quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Beija meu bocejo


Beija meu bocejo!
Aproveita esse ensejo
para inaugurar teu desejo
de sonhar logo cedo
com fantasia lasciva
de minha nudez presumida.

Faz do teu corpo,
base, centro e topo,
extensão que dê vazão
ao tanto de desrazão
agora crescente
dentro da mente
e do coração.

Veja,
e logo perceba
que a boca que boceja
assim faz para ser aceita,
não como apenas cansaço,
mas como desembaraço
de um convite esperto
para que chegue mais perto.

Então faz favor,
chega,
se ajeita
e me beija.

terça-feira, 31 de julho de 2018

sercular


da orelha sai um olho
que cospe outro olho
fazendo ao contrário
nariz meio largo
que respira pra frente
boca escondendo dente
de cujo lábio baixo
estica quase braço
cheio de dedos dados
com dedos espaçados
em uma mãozinha
que em pulso termina,
pulsando uma bola,
depois um pau,
enfim outra bola
até dar no calcanhar
de um pé algo torto
indo acabar
num pé todo novo
enganchado na borda
do brinco de argola
da orelha mesma
que bem corriqueira
iniciou a besteira
de percorrer inteira
a rota circular do ser
que se termina ao nascer

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Vida de cão



A cachorra passa mostrando os dentes
Não como se estivesse contente,
Embora esteja quase sempre,
Mas como se apenas respirasse,
Provando estar viva
E isso bastasse.

A cachorra não sorri quando late.
O faz estranhando alguma parte
Do quintal que esconde sobressaltos.
Late estufando o peito, esticando o rabo.
Uma hora para,
Volta,
E desestranha a fala.

Quando deita,
Fecha a boca e se ajeita.
Arranha as unhas no concreto
Como se cavasse sono quieto
Que a um tempo chega
E a escavação deixa
De ser necessária.
E a cachorra deixa
De estar acordada.

Penso que se ronca,
E nisso treme,
É para fazer presente
A mesma vida dos dentes,
Da latição,
E do arranhamento.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Sonho tardio


Ontem sonhei com uma sala
Uma reunião inacabada
De rostos conhecidos
E desconhecidos
Tirando um cochilo,
Arranjados em desalinho.

Três mulheres dormiam no tapete
De linhas amarradas em nós rentes.
A primeira, mais velha,
Tinha cabelos brancos com uma mecha
Preta bem penteada para trás.
Olhava as outras duas, suas filhas,
Deitadas debruço, caras escondidas
Debaixo das mãos
Pressionando choro contra o chão.

No sofá, perto das mulheres,
Outros corpos sonhavam leves
Sobre quem partiu ontem
E quem foi antes.
Pareciam meio acordados,
Apesar dos olhos semicerrados
E sorriam
Sorrisos de netos e bisnetos
Marcando tempos inquietos
Espaçados entre as mobilhas
Da sala quase toda adormecida.

Mais despertos
Estavam os insetos,
Que pousavam vez ou outra
Num dedão ou numa boca,
Traçando caminhos confusos
Na captura de todos os minúsculos
Quase imperceptíveis
Traços e relevos nas superfícies
Daqueles corpos aparentemente
Desatentos às atualizações do presente.

Então uma cena se repetia
E repete no agora, à luz do dia:
A mulher do chão vira de costas
Finge que nem vê a hora
Outra, no sofá, abana mosquito
Que quase invade seu ronco aflito.
Todos se mexem
E a tarde padece
Na noite.