sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Reticências


Amor de verdade... Começar alguma coisa por esse conceito é meio um risco de se nascer pela morte ou pelos pés. Ela acha que é melhor pensar em pernas porque puxar pernas frágeis como as do amor deveria ser algo cruel o suficiente, podendo assim se encaixá-lo nas suas experiências ruins. Mas amor de mentira nem é parte do conjunto de verdades que Sara guarda, ela só quer que alguém a ame, já que amor deve, por si só, ser uma verdade. Acredita que não é o amor que possuí uma característica, mas a relação. Tudo que gira em torno de relação parece se movimentar rápido demais para uma menina que sente a vida ir embora a cada passo dado pela varanda de casa. Essa Sara tem uns vinte e seis anos agora e nem pode mais ser chamada de menina, mas usa vestidos até o joelho e chinelos sem ocasião. Gosta também de pedalar, e quase sempre caminha pela varanda, de onde pode ver os caminhos que percorre diariamente e me incluir, sem se dar conta, aos seus questionamentos de vida. O meu amor é de mentira porque não tem relação com ninguém. Apenas eu faço ideia do que ela quer, mas nem quero que ela saiba que estou aqui,  olhando. A história é dela.

Sara teve um namorado que ia todas às sextas na sua casa porque achava que sexta tinha uma significação estranha de fim de tudo e última oportunidade de início. Os dois se deitavam na varanda e olhavam o céu tocando discretamente seus respectivos corpos através de palavras sussurradas. Eu podia perceber isso porque ouvia bem tudo que pertencia à esfera das palavras através dos gestos. Achavam arriscado fazer o que faziam em público, mas não tinham ideia do quanto realmente eram patéticos só por acreditarem na metáfora das sextas eternas vividas intensamente. Não sabiam o que esperar desse eterno, já que desconheciam o tempo do amor por estarem dessintonizados. Um dia, num último suspiro, ele disse que a amava e ela se sentiu viva como nunca; até chegou a pensar que alguém mais sabia seus pensamentos (mais uma vez, eu) e concordou em fazer parte de um todo, exprimindo liberdade flutuante. Naquele dia, ele a puxou pela mão para dentro do quarto e tirou das palavras o que havia de sexo. Ela foi feliz e ele não sabia que isso simbolizava um retorno à crença no amor. Na outra sexta...

Na outra sexta, tudo dependia da quinta, da quarta, da terça, e Sara de repente se viu presa aos dias como se não representassem nada além do mesmo. Os dias não se contavam até a sexta, eram sós e participavam de Sara em aflição, como milhos de pipoca presos numa panela que aquece cada vez mais. A menina era um evento de contornos frágeis: estava arrasada pela chuva que tempesteou a sexta, alagando a varanda. Daí, foi uma sucessão de imprevistos que distanciou gradualmente o casal de escola. Ela prosseguiu entre livros e semanas sem sextas. Quanto a mim, nesse passar dos anos, nem sabia se estava matriculada em alguma universidade ou se ainda ia à escola, porque sempre que precisava, olhava para varanda e a encontrava como alegoria constante. Palavras deixaram de ser trocadas naquele espaço da casa, agora eram recebidas ordens daqueles livros. Sara desconhecia seu poder de fazê-las desabrochar em carinhos. Então sumiu. Fiquei sozinho olhando meu vazio sobre a varanda. A chuva passava por ela sem deixar água acumulada para ser escorrida pelo rodo e eu, em momentos de angústia extrema, morria de medo que um dia ela voltasse e soubesse de minhas aventuras por varandas imaginárias e outras Saras. Minha mãe sabia do meu afeto e, pelo acaso de morarmos juntos e almoçarmos na mesma mesa, me trouxe a informação de que Sara morrera. Minha mãe era louca.

Sara não tinha morrido, havia apenas mudado sua maneira de existir.

