar. Vai dar tudo certo. Eu tô fazendo a coisa certa. Só não é bom sinal pensar isso porque quando pensa sempre dá a entender que está fazendo o oposto do que sabe que deveria fazer. Bem, eu não sei de nada. Por que estou sendo tão formal nesses pensamentos? Acho que faz parte do processo de reaproximação. Ou reorganização. Por enquanto vou tentar ser confiável. Aqui dentro vai voltar a ser meu espaço. Já estou me sentindo bem melhor. Foi uma ótima noite. Quem diria?” Ela deu risadas em pensamento. O ônibus partiu. Com a cabeça encostada na janela, Ana foi vivenciando tudo que negligenciara na mente. Sentindo cada sabor, cada ansiedade, transformando-os em coisas novas, refletindo de fato o que foram vinte e oito anos de pausa. O motorista freou bruscamente. Ela ouviu latidos gentis ecoarem pelo ar. Havia um acidente na rodovia. Ana viu a fumaça de longe, trazida pelo vento. Mais a frente, havia fogo num carro vermelho que parecia estranhamente familiar. Havia também um homem acenando para alguém. O motorista abriu a porta e o sujeito entrou. Estava sujo de cinzas, dava passos envergonhados e foi direto para o motorista, conversando baixo. O motorista fechou a porta e deixou o homem ficar. O ônibus voltou a andar devagar e Ana pôde ver o fogo de perto. O homem das cinzas caminhava na mesma lentidão do ônibus. Ana viu um galão de gasolina do lado da roda e teve certeza do carro ao ver um pedaço da placa meio descascado: ANA-0058 – “Terá que ficar casada comigo por cinquenta e oito anos, ó querida, avassaladora, safada, deslumbrante, doce, maluca, sincera, frágil Ana!”, e as risadas dele iam aumentando. Ele fazia cócegas na barriga e depois resolviam ficar em silêncio em cima da cama, pensando nos problemas, compartilhando curas. Ela tinha os braços dele ao seu redor, tinha seus pensamentos preenchendo seu vazio e ele também tinha cicatrizes. Estiveram juntos apenas por dois anos e alguns meses, nessa coisa de se ver de pouquinho em pouquinho. Ele era tanto que parecia que já tinham passado os cinquenta e oito anos juntos. E ele era consistente nas lembranças, o que o deixava seguro com seu lugar cativo lá dentro. Ana corria pela mente, tentando fugir da sua aproximação, mas ele já estava de pé ao seu lado. “Com licença, senhora. Posso me sentar no seu lugar? Desculpe, eu acabei de sofrer um acidente e só queria estar com essa moça hoje.”, apontou pra Ana. Lucas tinha o dom da persuasão ou poderia ser apenas sua testa sangrando. A senhora se levantou e ficou muito tocada, apesar de ainda achar tudo muito estranho e escolher a desconfiança que a levou para o fundo do ônibus. Lucas olhou Ana e fez com que ela o olhasse de volta. “Só até terça!”, disse por telepatia. Ana o olhou porque quis e pediu que sentasse sem nada dizer na mente ou fora dela e sem se mover no corpo também. Somente os olhos pra lá e pra cá de acordo com o barulho da roda no asfalto. Ele se sentou e se olharam ainda por mais algum resto de tempo, admirando o quanto ainda sabiam um do outro pelos cabelos atrás da orelha, fios no ombro, corte na testa, no pulso, olheiras fundas, mãos trêmulas e calça desbotada. Depois, Lucas pediu pra deitar no seu colo e ela deixou. A bruxa escolheu primeiro Lucas e o enviou por incêndio. Olhando ainda através da janela, Ana foi voando, pensando em quantos acidentes ainda fariam parar aquele ônibus. Sobre a vida, ela alcançou o além da sobrevivência e decidiu chegar em São Paulo só depois de amar.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Havia desaparecido o que deixei no bolso


Ele não sabia o que escrever. Estava tudo muito muito dentro da cabeça. As palavras não queriam obedecer quem não tinha forças pra ordenar. Ele entrou às pressas no banheiro para tomar banho e chorar. Nesses dias tudo estava ficando cada vez mais difícil na intensa despedida da última melancolia. Entrava de surpresa no quarto e via o pai esconder algo, via a mãe mais confusa, com os olhos perdidos ao falar sobre qualquer assunto. Ele tinha dó deles, mas não era pra ter. Era frágil demais e sua mente ainda queria abrigar uma criança recolhida da memória. Os pais não estavam mais ali e não havia ninguém pra ampara-lo sem sexo. Constantemente via algo que tinha que fazer e não queria se ver fazendo. Já que não havia saída, tirou do bolso um pedaço da vida em que podia apostar. Lembrou desse dia em que desejou do fundo da alma ir andando até o fim. E daquele outro em que encontrou aquela figura estranha pela última vez. Sobre esse dia ele chora um pouco mais no banho. Uma pena tê-lo perdido.

