sábado, 24 de dezembro de 2011

Feliz natal do hospital

Era dia 23 de dezembro e ele estava deitado no sofá lendo uns livros. Na verdade, usava essa desculpa de ler pra se sentir útil ou pra não se sentir tentado à inutilidade – o que parecesse mais convincente. Ele pegava Machado achava chato, trocava por Drummond, lia dois poemas, sentia-se bem, sentia-se insuportável. Clarisse tinha duas vezes pelo chão, páginas abertas, pedaços rasgados e molhados. Pegava finalmente Pessoa e se acalmava. Um outro ano passou... Por que o deixaram só em casa, pensava repetidamente. “Por que me deixam só esse tanto de tempo?”

Mais um ataque e ele destruiu Álvaro de Campos. “Um supremíssimo cansaço, íssimo, íssimo, íssimo, cansaço…” Pôs os pés pro alto, ficou com a cabeça cheia. Tinha umas tristezas e lá suas águas muito salgadas, cheias de medo e angústias inexplicáveis. Sozinho em casa numa tarde longe de alegrias. John Lennon tocava no radinho na cozinha. Era um desses especiais de fim de ano. Ele ia adormecendo e vinha pelo ar a fatal war is over... Um raríssimo “John and Yoko wish you a merry christmas!”... a cabeça ia ficando pesada... Ele, os anjos ou um invasor alienígena o tocou, reposicionando sua cabeça no braço do sofá, esticando suas pernas e beijando sua testa suada. Era calor, ele roncou.

Dormindo, acordando, gritando, chorando, vislumbrou John Lennon entrando pela janela. Ele subira na mangueira do quintal e com uma manga em punho entrou pela janela dizendo: “Oh Yoko!” e oferecia a fruta mordida e sorria. Seus dentes com fiapos. A guerra acabara! A guerra acabara? Alguém atirou. Um grito e de repente o peito de John sangrava e do buraco a bala pulava e saiam fiapos e cascas e caroços. O garoto acordou assustado e fechou a janela. O especial tinha acabado e agora só orações. Ficou cinculando descalço pela cozinha, bebendo água, bebendo alcóol. Transitara rapidamente da cerveja pra garrafa fechada de conhaque. Tinha um cheiro forte, forte demais pra gostar, mas fechava o nariz e mandava goela abaixo. Colocou uma música e girou pela sala com a garrafa na mão, rindo eufórico. Mandou a garrafa na parede e foi ao chão rindo mais alto. Do chão viu o teto que viu o céu que viu o universo que viu de volta sua dor e mostrou pra todo o infinito que quisesse ver. Que dor é essa, menino? Quantos anos tinha que nem sabia? Havia passado dos catorze? Não sabia se queria ou podia. Que dor é essa, rapaz? – o universo insistia em perguntar e ele ria na cara dele, chupando o sangue dos caroços.

“Puta merda! Onde minha mãe esconde essa merda? Onde ela escondeu essa merda?! Que inferno!”, ele agora revirava o quarto da mãe à porcura de seus antidepressivos. Na sala, os animais: o gato lambia o alcóol do chão e as formigas se entupiam do sangue doce do rapaz. Pingos o rastreavam até o quarto. O braço pingava sobre a cama e ele tirou o forro do travesseiro do pai e enrolou no pulso. Gavetas abertas, cartas pelo chão, segredos desvendados, cartas de sexo de ex-namoradas e atuais amantes, luzes de velas queimando no silêncio, ultra do câncer no estômago, atestado de óbito do caçula que morrera há quatro anos, os sonos de mentira, os sonos de verdade, o cartão da psicologa, da psiquiatra, do personal trainer e do cabelereiro, o vidro de perfume da avó que passou pra mãe e que espirrou sem querer quando quebrou no chão. Grito! “Ah, como é bom!” E ele passava o braço, umidencendo o pano com sangue no perfume. Assim se sentindo limpo e livre. Riu uma vez mais e desmaiou por sete segundos, indo parar num mundo paralelo entre demônios e um báu com anjos ventríloquos. Arregalou os olhos e lembrou. Correu, escorregou, bateu a cabeça na parede, riu, chorou um pouco de infelicidade e felicidade, chutou a parede, urrou de dor, chorou desconsolado, se abraçou e o gato veio roçar, tonto, na sua perna. A campainha tocou e era a velha vizinha. Ele ignorou e já na sala, com o vidro na mão “isso deve dar...”; aumentou a música, colocou uns comprimidos na boca e tomou com uma golada de cerveja.

Cerimoniosamente, repetiu três vezes, dançou e desmaiou achando que tinha morrido.

