terça-feira, 16 de março de 2010

Laranjas


O sol já se baixava no horizonte perdido. Com força alaranjada ele roubava a energia da donzela, e ela só fazia contemplar enquanto cosia na varanda de sua residência. Os pensamentos iam perdendo a cor aos poucos... a irmã de repente nem existia... a noiva era a irmã, que sumira no altar ao longe... os vitrais da igreja estavam partidos... os risos eram tristes... a mãe cantava a velhice nua e pálida... Do altar veio nada e, ao invés de fincar quietude, quis tudo que tinham para dar. Laranja intenso.

A donzela piscou repetidamente buscando compreensão no que a fazia enfiar a agulha no tecido branco. Observou-se por algum instante. Picou o dedo com a agulha e viu uma gota de sangue, a qual, sem pensar duas vezes, levou a boca e sugou. Fora um gesto totalmente inesperado, porém uma angústia cresceu em seu peito, devastando a natureza virgem escondida por ali. Ela chorou por um instante sem lágrimas aparentes.

Largou o bordado, os pensamentos desconexos e permitiu se perder. As lágrimas finalmente desceram em seu rosto, embora já não significassem muita coisa. Ela nem ao menos buscou enxugá-las, por mais que a incomodassem. Ficou paralisada enquanto os fios em laranja ao seu redor iam diminuindo em quantidade. Seu vestido era bonito e bem costurado por suas delicadas mãos macias. Ela, que podia senti-lo belo quando o costurava, nunca o notou belo quando incorporado a sua figura. Esperava subitamente que alguém o amassasse antes do sol se pôr, uma verdadeira pessoa de olhos aptos aos desprazeres da costura detalhista. Queria brincar de roda com as meninas mais novas e sujar de cores o vestido. Girar e girar, e rir depois.

A donzela era velha e pálida.

O sol ria disso e lhe roubava as esperanças. Como se ela soubesse que ainda as tinha.

Os últimos três fios de sol passaram pela vista, zombeteiros. A moça sentiu o sangue pulsar quente nas veias. Seus braços simplesmente não eram mais adornos das vestes, caídos frios, imperceptíveis. Precisavam que agarrasse aqueles fios com toda sua força de mulher. Ela o fez num urro de raiva e eles a levaram na contrapartida da dor.

Correu por toda sua vida. Sendo puxada, viu sua antiga morada, com paredes cor-de-rosa e jardins destruídos pelo inverno e bichos-de-terra que nele brotava. Uma rocha rosada daquelas podia lhe trazer tantas palavras... nada mais que um mero objeto gigantesco que acolhia vida em conjunto. Todas as conversas encenadas ali foram culminações de momentos de aflição. O resto era sempre um passatempo de reclamações repetidas. Custava-lhe admitir que sua infância podia ser resumida como hábito ligeiro. Eram tantas rosas de papel - origami que fazia sozinha - e voavam com os sopros de vento rouco entrando pela janela. Angústia essa de pairar no velho eterno cotidiano.

Logo mais a frente estava o bar onde todos, e aqui recordava todos por alguns tipos mais marcantes de vizinhos, se reuniam escondidos para ouvir o rádio e contemplar sua lataria prateada. Pessoas intranquilas demais, que discutiam fervorosamente havendo qualquer fagulha de oportunidade e suplicavam intimidade forçada. Uma velha dona, por exemplo, fazia bolos para fora enquanto mulher em paz com seu destino. Pedia auxilio sempre negado dos filhos e, pacientemente, tirava as botas do marido com um pedaço gordo de doce na mão para ser servido a seguir. Poucos conseguiam perceber que o que a levava a fazer aquilo castigava-a consumindo qualquer aparição do seu genuíno ser. Ao fim de todo dia, a mulher perdia o contato com a felicidade fingida e esmagava o resto de bolo com as mãos, engolindo migalhas banhadas em vodka, Outra: acontecia pouco, a cada dois meses, mas de vez em quando, ela quebrava pratos e corria pela sala da casa, evidentemente estando segura do sono pesado dos seus satisfeitos. Ela frequentava o bar depois dos surtos, sendo a figura da madrugada. Os fofoqueiros dali só zombavam pelas costas, julgando-a louca. Ela nem sabia, achava que ali era família.