Estava sentado no ponto de ônibus quando o cara fedido pediu algo pra dentro do copo. Ele balançou a cabeça antes mesmo de ouvi-lo. O sujeito balançou mais forte o copo e o líquido caiu em cima do outro. R deu um grito abrupto que virou xingamento e se levantou pra bater no mendigo. Quando o olhou, viu que era alguém da sua própria idade e fisionomia perdida; paralisou. O sujeito ficou pedindo desculpas e começou a limpar a bebida de cheiro forte. Enquanto esfregava a perna do outro, as pessoas olhavam e tinham nojo. R estava preso na semelhança. R quis reconhece-lo. Quando acordou o sujeito atravessava a rua e corria pra longe. R o seguiu caminhando firme, com pensamentos fixos numa única nesga de esperança. Luís, o suposto mendigo, entrou num galpão que chamava de casa. R hesitou e ficou disfarçando do lado de fora. Lá dentro, Luís, ajeitava as ferramentas, preparando o espetáculo. R falava sozinho num ritmo acelerado e seu nervosismo apavorava sua alma. Luís começou a uivar. R entrou. As luzes ainda estavam apagadas; seus passos foram cautelosos demais pra alguém que nem estava ali. R se sentiu feliz do nada. Parecia finalmente ter encontrado seu enredo, a história perfeita que ia se encaixar e completar a vida. Ansiava por um final dramático. Luís acendeu as luzes, uma a uma, e o galpão foi se revelando. As paredes estavam pichadas, tinham figuras de seres agonizantes que voavam pra além dos xingamentos e siglas de rap. Eram muitos e queimavam os ouvidos. Luís, o louco, começou a gritar e gritar, chamando pra dentro os monstros de fora. Na verdade, o que fazia era chamar R, que desmaiava. Além das paredes tudo ia voltando devagar para a narrativa: latas de tintas no chão, muito jornal amarelo, ferro retorcido, vassouras, cabos de borracha, placas de madeira e Luís, nu. R acordou aos berros e se livrou das mãos do outro. Correndo pra saída, encontrou nenhuma. As palavras iam começando a fazer sentido: “Você trouxe o que pedi?” R não sabia o que Luís tinha pedido, só sabia que se conheciam de antes e que tinham a mesma idade. “Você estava com ela! Eu vi! Estava sentado bem em cima pra ninguém ver. No ponto de ônibus... Lembra?” R só sabia que seu pênis estava ficando ereto, e imaginava o nervosismo que tudo estava causando. Suor e tremedeira. Sua mente trazia vários fatos: faca na nuca que ia e voltava, Luana nua, chupando seu pau, indo e voltando com a cabeça, sua mãe chorando e seu pai se masturbando, uma menininha chupando sorvete de casquinha, o sorvete no chão, sua mãe chorando, Luís nu, Luís chupando seu pau... “NÃO!” R continuava a gritar, se negava a ouvir, não entendia o que gritava. Luís se aproximava. R não queria aquilo, tinha medo, queria correr, mas não queria correr. “Cara, tá tudo bem! Eu tô aqui!” Luís tentava acalmá-lo, esfregando seu braço. R ficava mais e mais excitado. Os olhos de R assustavam Luís, mas ele só pensava em pegar o pacote e expulsar o outro dali. Sabia das crises do colega. Não ia adiantar abusar da sua boa vontade, era preciso entrar na sintonia do surtado: “Lembra do filme da égua de quadris largos que tinha uma xota bem molhada onde o negão cuspia e depois enfiava o pau? O do xvideos! A gente via antes de perder horas naquele brinquedo de empilhar dois andares. De bloquinhos de madeira... A Luana te ama do avesso e do quadrado e quer te comer ainda hoje. Com certeza quer te comer. Aposto que esse seu sex machine tá cheio de porra acumulada. Seu garanhão! Dá pra ver, seu pervertido! Vem cá, cara! É só me abraçar que tudo vai ficar bem. Mas me dá a encomenda primeiro, sim?” Luís achava um tom de brincadeira em todas as loucuras que falava. Pensava em dizer coisas em inglês e achava inspirador utilizar um maluco como mula. Mas ele amava aquele maluco desde a infância. Luís nunca ia se lembrar e muito menos se culpar do dia em que seu amigo surtou pela primeira vez. R só fez o que o amigo pediu, e ele pedia constantemente (puteiro, rave, circo). Só que R não precisava de muito pra escapar da realidade e mesmo assim, Luís insistia. A única anestesia forte o suficiente era o cheiro de uma vagina, a primeira vagina. R fez besteira e surtou demais. A vida normal que levava com Luana subitamente ficou na fronteira com uma odiosa fantasia. Luís nunca soube o que isso significava e continuava insistindo na provocação barata. “Anda! Dá três voltas e meia pra cá que eu te faço endurecer esse pau e esquecer esse amor vagabundo!” Luís já estava masturbando o amigo para acalmá-lo. Luís odiava ter que fazer aquilo.  Não por consideração, mas por nojo mesmo. R tinha medo e alucinava beijos molhados de sangue por toda a parede. Via Luís trepando com sua mãe e queria mata-lo e matava. Na tevê, as notícias de assalto e investigação da corporação por assassinato. Ouvia o vizinho chegar em casa, tomar um banho quente, esquentar a comida no micro-ondas. Escutava o que a tevê dizia, mas não dizia. O vizinho não tinha tevê. R gozou sem perceber e voltou à realidade. Luís se agachou, limpando a mão com um jornal. R: “Puta que pariu, não acredito que você fez isso de novo?” R partiu pra cima de Luís, chutando sua cara. Luís não desmaiava fácil, mas ficou zonzo. Ele puxou R pela perna e se colocou em cima dele, segurando suas pernas com seu peso. “Seu merdinha! Pensa que eu não sei que você gosta! Aposto que é tudo invenção...” E socou a cara de R. R perdeu um dente porque foi um baita soco. Mas sua raiva fez surgirem forças novas. Luís se assustou com o sangue e libertou o amigo. “Me desculpa, cara! Eu sei que é invenção da sua cabeça e que nem por isso é menos doloroso. Me desculpa!” Ele tentou abraçar o amigo, mas R socou seu estomago uma, duas, três vezes, e riu alto. O outro achou que o amigo já estava surtando de novo, mas R se virou e jogou o pó no chão: “Essa é a sua parte! E se comer minha garota de novo, eu te mato de verdade!” Luís experimentou o pó nos dentes, e tomado por uma euforia, disse: “Ah, vem cá, seu coisa ruim!”, indo abraçar o amigo. Eles se abraçaram e R percebeu que seu pênis ainda estava pra fora. Levou a mão até a cueca e notou a ereção do amigo. R empurrou Luís e xingou. “Seu desgraçado!” Naquele dia foi embora atormentado por sua própria imagem beijando Luís na boca, com língua e amor. Ficou piscando muito até chegar no ponto. Tinha seis chamadas perdidas da mãe. Pensou em ir até a faculdade abraçar Luana e chorar no seu colo, mas temeu seus amigos. R chegou em casa, dizendo que estivera estudando e se trancou no quarto pra ouvir Bette Davis dizer: “I'd luv to kiss ya, but I just washed my hair.” Depois se masturbou vendo o resto de A Malvada e dormiu.