Seu sentido agora era falta. Uma falta tão grande que vivia despedaçando meu peito cada vez que chorava minha saudade. A menina cujos passos cresceram no meu olhar simplesmente quis ser alguém além das minhas verdades. Percebi que toda sua leitura que lhe dava ordens fora desconstruída nesse tempo de  sumiço. Quando Sara olhou, encontrou no fundo de si verdades múltiplas e, calma, não pediu mais nada: seus processos de amor se tornaram despretensiosos e éticos. Sara me deu adeus e me deixou a varanda como herança. Todas as sextas tiro folga - são meus instantes oportunos. A cada nova sexta envelheço uns cento e vinte anos só de olhar. Me engolem esses dias!

Mas depois ela voltou. E trazia amor de verdade. Não hesitava mais em marcar as reticências após “verdade”, pois sabia que elas ficariam ali passando o tempo e, ao lado dessa noção de muito tempo, restaria algo essencial e íntimo, que era ela mesma. Amor de verdade... São dois tons do mesmo sentimento. Ela aparecia e eu me emocionava. Não era sexta, mas eu vivia crescendo num mesmo instante de infinita sabedoria derivado de uma pausa que a menina provocava dentro dos meus olhos, e isso alterava muito minha idade. Parei de passar num tom só. Dupliquei desdobrado nu sobre meu próprio voyuerismo
. Ela voltara com os mesmos livros, com o mesmo vestido voando pelo joelho. E ainda chegava em casa pedalando e assobiando. Tirava os pés do pedal para empurrar a bicicleta no curto caminhar até o portão. O ferro arrastava ao abrir. Girava a chave e entrava.  E tudo escurecia - na cabeça acendia uma luz e a via pisar num templo imaculado. Era uma bela dança: minha menina na minha varanda. Esqueceu de morrer, de apagar aquela que foi, antes de resolver renascer em carne e osso dia após dia. Não dava mais importância para os dias especiais, para os amores velados no risco, para as palavras de ordem e muito menos para os olhos perseguidores. Minha ânsia por viver em sua pele como suor nunca seria saciada porque ela nunca pararia de suar e suava despojando-se de todas suas amarras. Ficava me perguntando porque Sara fazia tudo parecer tão fácil.

O último dia: sem superstições era uma sexta. Não sei porque motivo, eu estava fora de casa; fazia algo para alguém, para minha mãe e talvez para suas loucuras. Andava apressado com a atenção fixa nos meus passos cotidianos quando percebi o assobio perto. Sara pedalava graciosamente ao meu lado. Levantei a vista e vi que nossas casas ficavam uma de frente pra outra, quase se misturando. Parei a pressa e a acompanhei como se fizesse parte de seu caminho. Ela parou em frente à sua casa e eu, em frente à minha. Entramos. Ambos subimos nossas escadas e cumprimentamos nossas respectivas mães. Ela foi para o seu banheiro lavar as mãos e eu esperei que acabasse dentro do meu. Saímos juntos com as toalhas nas mãos. Ela olhou pela janela e, pela primeira vez, viu minha casa. Tudo que fiz foi tentar me encaixar no seu olhar. Ela me tinha perto de si, como um amor de verdade, reticente. E me viu por inteiro, como eu sempre quis, até não me ver mais, nunca mais. Fiquei horas ali sentado, olhando para o outro lado. Minha mãe, louca de pedra, me chamava. Os minutos foram me cercando enquanto minha mãe subia as escadas até aparecer naquela varanda que me encarava. Gritou mais alto. Esfreguei bem os olhos e enxerguei com os olhos de Sara. E me mirei, sendo Sara. Me vi flutuando de cabeça pra baixo no meio do nada até uma mão enorme surgir e me puxar pelas pernas. Sumi no ar. Ela me olhou de uma varanda vazia e alagada, porque o ralo estava entupido e os olhos choraram demais. Minha mãe berrou outra vez. Abri os olhos e fui atender seu chamado. Não era nada demais: a vizinha tinha morrido.

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