Dentro do bar dançavam outros personagens também inexistentes na luz do dia. Apresentavam-se depois de terem entornado uma dose generosa de pinga e ouvir lamentações próprias em voz alta. Quando não brigavam aos berros com tudo que se movesse na penumbra do alcoolismo, serenavam juntos ao som de uma balada leve. Depois tudo era paixão e aconteciam luxuriosas e engraçadas traições. Ainda bem que tinham aquele lugar. Nesse período adolescente, ainda sem conhecer as virtudes da alta costura, a donzela visitava o local com olhos longes. Aparentemente tudo lhe repugnava, assistindo assim pessoas que se mentiam de dia. Todavia, quando retornava a casa, seu quarto a recebia com risadas irônicas. Ela ria junto até perceber que ria de si. Então chorava e tentava deixar de espiar, curiosa, os frequentadores daquele estabelecimento. Passou a se dedicar a Deus e a costura. Mas ainda olhava de canto de olho.

Existia uma praça bem ao lado do bar. Uma coisa boba toda verde, com flores pequenas que cresciam agarradas a uma forma pré-determinada. O lugar mereceu um suspiro saudoso da donzela, tão incoerente... Tinha gente ali sempre com pouca idade, sem juízo algum que partilhava de desejos curtos e planos confusos. Uma falação desconcertante. Amigas passavam de braços dados e fingiam ser mais velhas para impressionar os rapazes, que por sua vez tocavam seus violões para os companheiros de estudos e fitavam as moças com olhos esnobes, mas com corações palpitantes. Um teatrinho que mal reivindicava platéia.

Somente num único dia aquela praça pareceu ter a existência justificada. A lembrança da donzela era confusa e só contundente em sonhos, mas ela se esforçava para conectar as partes. Havia, no entanto, uma força estranha que destacava o sentimento da memória e reivindicava importância. O certo é o evento ocorrera à noite. Chovia e uma apreensão incômoda crescia no peito como uma trilha de filme de terror. A moça voltava de um recital de ballet em que amigas suas se destacaram como condutoras de jovens aprendizes, uma delas sua irmã mais nova. Uma bela peça despida de verdade. Aquilo foi o ponto crucial para o início da perturbação angustiante. Sem entender a causa de tal bobagem sem sentido, correu dos parentes num rompante de independência apática. Uma garoa leve abriu o cenário. A praça, a luz intensa amarela abraçando os pingos retos, os bancos vazios, molhados – ela se viu em tudo como um guardanapo que se desdobra revelando uma mensagem rascunhada à alguém. O lugar se refez pleno de beleza vazia em si que se apropria da essência alheia a fim de instigar seus despertar. Roubava tudo de todos, cada história, cada sonho, cada encontro, para virar lembrança bonita.

Agora a donzela estava no meio de um grande círculo de descobertas. Sua vista, embaçada com tanta memória. Queria entender porque todos os instantes de grande valia em sua vida foram massacrados pela força do hábito. Sentia-se como uma freira a contra-gosto. Agora que recuperara seus pedaços espalhados pelos cantos do berço, ela podia deixá-lo. Descobrir o que é partir, de repente, se revelou o motivo para ficar. Deixar aquela varanda de tecidos bordados, senão os já tinha concluído, não era mais necessário. Ela não era mais a donzela que se encaixava discretamente nos espaços do tempo vago. Eles começavam a ser seus.

Por fim, o fio último do sol que restava. Toda a reflexão debatida no poente do sol inaugurara visão lúdica. Ali estavam, na sua frente, a senhora e a menina. As duas no chão, curvadas e sujas, com os vestidos levantados e as mangas puxadas. Achavam-se inteiramente entregues ao divertimento e riam a cada jogada errada da outra. Jogavam bolas de gude. Os cabelos, à essa altura, já estavam embaraçados, um cinza, outro preto. O que importava eram as laranjas que rolavam entre elas. Vinham do pomar no horizonte. Nenhuma das duas as notava, somente a mulher que se pôs ali no meio, com seu vestido limpo e sua pele queimando vida. Não tentou pegar as laranjas, elas passaram direto e refizeram o caminho de sua memória resgatada.

A mulher, então, se entregou a paz do constante poente – o que eu lhe deu forças para fazer o que sua mente gritava: do finzinho de sol, ela pegou uma raiva materializada em fio real e caminhou até as duas figuras atrasadas, enforcando-as. Matou na fúria indecente do que se põe. Tudo que podia ser feito foi feito, atentando ao desrespeito às regras da vitória, a mulher de branco se dirigiu à derrota dos vingadores. Desceu a ladeira em direção ao bar. Entrou e pediu uma dose de cachaça. O líquido desceu quente. Virou-se para o dono do bar e pediu que aumentasse o rádio. Ficou ali, somente ali, ouvindo uma balada honesta até que a noite lhe revelasse o caminho a seguir.

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