Depois de chorar a lembrança por dias a depressão começou. R ia feliz pra faculdade porque sabia que não ia surtar. Tudo ia bem. Luana dizer que o amava não provocava esquivas ou coceiras. Ele andava normalmente, evitando somente pisar nas linhas muito visíveis no chão. E as aulas tinham textos que não se importavam de serem lidos ou não. De Luís só soube que mendigava sexo na Av. Nossa Senhora de Copacabana. Tudo ia bem obrigado até que o final do período chegou trazendo uma ode à ansiedade, deixando o inferno tomar conta sem queimar. R tentou assistir Um amor pra recordar com Luana, mas não passou da metade sem fazer comentários agressivos. Os dias nublados já não tinham tanto impacto e frescor. Os pais continuavam apáticos e não se divorciavam mais. Uma professora pediu uma dissertação sobre a reforma psiquiátrica e ele não sabia o que escrever. Nem hoje, nem amanhã porque amanhã é dia. Uma lembrança a menos.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Na sala


“Ah, quando ela disse que ia pra Brasília foi tranquilo. Confiávamos um no outro, era uma oportunidade única. Pra falar a verdade, na época só pensei nela, eu acho. Independente do que isso fosse mudar na nossa dinâmica, ia ser bom pra carreira dela. E daí, né? Sem pieguice mesmo... E deu tudo certo. Quando ela voltou, a gente se casou. Não, na verdade, foi bem depois de uns três anos. Não posso nem te contar do tamanho da minha felicidade. Daí foi aquilo: dificuldades, morando num aperto, tentando focar no futuro, priorizar isso ou aquilo e partir pra cima; olhando sempre em frente. Ela engravidou, já estávamos bem melhor, já na casa quase pronta, do jeito que ela queria. Ela engravidou e foi quando começou a sumir.”

“Fui me sentindo cada vez mais só sem perceber, porque tudo era muito: quarto do bebê, acabamento da casa, compra dos móveis, trabalho, pós, e ainda tinha que lidar com o pai dela no meu pé, querendo comandar tudo. Sério, a cada cinco minutos do dia ele me ligava pra falar da obra, pra me cobrar isso ou aquilo. Me cobrava até sobre as funções de marido. Sei lá, acho que ele não tinha esse direito de interferir. Quanto a ela, penso que não sentia nada, ia ficando calada, ia me olhando menos nos olhos, fugindo dos planos, ficando em dúvida; já não sabia mais quem era junto de mim, parecia fingir a intimidade - totalmente desconfortável. Primeiro achei que fosse depressão pela gravidez, até porque minha mãe teve isso durante toda a gestação da minha irmã, mas não, não era depressão. Era solidão mesmo.”

“Assim que o Felipe nasceu, ela foi embora. E o tempo passou. Meu sogro nunca mais me ligou. Isso me arrasou legal e, apesar de tudo, não sentia raiva nem nada. Não sei por que deveria sentir raiva de qualquer maneira. Só queria mover pra frente os nossos planos, queria fazer tudo o que antes ela quis junto comigo. E fui vivendo. Esperando que minhas conquistas a trouxessem de volta. Ela me queria longe e estava, mas eu ficava sempre esperando que decidisse estar perto de novo. Não nos víamos nunca, já que minha sogra trazia o Felipe nos finais de semana. No inicio ela me ligava de madrugada e ficava chorando do outro lado da linha. Eu esperava ela acabar fazendo Shhhhh Shhhhh com a boca pra acalmá-la. Agora, ela mudou de número. Você ainda fala com ela?”