Acordou numa maca no meio do corredor. Hospital lotado. Um estranho numa maca na sua frente fedia à cachaça e estava sujo como o quê; provavelmente um mendigo perdido que pela emoção do natal deixou que suas pernas buscassem ajuda. Não havia ninguém para levar um café pro coitado do mendigo, mas havia a mãe do garoto, com olhos inchados de chorar, trazendo o seu. “Meu filho...”, ela enfiou o cabeça do rapaz no seu peito e chorou. “Deixa ele, vai machucá-lo!” – o pai falou, com as mãos no bolso, uma delas segurando o celular desligado (mais de sete mensagens não lidas, duas da operadora). Ele parou ao lado do garoto. Este olhou os botões de sua camisa e pela primeira vez quis chorar. “Por que isso, meu filho?” – o pai perguntou, o filho segurou o choro. Na verdade, não precisou segurar, ele apenas secou instantaneamente. Ficaram os três em silêncio. O mendigo coçou a cabeça e sairam uns pontos pretos que andaram por seu ombro e se dissiparam no vento.

O médico trouxe a boa nova: um contato de um hospital psiquiátrico com uma comunidade terapêutica para dependentes de álcool e outras drogas. Os pais discutiram ali perto mesmo. O médico voltou, as enfermeiras limparam mais uma vez a ferida no pulso do rapaz, fazendo-a arder; ele cerrou os dentes. Fecharam as ataduras e os pais se decidiram. O pai apertou a mão do médico: “Obrigado por tudo doutor! Feliz natal...” A mãe, na impossibilidade de abraçar o filho (que tinha ataduras também no pescoço e cabeça, além do pulso esquerdo e pernas) e necessitando urgentemente abraçar alguém, se agarrou no médico e ficou perdida por lá um tempo. Retornou e se refez, olhando o marido. “Obrigada de coração! Mesmo, mesmo! Abraço e feliz natal pro senhor e toda sua família!”. O médico se virou para o menino, que não olhava pra nada, e pôs a mão em seu ombro. O Rapaz sentiu uma eletricidade lhe tomar o cérebro e numa quase convulsão, teve uma visão: ele e o mendigo dançando macarena para uma grande platéia em um teatro na Holanda. Seus pais olhando de um lado da coxia, mulheres de bíquini do outro lado. O mar de gente em suas macas aplaudindo energicamente – o rapaz sorriu discretamente e olhou os olhos negros do outro.

Noite de 24 de dezembro do ano seguinte, no refeitório do hospital psiquiátrico, uma pequena ceia organizada pelos médicos, psicólogos e enfermeiros, que levaram suas famílias. Os outros pacientes sentando nas mesas, a maioria sem a companhia dos consanguíneos. Os filhos corriam pra lá e pra cá, explorando o mundo complexo de paredes azuis e uniformes claros de olhos arregalados. Seu Bumba contava histórias que via pela janela, sobre a neve que caia no norte. Algumas crianças o achavam interessante, mas olhavam à certa distância, agarradas a seus pais, que riam. Os pais do rapaz estavam sentados com ele numa mesa. Comiam peru com farofa e salada. Não tinha azeite, só sal. Não tinha vinho, só suco de caixa. Havia um rádio tocando músicas de natal em inglês. Em determinado momento, o menino reconheceu a voz de Elvis cantando “Blue Christmas”. Não se sabe se foi nesse momento, mas sua mãe pegou na mão de seu pai e conseguiu cochilar em seu ombro. Ainda desconhecendo a sincronicidade real das coisas, Seu Bumba abriu a janela e choveu isopor pelo salão; as crianças riram e começaram a pular com a língua pra fora.

O rapaz se levantou e caminhou para o banheiro. Abriu a torneira e tirou do bolso a carteira que pegou escondido da bolsa da mãe. Uma foto do irmão segurando uma gargalhada com os cabelos embaraçados e a cara amassada. Colocou sobre a pia e esboçou um sorriso que só o espelho viu. Um grito veio de longe. Seu Bumba se jogou da janela. Um murmuro prolongado. Alguém tinha prisão de ventre em uma das cabines do banheiro. O rapaz ficou um tempo olhando para outra foto na carteira (uma sua aos sete ou nove anos de idade). A porta da cabine abriu e Elvis saiu com a braguilha aberta. Fechou e pôs as mãos debaixo da torneira aberta. “Bons tempos, né rapaz?” O menino desviou o olhar e viu seu reflexo no espelho ao lado de Elvis. Sorriu e acenou com a cabeça. O cantor pegou a foto sobre a pia e saiu. Passou um tempo, o relógio novo no pulso do rapaz fez pi-pi marcando meia-noite e ele saiu do banheiro, imaginando abraçar os pais. Com urgência, com afeto.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Carnaval preso


Um ponto de pontes,
De esquartejos a nenhum lugar.
Um perdido de fontes
Sem guia que do mar se vá.
Eu penso,
Mesmo que o fundo infinito
Reafirme a incerteza profunda do céu.


E sei que as criaturas morrem.
Sei que o infinito apenas encharca meu inteiro.
Mesmo assim, na profunda incerteza do mar,
Vislumbro os habitantes do céu esternizarem
Seus gritos, seus gritos mergulhados pelo ar.


E eu silencio e afundo.
Mesmo sabendo o que não sei.
Silencio e afundo
Porque ainda me sinto todo presente.