“Ontem senti vontade de me matar, por isso vim aqui. Acho que só o senhor pode me ajudar. Tinha que falar pra alguém da minha espera. Às vezes acho que não vai dar, mas sigo em frente. Não posso deixa-la sozinha, quero dizer: deixa-los sozinhos. Me matar seria um egoísmo sem cabimento, me entende? Antes eu nem queria saber de ajuda, mas agora percebo que tenho que ter um porto também. Sabe, a gente tem que estar lá pra alguém mesmo sabendo que nem sempre vai ser recíproco. Eu penso que sou uma costa, um litoral, só isso, só esse pedacinho mesmo, enquanto ela é uma ilha inteira. Ela tem várias saídas e eu só tenho uma. Ela foge quando quer porque de longe consegue se ver de qualquer ângulo. Eu só tenho a opção de esperar porque tenho medo de não saber o caminho de volta. Isso faz sentido? Pode parecer injusto, mas só penso ser justo fazer aquilo que meu coração diz.”

No dia seguinte, ele precisou urgentemente ir ver o psicólogo de novo, mas se segurou, prendeu a respiração. No finzinho da tarde, recebeu uma ligação da esposa: “O Felipe piorou. Eu tô aqui no Hospital com ele. Tô desesperada, não sei o quê fazer. Não quero envolver a mamãe, ela já está cheia de problemas.” Ela deu uma pausa e chorou baixinho. “Você pode vir aqui ficar comigo? Se eu ficar sozinha, enlouqueço.” Ele chorou um pouco também e ela permaneceu no seu próprio choramingo, depois respirou fundo e percebeu alguma coisa, falando quase num sussurro assustado: “Por favor, Luís...” Ele desligou o telefone e ficou em silêncio, sem nenhum pensamento aparente. O ser triste que tinha dentro ficou forte e mais forte, lutando pra não desmoronar. Ele, em silêncio, enquanto o dia escurecia na sala. Esperando o que fazer, esperando o desejo de voltar a ser alguém.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Confissão


Odeio escrever! Palavras me cansam e são estupidamente chatas! Tudo que queria era poder enfiar uma droga de uma câmera dentro da minha cabeça e filmar a vida por lá. Porque é tudo muito cansativo. Só queria assistir. E entender. Mas daí vem a única opção disponível: pegar um monte de letras, juntar, batizar um significado e colar numa folha com alguma certeza de ao menos coerência gramatical. Se a mente ainda fosse feita de palavras... Queria abrir o coco e instalar uma câmera de segurança, evitando a loucura, filmando tudo o que pudesse, o que deixasse. Peraí, será que teria que fazer resenhas? É verdade que estou infinitamente preso às palavras? O que há de novo dentro do repetido não pode ser só o o. Preciso de mais! Aí vem deus e faz de quatro letras um espera infinita! "Sois deuses!", alguém disse, e só o que fez foi acrescentar duas novidades repetidas. Fiquei com o velho du de dúvida, mas duvido que tudo isso pudesse ser escrito, ou filmado... ferrado!

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Litros de imprudência na irrealidade de uma amizade sem reverência


Eu sou o batman e você o superman. Somos que nem aquela peça escangalhada, de quem nossos filhos riem sem dó da risada. Sua mãe, não a minha! Porque minha avó nem cabelo mais pinta, e também, o que você queria daquela péssima tinta? Nossos meninos não sabem fazer direito, e quando voam derrubam tudo. Sem nem fazer meio lisonjeio, apertam com os dentes o braço carnudo. Nossos filhos não riem mais, não se sujam, não se cruzam, não se usam! Mas nossos filhos ainda não brigam!

Somos que nem aqueles vizinhos que se mudaram. Sempre carregando as roupas pro lugar certo. Sempre vivendo de adiar o ferro. Mas aqui nunca chegam móveis novos. Nunca esquecem de cobrar da cara os olhos, nunca relaxam a cintura pra braguilha não abrir. Por isso te peço, meu amigo: me leva daqui!

Deixa que os meninos se virem, eles agora são velhos! Demais somos você e eu, juntos crianças perdidas. Deixe que essas agendas, mesmo antigas, não escondam o calendário. Deixe que o café eu mesmo passo. Deixa, que quando a gente passar por ali, eu os prendo no armário. Não se confunda: eles sempre souberam o que era pilotar, nós é que nunca saímos pra voar. Mas você sabe como faz. Você sabe do que o céu é capaz. E lá nos móveis nunca novos encapada está, por cima da calça num só mafuá. Não se preocupe com esses assuntos! Tá tudo certo que eles ainda ceiam juntos.

Agora me beija a face e levanta! E sai pela porta e me deixa em paz! E some no ar dos homens normais, e finge fugir com meu tosco abençoar, e diz que amigo não é fácil de achar, e luta comigo que é pra gente se amar. Mas, pelo amor do Deus que há, não esqueça da tua fraqueza, e não faz dela toda uma certeza, no que eu te engano, no que eu escureço, no que eu finjo que esqueço: o que sou eu.

Céu de morcego é que nem pescador de papel, que não zarpa bem com o barco por ser leve demais, que não descansa do sonho de um lugar ou cais, que ventasse onde ventasse, nunca viu peixe que flutuasse. Jamais! Tenho andado muito distraído, às vezes esquecendo de me esconder, e em outras, me perdoe dizer, eu me disfarço de você. Só que ninguém a não ser os meninos, e olha que eles estão bem desprotegidos, confunde a com b. E logo agora num c, não tô mais encontrando os perigos, fico achando esses vazios e me deparo com você, que lá de Krypton me vê. E aceno que venha cá, pra num abraço me ensinar, o que batman quer realmente dizer.

Espero, quando te ter assim bem próximo, você lembrando aquele negócio e começando a me chamar de irmão, já poder por fim fazer, o que é de mim melhor em você, soletrando o ditoso de super, que na raiz da palavra revela, e desespera, o que de herói significa solidão.

domingo, 19 de junho de 2011

Um velho esquecimento


Hoje, lembrei o que nunca me disseram. O que deixaram escapar num porém de silêncios. O que quiseram fingir que nem cabra velha era. Nesse mesmo hoje, eu esqueci o que lembrei, e acho ser assim porque fugi da resposta. Agora percebo que o que lembrei era pergunta sem entonação de pergunta. E era questionável. Quanto tempo até que os silêncios voltem, preu saber e escrever o que sei? Ah, mas teria que saber a resposta antes. Por quanto tempo posso aguentar esses esquecimentos?

"Por tantos dizeres de imperceptíveis vozes."

Mas cá estou eu, num livreiro enorme de gordo. Sim, cá estou a sufocar um pobre homem que só queria vender “A insustentável leveza do ser”. Nem sei por que me perdi em sentimentos de raiva e ódio. E nem sei por que ainda não joguei esses sentimentos fora. Esqueci o que queria dizer e como costumava andar por ali sozinho. Esqueci como andava. Certa vez um amigo me disse que quando via uma mulher saída de seus desejos, esquecia como é que gente anda. Ninguém esquece como se anda, é como andar de bicicleta, ô meu velho amigo! Ele esquecia mesmo. E eu tinha ataques de raiva e esquecia porque os tinha. E só queria me esconder dos que me chamavam de caduco.

Aí vi que o livreiro não era pessoa, era de madeira. E pra descer depois? Ele ainda era grande e gordo, só que não gritava mais. Esqueci o que significava livreiro. Da próxima vez que quiser construir alguma ideia talvez deva parar pra ouvir o silêncio antes, senão esqueço os pontos e cometo atrozes erros de ortografia. Mas da próxima vez devo cair pra não ter que subir de novo, que quando se está no chão fica tudo bem; posso me abrir todo, esticar bem os braços... seguro e dono dessa segurança. "How deep is your love?"

Mas você vem até mim numa noite de verão e a lua tá tão bonita que eu resolvo te reconhecer. Ah, minha bela! Você é tão minha salvadora quando, não sei por que, enlouqueço. Você me dá a mão e me leva até o longe a passos corridos. E aí, quando deitamos no chão, minha doideira encontra paz na sua. Ninguém me incomoda com perguntas que não lembro. Você, meu docinho de caju, parece tão apimentada às vezes, que choro. E quando choro, seus dedinhos me enxugam todo. Mas o que é que eu queria dizer mesmo? É que agora sei quem é você quando, antes de chegar, vejo pela porta um nada de intuição, e no silêncio, consigo ouvir seus assobios. Agora, acuado, só sei dizer: “Ei, ei, ei, o que está acontecendo?”

E não tenho resposta alguma, só um “ei, ei, ei” de volta que começa a querer cantar.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Duas histórias que se cruzam num sonho.


De manhã, levantei zonzo, passei pela sala e notei as três sombras dos meus pais e irmão tomando café e suas vozes fantasmagóricas me arrepiaram. Entrei no banheiro com o sonho ainda latejando na cabeça. Escovando os dentes recebia mensagens ocultas da assassina assustadora, e o som dos gritos ainda me assustava por mais que o sol bonito das onze horas me esquentasse dizendo “está seguro aqui comigo!”. Sentei na mesa e peguei minha caneca, enchendo até a borda só de café - mentira, uma pequena força de expressão pra dizer o quanto o café era imprescindível pra todo o processo de afastamento do mundo dos sonhos. “mãe, sonhei com você essa noite...”, disse, mas depois me perdi porque meu pai não trouxe o pão que queria – o suíço – e aí, era dia dos namorados, e minha mãe tava reclamando do quanto tava velha e meu irmão tava calado às vezes, e outras dizia rindo qualquer coisa como cópia do que eu falava; ironizávamos nossa mãe juntos.

“Já foram três casos de dizerem que eu tô velha”, ela recomeçava, “primeiro, a professora de biologia lá da escola, que já tem mais de cinquenta anos, disse que eu parecia uma senhora...” – “Nada a ver, isso é porque você tava com a roupa toda fechada e certinha e o cabelo armado...”, dizia entre seu discurso, sem ser ouvido. Meu pai balançava a cabeça, e ela continuava: “...depois, Alan disse naquele dia que eu tô igual mamãe...” ela se esqueceu da terceira vez e partimos pra uma conversa estranha, sobre o filme de ontem e sobre a possibilidade de mudar de casa. Aproveitei pra reforçar: “Mãe, sonhei com você essa noite...” – “Como foi?” – “Sabe como nos sonhos os espaços são familiares e até lembram lugares daqui da Terra, mas são completamente diferentes e, às vezes, assustadoramente vazios... (não foi bem assim que disse, mas era isso que queria dizer) Eu sempre sonho com os mesmos cenários, só que eles vão se ampliando e nos mostrando novos caminhos... Enfim, ontem sonhei que a gente tava na casa da minha avó e que você era uma assassina, e tava todo mundo com medo de você, inclusive eu. Você tinha uma faca, ficava lá nos fundos e torturava umas mulheres, depois de ter discutido violentamente com elas; elas urravam de dor e você aparecia com o vestido cheio de sangue (é incrível como também nos sonhos eu nunca vejo os olhos das pessoas, mas sei quem são). Aí, eu, minha avó e o pessoal começamos a rezar lá do portão e os gritos pararam. Minha avó disse pra gente ir lá perto, mas Thiago, e os outros ficaram com medo e fui só eu e minha avó. Você tava com uma menininha no colo e a tinha esfaqueado no ombro; não lembro da expressão da menina. Eu e minha avó, de mãos dadas, começamos a rezar; tava morto de medo. De repente, Margarete apareceu do nada, bem na sua frente, e colocou a mão na sua cabeça e tal qual feiticeira, gritou umas coisas e depois eu me perdi... ela sumiu, não sei se foi esfaqueada ou se o sonho foi editado. Só sei que daí, eu peguei a faca da sua mão. Você tava estranha, parecia de volta a si, com os olhos em branco, tremendo... A menina também tinha sumido, e aí o sonho cortou pra outro dentro de um navio, onde acontecia um show.”

Olhei pra ela, minha mãe. Apesar de tudo, continuávamos a tomar nosso café como se nada tivesse acontecido. E nada de fato aconteceu. Mesmo tendo sido intenso, estava na minha cabeça, só afetava a mim. “E aí?”, perguntei. “E aí que você leu minha mente. Ontem, quando vocês tinham saído, eu fiquei aqui na sala, e me veio o pensamento se eu já tinha matado alguém em outra vida. Você tava lá fora, deve ter pescado meu pensamento e sonhado com a resposta.” Eu fiquei estranho, me arrepiei de novo, e engoli café pra ficar okay. “Mas só quem tava lá era eu, minha avó, Fátima, Thiago e Margarete.”, ela comia e falava normalmente, mas era torturantemente má no meu sonho. “Então, só vocês estavam comigo lá!” – isso eu não sei se ela falou mesmo ou eu pensei. Terminado o café e o assunto, minha mãe lembrou do terceiro caso onde foi reconhecida como velha: “Ah, lembrei: a garota da farmácia perguntou se eu queria desconto de aposentado...hahaha! Eu tô muito acabada, acho que vou precisar fazer alguma coisa no rosto... Vocês não vão me julgar se eu fizer não, né?” Meu irmão ironizou um pouco, rimos e fomos ler o jornal, lavar a louça, recolher a mesa, ligar o computador, meio que por aí, sem ordem ou distribuição justa. Fiquei procurando casas nos classificados e me perdi do sonho: esqueci legal mesmo. Minha mãe ficou na cozinha ouvindo Legião, e eu volta e meia ia lá só andar. Vi o lembrete do projeto social de música na geladeira, tentei gravar pra pesquisar mais tarde, mas esqueci de qualquer maneira. Meu pai resolveu colocar um dvd de pagode, e meu irmão o incentivou só pra me provocar e, em meio a suas risadas, eu esbravejei, xinguei e me enfiei no quarto com o resto do jornal.

No quarto comecei minha adorável rotina de domingo: não fazer nada e deixar que o sentimento de culpa cresça exponencialmente até que me possua por completo e me assole numa terrível depressão de segunda. Lá deitado, com o notebook quente na barriga, procurando casas e mais casas, pensando em possibilidades e planejando o resto do dia, me veio a vontade de habitar aquele mundo de casas reconhecíveis apesar de nunca vistas e ruas que só se ampliavam, em um caminhar que só fazia crescer um mundo, como se finalmente pudesse degustar cada centímetro do novo. Tudo ao redor pode ser surpreendente, há sempre uma nova perspectiva, mas quase nada tem sabor de novo, quase nada inspira curiosidade. Isso não acontece no mundo de quando a gente dorme. Os sentimentos são reais e são as fichas sempre apostadas, a intuição comanda e é livre. Queria estar lá sempre. Pensando nas horas que vinham, decidi assistir finalmente “A bela Junie”, que já está no meu pc há séculos. Só que quando decidi, meu pai foi comprar o almoço e eu escolhi assistir depois do almoço então. Mais uma volta minúscula e vazia de novo pela casa: geladeira, copo d’água, memorizando o aviso, olhando minha mãe, ouvindo minha mãe, estranhando. Que estranha estreia de dia. Almoçamos, saí do almoço como um foguete, engolindo a comida, reclamei das toneladas de açúcar no suco e cuspi na pia sob os olhos de ninguém, eu acho (agora que escrevo, percebo que talvez ela estivesse me observando já) . Assisti o filme, ainda na cama. Gostei do filme, tive aquela sensação de habitar o lugar com a alma, de sentir o frio das imagens, de ser o clima que é avisado pela meteorologia. Eu finalmente ia fazer o que sempre desejo fazer nesses dias, arrumar uma hora pra escapar da armadilha virtual e dormir, afogando minhas mágoas por não viver de verdade. O mundo dos sonhos é infinitamente mais maravilhoso que o da internet. Eu ia conseguir, mas minha mãe entrou no quarto quando ainda estava com o pc ligado, quebrando a possibilidade de passar a imagem de alguém que não desperdiça o tempo, mas que está cansado demais pra ele. Fiquei com raiva, e quando ela me pediu pra digitar as provas dela, eu fiquei de cara feia no escuro e disse: “Eu ia dormir agora, só depois [...] Tá, mas eu só faço quando quero! Gosto de fazer assim![...] Que saco! Já disse! [...] Eu faço quando acordar! [...] Se acordar! [...] A gente nunca sabe se vai acordar de novo!”. Ela ficou chateada, porque mãe sempre fica chateada quando filho brinca que vai morrer ou não acordar nunca mais. Disse que ia na casa da minha avó porque minha priminha tava lá, e eu pedi que mandasse um beijo pra ela, mas ela gritou que não ia mandar droga alguma; do lado de fora do quarto ela ainda gritava com meu pai sobre o que eu tinha falado. Só então percebi que já estava entrando... Estava sendo absorvido lentamente. Ia dormir, com frio, com minhas cobertas aconchegantes. Ia dormir no meio da tarde, às 17h36. O travesseiro macio, o celular gelado na mão, o óculos caindo. Fui dormir. Dormi.

O sonho.

Estava num trem, o trem de sempre, mas era Paris, mas era o de sempre mesmo. Tudo com o gosto excitante do novo. Era o mesmo horário da vida real, fim de tarde, nublado, meio cinza esverdeado, meio noite. Estava sendo perseguido e estava junto de duas amigas da faculdade, e ainda estava na faculdade, com livros e bibliotecas que só cresciam e cresciam. Seus longos corredores de luzes apagadas tinham aquela sensação familiar de constante surpresa. Ela estava marcando meus passos. No trem, articulava um plano pra não morrer, enquanto ouvia minhas amigas conversarem sobre coisas banais e rirem. As risadas soavam longe, como se estivéssemos em lugares diferentes; teorizo que estávamos, suas imagens nem estavam lá, não estariam dormindo também – Vanessa tinha que estar estudando no fim de semana. Não estariam dormindo, não estariam lá, mas partes secretas de seus cérebros participavam comigo desse esquema sonhado. Não me auxiliavam, serviam só de suporte imagético para aumentar minha confiança na salvação ou na realidade do sonho. Enquanto tagarelavam, e as outras pessoas do trem inexistiam apesar de estarem lá, eu senti a sua aproximação mortal. De vez em quando tinha lapsos de suas feições demoníacas, com rajadas de risos tenebrosos e raios literalmente saindo dos olhos; não era tão ridículo quanto aparece escrito. Eu fui preso quando cheguei no sonho, mas vivia me esquecendo disso desde o seu início. Fui preso quando cheguei na minha estação, mas na verdade ainda não estava lá, só sabia o que ia acontecer e que sairia correndo pela rua que levava à minha casa, e estaria sozinho, como sempre. Então, eu tive uma brilhante ideia para despistá-la: chamei um assassino rival, e ele estava no trem, ao lado do maquinista. Ela percebeu e, diabólica, voou sobre o trem demonstrando força e chamando o outro pra briga. O assassino rival caminhava de vagão em vagão, queria matar alguém também. Trazia um facão e queria enfiá-lo no meu peito, e ia doer pra caramba. Que burrice a minha! Que droga de plano. Nos sonhos sempre estamos sozinhos, e aquelas imagens de amigas já não me transmitiam esperança alguma. Elas eram nada, não me compreendiam, não podiam me ajudar. É estranho como o estar sozinho junto dos que se ama pode soar tão mágico e assustador ao mesmo tempo. Acho que é assim que os sonhos são pra mim: mágicos e assustadores. Mas os vilões são bem reais! Claro que isso é porque sempre dou mais atenção ao que está errado e crio vida nisso. Ele vinha, ela sumiu no ar e o trem parou na minha estação. Sabia que os guardas vinham me prender e que lutaria muito para me soltar. Eles não vieram. Já tinham vindo uma vez e o sonho não queria se repetir. Cortou para minha corrida - de repente, estava correndo - por essa rua escura aqui atrás da minha casa. Minha respiração dava sinais de ir ficando mais última progressivamente. Cheguei em casa e nunca me senti tão amedrontado. Lá, tudo que conhecia parecia tocado de fim. Cada coisa não me dava segurança, sumia em importância. Me vi dentro de um armário (que nem existe de verdade) dentro do quarto em que dormia na realidade. Sentia que estava ali junto de mim mesmo. Um dormia sem respiração, e o outro dentro de um armário que nunca vi, perto da janela. Ela apareceu! Voava, e arrancou as cortinas  com tempestade de raios e trovões que provocava com a mente. Não era mais minha mãe, mas sempre seria. Eu não gritei porque já ouvia com os ouvidos reais e eles não ouviam nada que vinha da parte secreta do cérebro. Ela pegou meu pescoço com as unhas. Não senti nada, porque meu corpo já recobrava a consciência dos 82 quilos em extremidades bem acomodadas. Ela não tinha mais poder de morte porque estava bem na minha frente, abaixada na penumbra, olhando dentro do meu sonho, me censurando, rindo sussurrado pra não me acordar. Ela fazia Shhhhhhhhhhhhhhhhh! com o dedo sujo sobre os lábios. Seus cabelos estavam despenteados, duros pro alto, sujos. Tudo estava sujo, mas eu não sentia o cheiro porque não era real. Quando abri os olhos dei de cara com ela, que riu com dentes estragados e me matou com seus olhos arregalados.

19h48. Só ouvi meu irmão rir na sala – tinha voltado – minha mãe tava na cozinha e eles se falavam de cômodos distantes, alto demais, e estavam felizes. Meu pai devia estar dormindo (eu não sei), não tínhamos habitado o mesmo mundo de qualquer maneira. Podia estar no computador também. Mas estávamos todos dentro de casa e, quando abri os olhos, apesar do escuro, consegui ver tudo que conhecia e isso me fez calmo: senti confiança na realidade. Toda vez que a gente acorda precisa confiar no que existe, não é? E eles estavam andando no cenário. Abri a porta do quarto: luzes acesas, estavam andando nessa maravilha de palco familiar. Olhei pra trás. Sabia que lá na cama, sobre meu travesseiro, restava a poeira da fuga, disposta a me ajudar no retorno. Minha mãe tava no quarto com meu pai, sentada na cama, procurando algum papel, organizando provas e ele no computador. Olhei meu irmão na sala, jogando video game. “Sabia que não era você?”, eu disse, me sentando ao lado da minha mãe, “Era tudo eu! Queria que houvessem outros, mas era tudo eu. Sempre foi.” Ela não entendeu, e continuou fazendo o que estava fazendo. “Não vai dizer nada?” Parou e me olhou: “O que você quer que eu diga?” Ainda estava zonzo da morte.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

A ordem das coisas


Um soldado entrou pela porta
e pediu que não houvessem mais mortos ou feridos.
Olhei pra trás e notei que o soldado trazia uma faca com sangue.
Foi então que percebi que nossos soldados trazem mortos e feridos no coração das facas que escondem atrás.
O soldado um trazia no peito a bandeira dos sofrimentos derramados
e eu tinha dó de nós.
Chorei pela face detrás das lembranças,
pelas imagens dos homicídios internos,
pelos mortos e feridos infinitos em mim.
Sangrava e tudo que um soldado me pediu foi que não me ferisse mais.
Ele foi embora num gume de lealdade.

...

Um anjo entrou pela janela
e pediu que dormisse enquanto me curava.
Acordei e vi que não tinha anjo algum.
Mas estava desacordado, curando e morrendo ao mesmo tempo.
Estava curando ao mesmo tempo que uma faca atravessava os primeiros segundos,
dos últimos tempos da morte, dos primeiros tempos da vida.
Esperava não doer mais.
Esperava não mutilar mais.
Estive curando o tempo todo.
E Steve era só um cara que costumava usar fardas.
Excitantes fardas.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Risadas tolas, tolas intrigas


Você sabe quando pessoas riem, que vão além da conta? Ou quando elas humilham apenas por três segundos e os surtos acabam chegando como palha pra incêndios? Elas, às vezes por medo, sentem-se inclinadas a zombar do mundo através da estridente falta de compaixão, contaminando os ambientes, deixando-os repartidos, uns esfumaçados, outros pelados. De coitados, elas os vêem pouco. "Outras festas virão!" - os desrespeitosos absurdos se transformam em lágrimas, como uma desastrosa vingança vinda da voz de todas as virtudes, que é bolha de ar. A voz chega à superfície, revelando-se a famosa fonte da vida. E respira. E chora. Não tem pena do que foi fio d'óleo (ódio) a marchar sem rumo, e faz do afogar a representação final da nova chance.

Cheque seu bolso e veja só se não há uma caixa de música faltando as pilhas! Ou ainda, uma bailarina esperando dar corda! Seus risos agora soam longe, indistinguíveis.